Mialgias na cabeça, perto do ouvido, no pescoço. Estalidos, dificuldade em abrir a boca, por vezes em fechá-la. As disfunções temporomandibulares são mais comuns do que possa pensar.
Maria Luísa Horta, 72 anos, residente em Alhandra (Vila Franca de Xira), não sabe precisar quando é que as dores a começaram a atormentar, mas foi seguramente há “mais de dez anos”. Andavam ali perto do ouvido direito, estendiam-se até à boca, por vezes eram insuportáveis. Isto apesar de Maria Luísa ter procurado solucionar o problema atempadamente. “Quando fui ao dentista, queixei-me das dores, disseram-me que fazia muita força com os maxilares, aconselharam-me a usar uma goteira durante a noite. Mas aquilo não melhorou. E andei mais cinco anos assim.” E nisto as dores foram-se exponenciando, o simples facto de ir ao dentista fazer uma limpeza era um suplício porque mal conseguia abrir a boca. E bocejar igual. “Eu até segurava no queixo para não abrir tanto a boca e me doer menos.” Inconformada, procurou então um ortopedista. Mas a receita foi semelhante. Os resultados também. “Deu-me outra goteira diferente e andei assim mais cinco anos, cada vez com mais dores. A dada altura já pensava que um dia já nem mastigar ia conseguir.”
Foi já reformada, e neste estado de semidesespero, que certo dia, enquanto via televisão, ouviu um especialista falar de disfunções temporomandibulares. “E achei que era mesmo aquilo que eu tinha.” Vai daí, ligou para a RTP (onde viu a tal entrevista) e não desistiu enquanto não arranjou forma de chegar àquele médico. Chegou mesmo. “Afinal, não era nada, não era nada, e de um momento para o outro tinha de ser operada. Mas disse logo que sim, mesmo tendo de pagar do meu bolso.” E não deu o dinheiro por mal empregue. em janeiro foi operada, depois fez fisioterapia e terapia da fala durante dois meses, mais coisa menos coisa. “Mas nunca mais tive dores nenhumas”, assegura, visivelmente entusiasmada.
O problema que afligiu Maria Luísa durante anos a fio não é ainda amplamente conhecido dos portugueses, mas as estatísticas mostram que deve merecer atenção crescente. Segundo estudos internacionais, as disfunções temporomandibulares afetam cerca de um terço da população, sendo o sexo feminino o mais fustigado. E quais são as causas? David Ângelo, médico estomatologista que dirige o Instituto Português da Face, onde Maria Luísa foi tratada, explica. “Trata-se de um problema multifatorial, havendo, portanto, vários mecanismos envolvidos. Mas há cada vez mais uma evidência marcada de que o stress e a ansiedade contribuem de forma significativa para o desenvolvimento e o agravamento desta patologia. Sob stress, temos muito um hábito de apertamento dentário. Para algumas pessoas, são muitas horas, muitos dias, muitos anos assim. E nem sequer se apercebem disso.”
O especialista, que é também professor auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, partilha dois exemplos curiosos. “Em tempos, tive uma doente que, quando lhe disse que apertava os maxilares, ela respondeu ‘não é possível’. Conduzia bastante. E então começou a reparar que sempre que entrava no carro apertava os maxilares, por causa de um acidente grande que já tinha tido. Também tive outra senhora que o fazia enquanto passava a ferro.”
Tensão muscular, maus hábitos, bruxismo
Antes de aprofundar os sintomas, o diagnóstico e as possíveis formas de tratamento, vale a pena perceber o que é exatamente a articulação temporomandibular, a grande responsável por tudo isto. “É uma pequena articulação que liga a mandíbula ao nosso crânio e se localiza mesmo em frente ao ouvido. Se se puser o dedo indicador à frente do ouvido e se abrir e fechar a boca, rapidamente a conseguimos identificar”, esclarece David Ângelo. Quanto aos sintomas, não são sempre iguais, variam de acordo com o subtipo da disfunção, mas um dos mais comuns é a mialgia. Ou seja, a “dor, tensão ou desconforto da zona muscular da cabeça e ou do pescoço”. E que está associada à “tensão muscular crónica, a maus hábitos, ao apertamento dentário, ao ranger dos dentes [bruxismo], à pressão nos maxilares”.
