Automutilação. Os adolescentes precisam de ajuda

A filha de Sónia deu recentemente entrada nas urgências, com um grande corte no braço que a obrigou a levar pontos. A de Armando marcou os pulsos com um x-ato e o pai ainda hoje dá voltas à cabeça para perceber porquê. Helena usou a lâmina de barbear do pai. Queria fugir à dor de um bullying mortificante. Um em cada quatro adolescentes portugueses já se feriu de propósito. E as sirenes disparam. Não estamos a fazer o suficiente para acudir ao sofrimento dos mais jovens, avisam os especialistas.

Sónia (nome fictício) lembra-se da primeira vez como se fosse hoje: o choque de chegar a casa e ver a filha deitada na cama, cheia de cortes nos braços, o sangue ainda ali à vista, o desvario que veio com aquela imagem desconcertante, antes que ela pudesse sequer parar para respirar fundo. “Fiquei possuída, confesso. Na altura, não entendi aquilo como um pedido de ajuda, mas sim como uma tentativa de chamar a atenção. E então passei-me. Dei-lhe uma palmada no rabo e depois ajudei-a a curar as feridas, mas sempre muito aborrecida.” O episódio tem anos, a filha, uma das três, estava então com 13 anos, entregue à adolescência, envolta num intrincado nó sombrio. “Enquanto criança, era extremamente sociável e popular. Os miúdos até se pegavam para ir às festas dela. Depois começou a recusar todos os convites e mais alguns, a deixar de querer fazer festas de anos, a fechar-se no mundo dela.” Por essa altura, já estava até a ser acompanhada por um pedopsiquiatra. Por causa de um episódio na escola envolvendo um bilhete com uma aparente mensagem suicidária, que levou a diretora de turma a chamar Sónia para lhe dar conta da sua preocupação. “Ela negou. Disse sempre que só se estava a referir ao facto de ir mudar de escola.”

Mas depois vieram os cortes. “Tentámos falar com ela, mas não dizia nada, ficava calada, nunca deu uma justificação .” E o coração de mãe a encolher, imerso num mar de dúvidas. “Entretanto fomos percebendo que havia uma questão relacionada com a identidade de género. Mas mesmo isso ainda não percebemos bem. Porque ela quer ser chamada por um nome masculino, mas quando lhe pergunto se, no futuro, quer fazer uma operação para mudar de sexo, ela diz: ‘Credo mãe, claro que não’. E noutras vezes diz que é só uma questão de pronome. De qualquer forma, nós nunca fomos castradores em relação a isso, nem em relação a nada.” Sónia vai divagando em ziguezagues, como quem continua à procura de explicações. “Sabemos que tem uma má relação com a irmã mais velha e que isso é parte do problema. Mas, se me pergunta se temos problemas em casa, eu acho sinceramente que não, que somos uma família normal. No outro dia, ouvi-a a dizer à irmã que, a dada altura, na escola antiga, chegou a sofrer de bullying. E eu pergunto-me: ‘Mas como é que nós nunca soubemos de nada? E será que isso também contribuiu?’.”

Sem respostas, e sem um guião exato para lidar com o problema, a família vai procurando “vigiar” como pode. “Tento estar sempre atenta. A minha filha do meio nisso também ajuda muito porque dão-se bem. Quando ela está a tomar banho e sabemos que anda mais nervosa, a do meio vai para a casa de banho também, tenta distraí-la, fazer conversa, ir espreitando. Percebemos que, volta a meia, quando anda mais nervosa, faz pequenos cortes, nas coxas ou nos antebraços, coisas discretas.” Mas, recentemente, a situação voltou a descontrolar-se. “Fez um corte muito grande no braço. Como não parava de sangrar contou à irmã e ela contou-me a mim, levei-a às urgências e teve de levar três pontos. Disse-nos que fez aquilo por causa de um pico de stress, motivado pelos exames da faculdade. Essa é outra coisa. Ela sempre teve excelentes notas, mas é extremamente perfeccionista e isso também não a ajuda.” Toma até medicação, “levezinha”, diz a mãe, para a ajudar a lidar com a ansiedade e a dormir melhor. Mas até ver não tem nenhuma outra patologia diagnosticada. E ainda assim Sónia continua a viver de coração nas mãos. “É inevitável pensar: ‘Agora é um corte, amanhã o que vai ser?’. É muito complicado. Ela já é acompanhada por uma psicóloga, por um pedopsiquiatra, eu também tento ajudar, mas ela fala pouco comigo. É uma sensação de impotência muito grande. É triste vermos um filho a sofrer e não conseguirmos fazer nada para ajudar.”

