Joel Neto

O primeiro dia


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Aos oito anos, pendurei uma bola de borracha na corda da marquise – chamámos-lhe sempre “marquise”, embora já então fosse uma cozinha, com um fio de nylon preso de lado a lado porque secar roupa nos Açores é um inferno – e pus-me a treinar boxe. É claro: já tinha idade para perceber que a força de um murro se treina com sacos pesados. Mas o Rocky Balboa também usava uma espécie de bolas insufláveis, supunha eu que para praticar o ritmo – e o problema era que havia na escola um rapaz dado a infernizar-nos o dia inteiro com carolos, joelhadas e puxões de orelha.

Tinha uns quatro anos mais do que nós, e era pior do que o Eugénio – ou “Ingéne” -, cuja alegria se revelava apenas quando brincávamos aos toiros e nos podia espetar os galhos nas aduelas. Ao Helder, chamavam-lhe “Veneno” (mas eu nunca lhe chamei nada, nem uma coisa nem outra, porque não seria capaz de olhá-lo de frente). Creio que ainda hoje tenho medo dele, embora nem saiba se é vivo. Nunca o ter reencontrado pode bem ter sido condição para chegar a fazer as pazes com estas ilhas.

Portanto, não: eu não gostei sempre da escola. Nem a Marta: deixarem-na na pré-primária era um inferno, e mesmo na primária, segundo conta o João, chorou durante bastante tempo. Mas fomos ambos bons alunos (ela a um nível quase absurdo, mas isto também não é uma competição) e, sobretudo, temos hoje idade suficiente para perceber que gostar da escola não garante o sucesso, muito menos a felicidade.

Agora, se for um indicador, talvez devamos celebrar o primeiro dia de creche do Artur. Porque menos resistência era impossível: assim que viu a Pilar, não descansou enquanto não lhe experimentou o colo. Naturalmente, ter passado os dois meses anteriores com a Lília não desajudou. E, além disso, a sala dos Peixinhos A, em cuja porta o nome dele já aparecia inscrito, era toda ela apelativa, com os seus balancés, cavalinhos de madeira e piscinas de bolas plásticas. Mas ele é um bebé gregário: foi a Pilar que o conquistou. E logo no dia da reunião – nem o ar sério da Irmã Helena o desmobilizou.

De resto, sim: também nós pensámos mantê-lo em casa até aos três anos. Chegámos a declinar uma vaga no colégio. Mas ainda ele não tinha feito seis meses, e já eu estava ao telefone a implorar por recuperá-la, porque não conseguíamos trabalhar. Ele precisa de que trabalhemos: é do trabalho que lhe compramos os iogurtes. E, de qualquer modo, de lá para cá só consolidámos a certeza de que essa sempre fora a melhor opção. O Artur tem nove meses e já faz imensa coisa: interage, gatinha, palra, trepa, abre e fecha portas e gavetas. Todo o dia brincamos, falamos e cantamos com ele – estimulamo-lo bastante, acho. Mas nunca conseguimos ensinar-lhe, por exemplo, a dizer adeus. Falta método e, já agora, falta gente.

É claro que, com isto, teremos outras chatices. As infecções, por exemplo. Os aniversários. As associações de pais. Mas ao menos há gente e há método. Sempre reduzimos o risco de que venha a inscrever no seu Facebook, um dia: “Estudou na universidade da vida.” Por favor, Pai, que és bom e vês tudo: permite que o meu filho nunca chegue a dar por si numa posição em que lhe ocorra inscrever no Facebook: “Estudou na universidade da vida.”

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)