Os trabalhadores renderam-se ao teletrabalho?

O trabalho remoto enraizou-se num algoritmo que agora tem vindo a tentar contrariar

Muitos dos que barafustaram no início da pandemia com o trabalho remoto são os que agora escolhem essa opção quando a empresa dá flexibilidade. Há até quem já o tenha como requisito para aceitar uma proposta de emprego. As pessoas experimentaram e gostaram. E não parece haver volta atrás nesta matéria.

Pedro Ferreira mudou mais do que uma vez de trabalho desde o início da pandemia. A área da informática é propícia às portas giratórias de ofertas cada vez mais aliciantes. E sintetiza num ápice tudo o que mudou nos últimos três anos: “Hoje, acho que só se não tiver emprego é que aceito uma oferta que me obrigue a ir para o escritório. Não há nada como dar a possibilidade ao trabalhador de escolher”. Para quem faz gestão de equipas de suporte por gostar de contactar com as pessoas não era de esperar que se rendesse ao teletrabalho. Mas a história foi-se fazendo numa catadupa de acasos. Se no pico da pandemia estava a trabalhar presencialmente no Porto com equipas em espelho, numa espécie de contracorrente que lhe soube bem quando toda a gente desesperava em casa, foi quando mudou de empresa que a flexibilidade dada lhe escancarou a porta do trabalho remoto. “Aí, decidi ir para o escritório duas vezes por semana para interagir. Conclusão, ia para lá e encontrava um escritório vazio, ficava sozinho.”

Acabou por se deixar ficar cada vez mais dias a trabalhar em casa. “O início foi complicado, porque é preciso adaptação. O dia todo fechado, 24 horas, não estávamos preparados. Ora trabalhava no sofá, ora na mesa da cozinha. Comecei a ter dores de costas que nunca tive.” Aprendeu a lição. Comprou uma secretária e uma cadeira e criou um cantinho em casa que é só para trabalho. Pelo caminho, voltou a mudar de emprego – está numa empresa internacional que fechou os cerca de 30 escritórios que tinha pelo Mundo e se assumiu como totalmente remota – e chegou a recusar propostas em que lhe exigiam ir para o escritório todos os dias. “As empresas portuguesas continuam com a mentalidade de controlo, a ideia de que o funcionário tem que estar ali para se ver que está a trabalhar. A verdade é que o trabalho em casa torna-se muito mais rentável. O facto de estar limitado de interações obriga-me a estar mais concentrado. E não acho que trabalho mais, acho é que sou mais produtivo.”

Hoje, está em teletrabalho a 100%, o que lhe permite fugir ao inferno do trânsito, poupar dinheiro e a tranquilidade que lhe trouxe até o levou a conseguir deixar de fumar ao fim de vinte anos – tem 42. Ao mesmo tempo, a algazarra das manhãs abrandou. Tem duas filhas e consegue levar a mais nova, de dois anos, ao infantário sem a correria de outros tempos. “Hoje, vejo vantagens incríveis. Encho o depósito do carro e dá-me para dois meses. Não perco tempo em viagens, almoço sempre em casa, adianto tarefas domésticas nas pausas, faço a gestão do meu tempo como quero. E, honestamente, sabe-me muito bem sair do trabalho e já estar em casa.” Contras? Também os há, sobretudo a perda das relações sociais. “Nisso, limita bastante. Acabo por estar muito isolado, sinto falta dos momentos de palhaçada no escritório. Mas também me protege dos devaneios de alguns colegas. Não sei para onde é que a balança pende mais.”

Benefícios a nível psicológico, o regime híbrido

Ana Veloso, psicóloga do trabalho e das organizações e docente e investigadora na Universidade do Minho, aponta um dado curioso. Nas empresas tecnológicas, em contexto de recrutamento, “sobretudo os jovens da geração Z, já apresentam como requisito junto dos recrutadores o teletrabalho ou, no mínimo, o regime híbrido”. Mas é preciso recuar no tempo para apanhar o fio à meada. O trabalho remoto chegou em força como uma imposição, perante os confinamentos pandémicos, a que muitos trabalhadores ofereceram inicialmente resistência. “As pessoas têm receio das mudanças e dificuldade em adaptar-se à novidade, é intrínseco. É como ter que ir por um caminho novo para o trabalho, exige esforço, tem que se ir atento.” Três anos volvidos, e havendo flexibilidade na empresa, o teletrabalho é uma realidade crescente até para os que tanto barafustavam nos inícios. Virou opção em vez de obrigação.

“As pessoas experimentaram e gostaram. Porque há, de facto, vantagens. E não nos podemos esquecer que estamos noutra crise, não havendo exigência de nos deslocarmos poupa-se dinheiro”, sublinha Ana Veloso. Mas psicologicamente será benéfico? “Se pensarmos no caso de quem trabalha num open space, em que há muitas pessoas a falar, estar em casa permite-nos estar mais tranquilos e ter mais controlo sobre o ambiente de trabalho, o que, em termos psicológicos, é importante. Coisas tão simples como pôr a temperatura ambiente como gosta ou estar vestido de forma mais confortável já gera bem-estar.”

E se, por um lado, a pessoa passa o dia sozinha e fica mais isolada, “o que é exigente”, por outro “se tiver uma boa rede social, pode sair à hora de almoço para tomar café com um amigo”. E será que se aproveita mesmo o tempo que se ganha para lazer? Aqui, pode cair-se numa falácia, na tentação de nunca desligar do trabalho, na vida profissional a invadir o espaço familiar. Porém, a psicóloga acredita que o tempo nos ensinou a ter mais disciplina. “Trabalhou-se mais, é certo, nos primeiros tempos, mas depois houve uma adaptação.”