A angústia que aflige Sónia inquieta um número crescente de pais. A asserção é confirmada pelos dados apresentados no´último estudo “Health behaviour in school-aged children [comportamentos de saúde de crianças em idade escolar]”, realizado de quatro em quatro anos pela Organização Mundial de Saúde, em 51 países, entre os quais Portugal. A análise, conduzida pela equipa do projeto Aventura Social, em parceria com várias entidades, Direção-Geral da Saúde incluída, denota um agravamento da saúde mental dos jovens entre os 11 e os 15 anos (a amostra focada neste estudo), traduzido numa série de parâmetros com resultados preocupantes: 28% dos adolescentes sentem-se infelizes, 9% estão “tão tristes que não aguentam mais”, 21% sentem-se nervosos quase todos os dias (16% admitiram mesmo ter tomado medicação por este motivo no mês anterior), 9% sentem medo diariamente, 64,1% têm dificuldade em adormecer à noite. Em todos estes pontos, há um agravamento, quando comparando com os resultados obtidos em 2018 (ver gráficos). A própria perceção de infelicidade escalou quase dez pontos percentuais, dos 18,3% para os 27,7%. E é neste quadro negro que sobressai um outro resultado inquietante: um em cada quatro adolescentes portugueses (24,8%) já se feriu de propósito pelo menos uma vez, através de cortes, queimaduras ou outro tipo de lesões. Um número que traduz um aumento superior a cinco pontos percentuais face aos resultados de 2018 e que faz soar os alarmes.

“Se não fosse a minha mãe não estava aqui”

“É uma forma de os jovens lidarem com as emoções negativas e uma manifestação de mal-estar psicológico muito preocupante, que requer apoio especializado”, alerta Tânia Gaspar, coordenadora nacional do estudo. Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, chama a atenção para um “agravamento do sofrimento psicológico na sua generalidade, que se manifesta em mais ansiedade, mais quadros de depressão, mais distúrbios alimentares e também mais automutilações”. No caso destas últimas, a especialista sublinha que tanto podem ser “sintoma de um problema de saúde mental”, nomeadamente de depressão, como uma situação “isolada e situada no tempo, que não implica a existência de uma perturbação subjacente”. Em ambos os casos, há “uma tentativa de autorregulação emocional e de autocontrolo da dor [psíquica] e da ansiedade”. E em ambos os casos está inerente “um sofrimento psicológico intenso”, que impõe a necessidade de uma “intervenção psicológica e especializada”.

Também João Bessa, da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, põe o dedo na ferida. “A questão não são tanto os números, porque esses dependerão sempre da metodologia adotada em cada estudo. O que me parece mais relevante é que este é um problema de saúde pública que está cá, que obviamente não se verifica só a nível nacional, mas que é preocupante, que tem que ser reconhecido e valorizado, e que exige a adoção de novas estratégias.” Até porque, lembra o psiquiatra e docente da Escola de Medicina da Universidade do Minho, apesar de os comportamentos autolesivos não terem, à partida, “uma intencionalidade focada no fim da vida”, são “um fator preditivo importante do aparecimento de comportamentos suicidários no futuro”. Para tranquilizar os pais que possam estar a ler estas linhas, vale a pena reforçar que a correlação não é obrigatória. Mas é mais um sinal de que o assunto é grave e deve inspirar cuidados e reflexão.

O caso de Helena Maia, 21 anos, é um bom exemplo disso. Pede que a chamemos pelo nome verdadeiro porque não se envergonha do que ficou para trás. E porque, repete uma e outra vez, quer muito poder ajudar outros jovens que estejam a passar pelo mesmo. Helena vive com uma depressão. Assume-o às claras. Toma antidepressivos e ansiolíticos (estes últimos só em SOS). E ainda assim diz com orgulho que se transformou, que conseguiu escapar do buraco onde viveu durante tanto tempo. Fala despachada, confiante, parece toda senhora de si. A história começa quando tinha uns 12, 13 anos. “Era muito gordinha, cheguei a pesar 105 quilos, e sofria imenso bullying. Desde ouvir coisas como ‘olha, vai ali a passar a gorda’ até fazerem rodinhas à minha volta para me humilharem e chamarem nomes.” Acresce que mal falava sobre o assunto. Os pais trabalhavam muito, ela também não se sentia à vontade para puxar o tema, tinha vergonha, começou a fechar-se em copas. E a espiral de sofrimento começou aí. Depois, veio a “inspiração”. Uma amiga que “andava sempre com a caixinha das lâminas” e que um dia se automutilou à beira dela. “Porque no fundo partilhávamos o mesmo sofrimento.”

