Joel Neto

O seu próprio nariz


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

No oftalmologista, perguntam-me: “Artur? Olha, que bonito! Vem de onde? Alguém na família?”.

A interjeição já traz alguma eloquência, porque os nomes próprios têm as suas modas e, aparentemente, este está fora delas (ainda bem). De resto, quem mo pergunta não é alguém que me conheça. Alguém que me conheça sabe que mais depressa eu faria o género de agrado em causa a um adversário do que a um familiar (o que é recíproco).

Não há outro Artur na minha família, não. Convivi com dois em miúdo, um avô e um neto, e o neto até se tresmalhou (como é que se diz) pelos caminhos da vida. De resto, lembro-me de mais três ou quatro, todos conhecidos distantes, e dois deles bastante abominosos. Propus Artur porque me soa bem – apenas isso.

Isto é: porque tem uma ressonância literária, até mágica; porque significa “pedra”, “grande urso”, “homem forte”; talvez porque o melhor protagonista que escrevi se chame “José Artur”; mas sobretudo porque (e precisamente porque) não há ninguém na minha família chamado Artur. Eu quero, como a Marta quer, que o meu filho – que o nosso filho, que cada um dos nossos filhos – seja dono do seu nome. Aconteceu que Artur estava disponível, era nobre sem ser arrivista e, além disso, a Marta aceitava-o.

Aliás: quero que o meu filho seja dono do seu nome como quero que seja o autor da sua história, o arquitecto do seu plano de vida. Para que haveria eu de pedir que se empenhasse em virar (sei lá) advogado, se isso significasse que em algum momento da vida tentaria manter um pedófilo fora da cadeia ou celebraria que um rico, ao fim da uma disputa com um pobre, tivesse conseguido ficar com dinheiro que não lhe pertencia?

Não: é demasiado fácil criar um mentecapto, hoje – ademais se nos empenharmos nisso. O meu filho que defina o seu próprio rumo e se responsabilize por ele. Que seja carpinteiro ou jardineiro, se for dado à criatividade. Que seja cantoneiro ou sucateiro, se não for.

Pintor neo-expressionista ou caiador de paredes – serei capaz de admirá-lo na mesma medida. O que me preocupa é ensiná-lo a fazer escolhas. A discernir as proporções das coisas. A enfrentar o medo. A valorizar o silêncio. A cultivar a beleza. A respeitar a Natureza. A exercer a sua liberdade, protegendo a dos outros. A transformar a raiva em mudança – para melhor. A rejeitar incondicionalmente o ódio – o racismo, a homofobia, a misoginia, o classismo, o idadismo, a oposição ao aborto, a oposição ao casamento gay, a oposição à eutanásia e todas as demais maneiras que as pessoas encontram para odiar.

Será melhor do que eu. Se, apesar disso, conseguir encontrar onde depositar um mínimo de admiração pelo pai, ficarei grato. Mas que não faça disso um mote. De todos os tipos abomináveis de homem, o mais descoroçoante é o daquele que fez da admiração pelo pai um carácter. Tentando viver a vida como o pai a viveu, gostar do que o pai gostou, pensar como o pai pensou, ser o que o pai foi – conheço desperdícios assim. Talvez em nenhum outro grupo haja um índice tão alto de nomes recebidos por herança.

Não, prefiro Artur e sucateiro. Empregado de sucateiro. Mas inteiro. E livre.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)