Olhando para a questão a nível laboral, Ana Veloso é pragmática. “O trabalho pode ser mais rentável? Pode, porque há menos interferências.” Contudo, há um impacto negativo que importa realçar. “Na transferência de conhecimento. Nós transferimos e recebemos conhecimento quando estamos em equipa. E o que acontece é que, estando sozinhos, mesmo estando em contacto uns com os outros, não fazemos isso. Porque isso era algo espontâneo, que partilhávamos quase sem nos apercebermos.” Ainda há outro receio neste campo. “A ideia de que quem não é visto, não é promovido. De que se pode perder oportunidades por não se estar lá.”

Talvez por tudo, Ana Veloso defende que o regime híbrido junta o melhor dos dois mundos. “O facto de as pessoas irem uma vez por semana à empresa mantém-nas unidas, promove as partilhas, atualizam-se.” Daniel Gomes, 40 anos, tem procurado isso mesmo, intercalar o teletrabalho com o trabalho presencial. Está no Porto, é engenheiro informático numa tecnológica de e-commerce de moda de luxo, que dá flexibilidade aos trabalhadores. Olhando para trás, a questão do teletrabalho foi sempre uma opção, embora nunca tivesse aderido muito. Com a pandemia não teve outro remédio. A fase inicial, com a família em casa, foi dura. Só que, passado o choque, “a vida foi-se adaptando”. “Hoje, como tenho dois filhos, e um deles entrou para a escola no ano passado, o teletrabalho facilita-me as rotinas, consigo levá-lo à escola.” Também consegue ir ao ginásio à hora de almoço, hábito que tinha abandonado pelo corre-corre a que obrigava quando estava a trabalhar presencialmente.

Certo é que o trabalho remoto enraizou-se num algoritmo que agora tem vindo a tentar contrariar. Tem procurado ir uma vez por semana à empresa. “Mais pelo contacto com as pessoas. E para sair um bocado de casa, porque acaba por ser monótono. Mas há semanas em que não vou.” Por todas as razões e mais algumas. “Apesar de sentir que em casa trabalho mais, consigo rentabilizar melhor o dia, completar mais tarefas. Poupo o tempo da viagem. Posso, por exemplo, cozinhar e não estar a almoçar comida aquecida.”

Um caminho sem retorno

Não há ainda estudos sustentados que permitam falar de tendências. A socióloga Ana Paula Marques tem vindo a tentar analisar em que medida o teletrabalho ganhou expressão no pós-covid e se os trabalhadores são hoje mais favoráveis. “Lancei um questionário em 2020 logo no primeiro pico da pandemia e repliquei-o em 2022 para perceber se o trabalho presencial continuava a ser preferido no contexto pós-pandemia. Não é uma amostra robusta nem representativa, mas ficou patente que os trabalhadores passaram a referir o teletrabalho combinado com trabalho presencial como a modalidade preferida.” E a tendência, aponta, é para valorizarem o trabalho remoto como potenciador da saúde física e até mental. “Há uma visão de vantagens associadas ao teletrabalho por parte de quem respondeu.”

Se, no primeiro questionário, os trabalhadores que estavam em teletrabalho representavam 15% da amostra total, passados dois anos, o número de quem estava exclusivamente em trabalho remoto ou em regime híbrido quase chegou aos 50%. “Mas há que sublinhar que foram duas amostras independentes, ou seja, os inquiridos em 2020 e os inquiridos em 2022 foram diferentes.” Ainda assim, é seguro dizer que “o teletrabalho passou a ser uma realidade presente e não uma realidade pontual por força de uma necessidade”. “Não me parece que vamos andar para trás nesta matéria. É expectável que a médio prazo o teletrabalho aumente”, considera.

De qualquer forma, a socióloga reconhece que há empresas que ainda acham que “o teletrabalho é a pessoa estar em casa a nada fazer”. Não só em Portugal, vejamos o exemplo de um gigante como o Twitter, de Elon Musk. “Tem a ver com estereótipos e mentalidades. Mas isso não será o mais ilustrativo.” Ana Faria, 33 anos, trabalha num call center em Braga. Voltou ao trabalho presencial em abril de 2022, ao cabo de mais de dois anos, por decisão da empresa. Ainda que preferisse ter mantido o teletrabalho. “Em 2020, quando mandaram toda a gente para casa, foi muito difícil passar do escritório para estar completamente isolada em casa. Sou mentora, ensino os mais novos, e não conseguia prestar o mesmo suporte.” Com o tempo, acabou a descobrir benefícios. “A nível social, dificultou a criação de vínculos, que é fundamental para trabalharmos em equipa. Mas, sendo eu introvertida, acabou por ser muito vantajoso. Estava em casa, não tinha que lidar com pessoas. Não tinha que acordar tão cedo, não perdia tempo nem stressava em viagens.”

Ana sofre de ansiedade, desenvolvida na pandemia, que dispara por “ter que estar com muitos colegas no mesmo espaço”. O regresso foi uma nova adaptação. “Sei que forçar-me ao convívio é bom para mim, mas o regime híbrido era o ideal.” Talvez um dia isso venha a acontecer, até porque diz haver mudanças inevitáveis. “A pandemia obrigou as empresas a pensar nestas novas modalidades e forçou o Governo a legislar o teletrabalho. E é bom termos hoje a perceção de que não existe só o trabalho no escritório e que a pessoa pode produzir de igual maneira a partir de casa.”