Helena viu ali um possível escape para a dor. “Durante a noite, quando os meus pais estavam no quarto, fui buscar uma lâmina de barbear do meu pai e cortei-me no braço.” Lembra-se que chorou, que o alívio que achou que ia encontrar foi engolido por uma tristeza imensa, que se culpou e ficou ali abatida, a braços com um peso inultrapassável: “Como é que cheguei a este ponto?” E ainda assim optou por continuar a calar aquela dor, a sofrer em silêncio. “Durante duas semanas, tive que andar sempre preocupada em tapar os braços, em esconder, porque fiquei mesmo muito marcada.” Na altura, uma amiga mais próxima, que se apercebeu de que ela não estava bem, tentou apoiá-la. Mas os pais de nada souberam. Essa confissão, aos pais – ou melhor, à mãe -, tardaria ainda uns dois anos. “Curiosamente, até foi por causa de um comentário de um professor de Educação Física. Na altura íamos ter um corta-mato e ele, num telefonema para a diretora da escola, disse qualquer coisa como: ‘Não te esqueças que para a Helena tem de ser uma camisola maior.’” E aquela saída aparentemente desprovida de maldade deixou-a desvairada, como um gatilho que traz à tona o que tentamos a todo o custo remeter para as entranhas. “Fui-me embora da escola a correr, cheguei a casa muito triste, a chorar, enraivecida, tão enraivecida que dei um soco num vidro e tive de ir para o hospital, porque abri o braço todo. Levei imensos pontos.” Naquele momento, decidiu abrir o jogo com a mãe. Contar-lhe do bullying, do sofrimento, de como tentou fazer mal a ela própria. E a partir dali o jogo virou: começou a ter acompanhamento especializado, deixou a escola antiga, mudou-se de Matosinhos para o Porto. “Aí comecei a minha transformação.”

Tudo parecia estar por fim a entrar nos eixos. Mas com 18, 19 anos, nem sabe ao certo, teve um momento de desespero e tentou pôr fim à vida. “Tenho uma depressão e naquele dia não estava em mim. Acho que sofri tanto naqueles anos que acabei por ficar com uma série de traumas.” Mas prefere focar-se na parte boa da história. “Os meus amigos foram muito importantes neste processo. E a minha mãe também. Se não fosse a minha mãe não estava aqui hoje.” Por isso, faz questão de deixar um conselho a quem possa rever-se nas angústias que acedeu a partilhar. “Não tenham medo de falar. Se não quiserem falar com a vossa mãe ou o vosso pai, falem com outra pessoa. Numa fase inicial nós temos sempre vergonha, mas é o primeiro passo. O pior é sempre guardar.” E não termina sem dar graças por se dar hoje “muito mais valor à saúde mental”. “Há uns anos, quando eu andava na escola, ainda era uma questão muito subvalorizada. A minha mãe ainda hoje se culpa por não ter reparado antes na minha tristeza, por não ter conseguido apagar o fogo a tempo.”

A relação com os pais não é uma nota lateral nesta história. Tânia Gaspar, coordenadora do estudo que dá o mote para este trabalho, salienta isso mesmo. “O estudo fornece uma visão abrangente, em que tentámos ver a ‘big picture’. Por um lado, há a questão dos indicadores de saúde mental e bem-estar destes jovens; por outro, é percetível também um agravamento da relação com os pais, uma maior dificuldade de comunicação, uma perceção de menor apoio dos pais e de que a relação já não é tão positiva.” A psicóloga clínica destaca ainda dois outros pontos, que lhe parecem relevantes para uma interpretação mais ajustada: “Por um lado, a questão do aumento do uso das novas tecnologias.” Que em si mesmo não é mau, mas que pode ser preocupante na medida em que há um aumento da dependência e um aparente “enfraquecimento das competências socioemocionais” na socialização cara a cara. E há ainda a questão dos medicamentos. O estudo mostra que aumentou o uso do fármacos como espécie de droga, bem como a medicação sem prescrição médica. “E isto também inibe as competências para lidar com as coisas de outra forma. Todo este panorama acaba por pesar na questão da saúde mental e do bem-estar.”

