Os comportamentos nocivos e o acesso deficiente a cuidados de saúde são frequentemente causas de doença. Mas é a montante destes problemas que está um dos maiores determinantes da saúde, considerado “a causa das causas”: a condição socioeconómica de cada um.
No início da pandemia de covid-19 houve uma ideia repetida com frequência: “Estamos todos no mesmo barco”. Mas cedo se percebeu que não estávamos. Estávamos, na verdade, em barcos muito diferentes, dependendo das condições económicas, da profissão, da vida familiar, do apoio social e da saúde que tínhamos.
“Houve de imediato a tentativa de eliminar ou reduzir drasticamente a transmissão do vírus através de medidas bastante restritivas”, lembra Sílvia Fraga, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), onde coordena o laboratório de investigação em Adversidade Social e Desigualdades em Saúde. Mas, como acrescenta, o impacto dessas regras afetou “de modo desproporcional os distintos grupos sociais”, com os mais pobres e frágeis a sofrerem os maiores custos. A isto se chama uma sindemia: a interação mutuamente agravante entre duas ou mais condições de saúde e uma situação socioeconómica desfavorável.
Tudo isto se sabe há muito: a saúde não é determinada apenas pela biologia. Os fatores genéticos são responsáveis globalmente por uma percentagem muito diminuta da saúde ou doença. Mais importante do que o que está escrito na biologia é o acesso a cuidados médicos e os fatores comportamentais ou hábitos de vida. Uns e outros são fortemente impactados pelas condições socioeconómicas. “O rendimento, a educação e o suporte social afetam, por exemplo, a capacidade de cada indivíduo fazer escolhas saudáveis, viver numa casa com boas condições, ter uma vida social e cultural ativa”, exemplifica Sónia Dias, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa.
Assim, há impactos destas desvantagens económicas muito óbvios, como “as dificuldades que as pessoas com baixos rendimentos têm em aceder a cuidados de saúde, quer na área da prevenção, diagnóstico ou tratamento”, detalha Sónia Dias. Outras são um pouco menos evidentes. “Os estudos mostram que indivíduos com menor rendimento e menor nível educacional tendem a consumir alimentos tendencialmente mais baratos, ricos em calorias e com pouco valor nutricional. E que, ao invés, indivíduos com maior rendimento e educação mais elevada tendem a ter uma alimentação mais saudável que os protege contra o desenvolvimento de doenças crónicas, como a obesidade ou a diabetes”.
Ou seja, os estilos de vida prejudiciais à saúde “estão muito associados a menores níveis educacionais, condições de trabalho precárias, situações de desemprego ou baixo rendimento. Estas pessoas apresentam menor capacidade financeira para fazer escolhas que promovem a saúde”.
A esperança média de vida à nascença no Japão é cerca de 84 anos e, na Serra Leoa, de 46 anos. Em média, um profissional com um cargo técnico, em Lisboa, vive 82 anos, ao passo que um operário, no Alentejo, vive 68. São números expressivos que contam uma história sobre como o acesso à saúde e as condições de vida mudam a forma como vivemos e o tempo que vivemos. E, até recentemente, a explicação para estas e outras diferenças resumia-se assim: as pessoas pobres morrem mais cedo porque a) têm pior acesso a serviços de saúde e b) têm mais doenças causadas pelas suas más escolhas. E isso, é verdade, é um problema, mas não é toda a história: as desigualdades, por si só, também roubam anos de vida.
A adversidade muda a biologia
O primeiro passo para uma mudança nessa narrativa aconteceu em 2012, quando a Organização Mundial de Saúde adotou a iniciativa “25 por 25”, para reduzir em 25%, até ao ano 2025, o número de mortes prematuras por doença cardiovascular, cancro, diabetes e doenças respiratórias. Para atingir este objetivo, a iniciativa comprometia-se com a redução em 25% dos principais fatores de risco: a hipertensão, o consumo de tabaco, o sedentarismo. Como a maior fatia de mortalidade precoce acontecia entre os mais pobres, ela era explicada apenas pela adoção mais frequente destes comportamentos de risco que decorriam das condições socioeconómicas.