O estomatologista elenca, no entanto, outros sinais possíveis. “O doente também pode sentir estalidos, ter uma limitação crescente em abrir a boca, uma sensação de desencaixe dos maxilares. Ou então estar a bocejar, ficar com a boca presa e não a conseguir fechar mais. Tive uma doente que, no espaço de dois anos, teve de ir 34 vezes às urgências com episódios destes.” Há ainda casos de desgaste das estruturas ósseas, as chamadas osteoartroses, de subdesenvolvimento destas estruturas ou até de patologias tumorais. E como se diagnostica? “Fazendo a história clínica do doente, uma boa palpação de toda a musculatura. Depois, nalguns casos concretos, pode ser preciso fazer uma ressonância magnética para ter um diagnóstico mais específico.”
Quanto aos tratamentos, dependem do subtipo em causa. No caso das mialgias, por exemplo, o protocolo adotado no Instituto Português da Face contempla a injeção de toxina botulínica, seguida de várias sessões de fisioterapia. Marco Clemente, fisioterapeuta que trabalha com frequência este tipo de disfunções, detalha o papel desta ciência da saúde no processo de recuperação do doente. “Fazemos terapia manual. Carregamos em pontos específicos e pressionamos para conseguir manipular a articulação e deixá-la mais solta.” O fisioterapeuta justifica este procedimento. “Quando o músculo está contraído, regista-se um aumento da tensão, que por sua vez faz com que haja menos vascularização, ou seja, menos sangue a circular. E isso traduz-se numa menor capacidade de eliminar as substâncias libertadas durante a contração muscular. Além de que há uma estimulação dos recetores que vão desencadear a dor.”
Com o tempo, Marco foi percebendo que a intervenção teria de ir além disso. “A terapia manual e os exercícios têm um efeito muito positivo a curto e médio prazo, mas se não a associarmos a uma tomada de consciência dos hábitos disfuncionais e das situações que geram maior tensão muscular e a uma mudança comportamental, dificilmente vamos conseguir que a situação melhore a longo prazo.” O especialista dá um exemplo concreto. “Um dos problemas que mais contribui para esta disfunção é o bruxismo. Então, tentamos intervir nesta alteração comportamental, ensinando o paciente a perceber o que está a acontecer, quais são os fatores que levam ao agravamento da situação e a desenvolver estratégias para lidar com o stress.”
Mas casos há em que a fisioterapia não resolve o problema. Nem nenhum dos tratamentos convencionais. E aí a solução passa frequentemente por uma pequena cirurgia. “Os doentes que precisam de ser operados são raros. Claro que no nosso caso é diferente. Somos um centro especializado, o doente que nos chega já tirou os dentes do siso porque lhe disseram que resolvia o problema, já usou goteira ou aparelho ortodôntico, vive há anos com dor. Daí que com mais frequência tenha indicação cirúrgica”, aponta David Ângelo, doutorado em cirurgia maxilofacial. Rute Marques, médica-dentista, admite que o tempo tem mostrado que, em certos casos, a cirurgia é mesmo a única opção. “Durante muito tempo, utilizávamos quase somente goteiras de desprogramação neuromuscular ou de relaxamento. No entanto, há muitos pacientes que nos chegam com muitos anos de goteiras e não têm melhorias. A verdade é que muitos casos são cirúrgicos e não temos como fintar isso. E aí, encaminhamos para os médicos especializados.” Deixa ainda uma partilha reveladora: “Chegam-me muitos pacientes com estas queixas e nos últimos tempos cada vez mais. Na nossa interpretação, além de uma maior consciencialização para o problema, isso deve-se a um aumento do stress e da ansiedade”.
Factos & números
34%
A percentagem da população mundial que se estima que seja afetada por disfunções temporomandibulares (DTM).
A mais comum
Atualmente, as DTM são consideradas a causa mais frequente de dor orofacial de origem não dentária.
90%
A percentagem estimada de doentes que recebe tratamento conservador.