A este quadro juntou-se, nos últimos dois anos, um outro fator que assume particular relevância no agravamento do estado emocional dos jovens (e não só): a pandemia. E tudo o que veio com ela. Diogo Guerreiro, especialista em psiquiatria de adultos e adolescentes e autor de uma tese de doutoramento datada de 2014 que foca precisamente a questão dos comportamentos autolesivos, ressalva que não há explicações 100% precisas “porque são sempre multifatoriais”, mas recorda que a crise pandémica, os confinamentos, o isolamento fizeram com que o aumento da prevalência da ansiedade e da depressão seja “avassalador em todo o Mundo”. Com natural repercussão ao nível dos comportamentos autolesivos.

“Estes comportamentos têm dadas funções. Por um lado, são uma forma de comunicação. Por outro, são uma tentativa destes jovens regularem emoções que não estão a conseguir controlar.” E o facto de os adolescentes se terem visto privados da socialização, a incerteza que veio com a pandemia, a instabilidade financeira e familiar redundaram numa espécie de “tempestade perfeita” para os potenciar. “Quando somos adultos, temos outras formas de lidar com a frustração, com o tédio, com os estados mais depressivos. Os adolescentes nem tanto. Até porque muitas vezes também há um efeito de contágio.”

“Para não lhe bater, parti-lhe o telemóvel”

Armando (nome fictício) não tem certezas, mas está convencido de que esse fator também há de ter contribuído para que, há uns meses, a filha (13 anos) tenha decidido cortar ambos os pulsos com um x-ato. “Creio que se inspirou numa colega da escola que passou pelo mesmo. Nestas idades as companhias influenciam muito.” Armando nem sabe bem por onde começar a desenrolar o novelo. Sabe que a filha sempre foi algo tímida, mas que se tornou mais introvertida com a entrada na adolescência. Sabe que a pandemia e a “telescola”, como lhe chama (neste caso, o “Estudo em Casa”), não ajudaram. “Se ela já passava muito tempo no quarto, começou a passar ainda mais.” Sabe que a filha foi ficando mais calada e mais murcha. Desconfia até dos animes (desenhos animados japoneses) que a filha começou a ver. “Eu não sei, mas acho aquilo muito depressivo.” Até que, um dia, a mulher recebeu um telefonema da mãe de uma colega da escola da filha. A avisá-la de que algo de estranho se passava. “Nesse dia, quando chegámos à beira dela, a mãe puxou-lhe as mangas da camisola para cima e vimos que tinha os pulsos cortados.”

“Não foi bonito”, reconhece. “Muitos gritos, choro, fiquei tão cego que, para não lhe bater, parti-lhe o telemóvel.” A reação imediata de quem é tomado de súbito pela frustração e a angústia. Pela incompreensão também. “Ainda hoje não consigo perceber.” Depois, com mais calma, tentaram conversar. “O passo seguinte foi procurar ajuda na escola, falar com os professores, pedir para estarem atentos. Nessa altura, começou também a ser acompanhada pela psicóloga da escola. Fomos insistindo no diálogo em casa, tentando puxá-la para sair mais, e as coisas foram acalmando.” Que se tenham apercebido, o episódio não se repetiu. “E ela até está mais comunicativa. Mas mesmo assim ando sempre de pé atrás. Porque quem passa por uma situação destas fica sempre desconfiado.” Tanto mais quanto Armando continua a deparar-se com umas quantas pontas soltas. “Ela nunca conseguiu explicar-nos bem por que razão o fez. Mas havia claramente inseguranças e falta de autoestima próprias de uma adolescente. Problemas com o corpo. Mas, caramba, eu também tive, quando era adolescente. Acho que todos passámos por isso e não andámos propriamente a cortar-nos com um x-ato.”

