Opinião de Pedro Cruz: o insuportável som do silêncio na Ucrânia

(Foto: Aris Messinis/AFP)

Opinião de Pedro Cruz, jornalista da Global Media Group, que esteve na Ucrânia, em diversas cidades, a acompanhar as primeiras quatro semanas de guerra.

Na primeira manhã na Ucrânia, a neve de fevereiro – que no ano passado não caiu com abundância – deixava, ainda assim, um manto branco e gelado que o sol não conseguia derreter com facilidade. O ar frio das primeiras horas do terceiro dia de guerra parecia indiferente a tudo. Havia uma ausência de gente, de carros, de bulício próprio de uma cidade. Mais do que o sopro dos mísseis, que esventravam casas e dividiam a meio prédios gigantes, mais do que o som estridente, opressivo e ameaçador das sirenes, que avisavam da possibilidade de ataques aéreos, era o silêncio que se tornava absolutamente insuportável.

É a ausência total de sinais de vida que cria uma sensação bem pior do que um disparo de um morteiro ou o silvo de uma sirene. As cidades estavam desertas de gente. Uns fugiram da guerra, outros (sobre)viviam escondidos em abrigos, caves insalubres e sobrelotadas, com medo do que estava a acontecer lá fora.

No comboio da noite para Kiev, o monstro metálico não conseguia abafar o ruído, mecânico e repetitivo, dos rodados em cima dos carris. Mas até esse som parecia soltar-se de forma diferente. Lá dentro, nas carruagens, nem uma nesga de luz era permitida. O comboio circulava com instruções para que não se desse por isso. Na capital, os poucos que se atreviam a circular pisavam o solo de modo cuidado e prudente, como se uma passada mais forte pudesse ser escutada pelo inimigo. Até as senhoras de idade, carregadas com o peso dos anos e dos sacos de compras, pareciam ter calçado de pelica, de forma a tornarem os passos silenciosos e clandestinos. Até o choro e o pranto diante da tragédia eram contidos. Em Odessa, quando chegava a hora do recolher obrigatório, a cidade tornava-se fantasmagórica, como se já tivesse deixado de existir, abafada e escondida.

Não foi a primeira vez que tive arrepios com o silêncio. Numa guerra – tinha-me acontecido o mesmo no Líbano, em 2006 – o silêncio não é sinal de calma. É anúncio de que “alguma coisa” vai acontecer. Só não sabemos onde e quando. É insuportável e angustiante o som do silêncio.

Pedro Cruz é jornalista e esteve na Ucrânia, em diversas cidades, a acompanhar as primeiras quatro semanas de guerra
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)