Isso mudou em 2017, quando a equipa de investigadores do projeto LIFEPATH – um consórcio internacional do qual o Instituto de Saúde Pública, da Universidade do Porto, faz parte – analisou informação de 48 estudos de vários países, perfazendo uma amostra total de 1,7 milhões de adultos. “Os resultados mostraram que as baixas condições socioeconómicas, independentemente dos outros fatores de risco, diminuem por si, em média, 2,1 anos de vida a cada pessoa”, resume Sílvia Fraga, que fez parte desta equipa de investigação. “O estatuto socioeconómico tem maior impacto na mortalidade prematura do que a obesidade, o consumo de álcool e a hipertensão, e um impacto comparável aos fatores com maior peso, como o sedentarismo (menos 2,4 anos de vida), a diabetes (menos 3,9 anos) e o consumo de tabaco (menos 4,8 anos).”
O que mostra a investigação conduzida pelo LIFEPATH, conclui Sílvia Fraga, é que “a pobreza incorpora-se”. “A desvantagem socioeconómica acumula-se desde as fases mais precoces da vida, gerando um stresse crónico ou múltiplas respostas de stresse agudo que podem alterar funções biológicas fundamentais.” Potencia o impacto da adversidade social na própria fisiologia e, a longo prazo, na “acumulação de fatores de risco para doenças crónicas, pior saúde e menor esperança média de vida”.
Mas não é preciso esperar até ao período de envelhecimento ou pela morte para notar as diferenças. Na infância elas já estão lá. Alguns estudos, coordenados por Sílvia Fraga, verificam que, de um conjunto de 8500 crianças a ser seguidas desde o nascimento, as que nascem em contextos socioeconómicos menos favoráveis apresentam desigualdades na saúde desde cedo. “As crianças que têm pais menos escolarizados, com profissões menos diferenciadas e que auferem rendimentos mais baixos, apresentam já aos sete e aos dez anos, o índice de massa corporal, o perímetro abdominal e a pressão arterial sistólica mais elevados. Estas crianças apresentam também níveis de inflamação (…) mais elevados durante a primeira década de vida.” É a matemática da adversidade a ser contabilizável desde muito cedo.
Tratar a exclusão e a solidão
Nils Daulaire, médico e responsável na área da saúde pública americana, é autor de uma das frases que melhor resume o ciclo entre saúde e condições socioeconómicas: “As pessoas pobres estão muitas vezes doentes porque são pobres, e por vezes, as pessoas pobres são pobres porque estão doentes”. Para melhorar a saúde, não basta intervir na saúde e na doença: é preciso intervir no que a condiciona. “Sendo os determinantes sociais considerados a ‘causa das causas’”, defende Sílvia Fraga, há várias temáticas que têm de ser pensadas de futuro, “como os desafios do envelhecimento, o impacto da crise, a pobreza, efeitos dos processos de gentrificação, a violência, a saúde mental”, pormenoriza.
Também Sónia Dias garante que, apesar de o conceito “determinantes sociais da saúde” não ser novo, “está quase tudo por fazer para o operacionalizar”. Para a responsável da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova, uma das respostas passa por promover a intersetorialidade, ou seja, “reforçar e articular o trabalho de todos os setores com impacto na saúde, como o urbanismo, ambiente, educação, social e cultural.” Um exemplo de uma medida nessa área é da Prescrição Social que, em Portugal, começou a ser posta em prática por um grupo de médicos lisboetas de forma espontânea e conta agora com o apoio da Escola Nacional de Saúde Pública. “Grande parte das doenças crónicas, físicas e mentais, estão associadas a necessidades não-médicas, como dificuldades financeiras, exclusão social, solidão e o isolamento”, explica Sónia Dias. A Prescrição Social procura encontrar respostas para este tipo de necessidades através de recursos na comunidade, como as universidades seniores ou iniciativas locais de atividade física.
A responsável refere ainda que a literacia em saúde deve ser reforçada e o objetivo de centrar os cuidados de saúde na pessoa também. Assim, realça, é preciso desenvolver políticas e estratégias direcionadas para responder aos problemas concretos das pessoas e, nesse caminho, ter muito cuidado para não cair num paradoxo, que reforça o problema, em vez de resolver: “Verifica-se, por vezes, que intervenções inovadoras, pensadas para resolver estas questões, acabam por deixar de fora as franjas da população que têm precisamente mais dificuldades, o que contribui para que as desigualdades se mantenham ou até se acentuem”.