O desabafo de Armando toca num ponto relevante, desconstruído pela pedopsiquiatra Bárbara Romão. “Os jovens podem sofrer de uma forma mais internalizante, que é aquele sofrimento que provoca maior apatia, que puxa mais para estar deitado, ou mais externalizante, que é quando o sofrimento é exteriorizado. E hoje em dia o sofrimento mais comum é o externalizado. Já não há tanto aquela inibição de incomodar o outro, de não querer dar nas vistas, que se devia muito a uma educação mais autoritária. Neste momento, como o modelo parental mais prevalente é um modelo mais permissivo, isso faz com que o sofrimento seja mais externalizado. Mas também faz com que haja jovens mais narcísicos, menos gratos, mais exigentes, mesmo em relação aos próprios pais.” E, embora admita que a percentagem apresentada no estudo (um quarto dos jovens) a surpreende, não tem dúvidas de que “é um fenómeno crescente”, que atende cada vez mais jovens com “pequenos cortes” e que há um “agravamento enorme”, a todos os níveis. “A procura disparou com a pandemia. Já não estou a aceitar primeiras consultas porque não tenho capacidade de resposta.”

Ivone Patrão, psicóloga clínica e coordenadora do projeto “Geração Cordão”, aponta outros fatores, mais relacionados com a esfera pessoal, que podem pesar. “As questões relacionadas com a imagem corporal, os problemas ligados ao comportamento alimentar, as dificuldades na socialização e interação com o grupo de pares ou mesmo as disfuncionalidades familiares, tudo isso pode contribuir para que haja comportamentos autolesivos. Depois, os estudos dizem-nos que adolescentes com uma personalidade mais introvertida ou com características de um neuroticismo mais elevado estão mais sujeitos. Mas claro que isto não quer dizer que todos os miúdos introvertidos se vão cortar.” Chama ainda a atenção para outros dois pontos relevantes: o primeiro é que estes comportamentos são mais típicos nas raparigas, mas “também há rapazes a fazê-lo”; o segundo é que quando acontece uma vez, “a probabilidade de se repetir é grande”.

Hugo Tavares, pediatra no Hospital Lusíadas Porto, onde é responsável pela “consulta do adolescente”, também tem notado um aumento substancial do número de jovens que adota comportamentos autolesivos. “Os últimos tempos têm sido inacreditavelmente pródigos neste tipo de episódios.” O pediatra distingue três situações-tipo. “Há casos em que, quando nos chegam, já temos conhecimento de que estes comportamentos ocorreram; há outros em que os pais se apercebem que há uma mudança de atitude e depois, durante o exame da consulta, vamos dar com as marcas dos cortes; e há ainda aquelas situações em que não há qualquer indício percecionado pelos pais e acabamos por ser nós a descobrir.” Frequentemente, os pacientes tentam esconder, arranjam justificações, dizem que foi o gato que os arranhou ou invocam outra qualquer desculpa. Noutros casos, “até fazem gala disso”. “Há situações em que a questão é a transferência da dor psicológica para a dor física. E há outras em que o veem como um castigo que têm de cumprir. Porque se portam mal, porque só causam problemas à família, porque a escola não corre bem, porque os amigos não gostam deles. Seja como for, é sempre um sinal muito importante de perda do controlo, que nos deve preocupar. Porque dali para outras situações que põem em causa a vida pode ser um passinho.” Bárbara Romão também realça que estes fenómenos “nunca devem ser negligenciados”. “O mais importante é não desvalorizar. Uma automutilação pode ter vários significados, mas é sempre caso para consultar um especialista. E também é importante não culpabilizar, mostrar compreensão, comunicar.”

E num plano mais alargado, o que pode ser feito para reduzir estes números e cuidar da saúde mental dos mais jovens? O psiquiatra Diogo Guerreiro aponta alguns pontos cruciais. “É preciso falar mais, aumentar a literacia dos pais e dos professores, para que saibam reconhecer os sinais de alarme. É preciso que os próprios jovens saibam a quem podem recorrer. Tem havido um aumento brutal das patologias de saúde mental e, com os meios que temos, é muito difícil encontrar uma resposta cabal na rede. Tem de haver uma abordagem mais geral, que envolva a escola, a sociedade, em que os professores estejam à vontade para falar sobre estes temas, em que tenham ao seu dispor um kit básico de ferramentas para abordar o assunto, em não haja tabus. Há muito a ideia de que falar sobre estes comportamentos vai exponenciá-los, mas uma das medidas que mais eficácia tem é falar sobre eles.” Além do imperativo reforço da rede de psicólogos e pedopsiquiatras do SNS. Até porque, como lembra João Bessa, da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, o “sofrimento psíquico na infância e adolescência pode suscitar o desenvolvimento de patologia psiquiátrica na idade adulta”. Por isso, não tem dúvidas: “O foco de intervenção deve virar-se cada vez mais para estas janelas temporais que sabemos que são cruciais no desenvolvimento pessoal”.

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