O outro nome da inteligência
Às vezes vejo o Artur brincar com a mãe – ela a provocá-lo e a esconder-se, ele a provocá-la e a esconder-se -, e murmuro: “Até parece que já tem sentido de humor”. Não chego a dizê-lo em voz alta, envergonhado da minha própria alucinação, mas dali a pouco a Colette tem um ataque de fúria contra uma almofada e ele ri tão desvairado que eu me detenho: “Tu queres ver que já tem mesmo sentido de humor?” – posto o que olho por cima do ombro, receoso de que a Marta tenha ouvido o meu pensamento, e disfarço.
Finalmente, vou ao Google, digito “when do babies develop a sense of humour” e fico a saber que, afinal, não é nada de especial. O meu bebé tem de facto sentido de humor, e não é só ele: todos os bebés com mais de um mês já têm sentido de humor e muitos deles, ao fim de sete ou oito, são até capazes de usar expressões faciais para desconcertar os pais. Na verdade, o que distingue os bebés, à medida que vão crescendo, é se continuam a desenvolver o sentido de humor que ganharam ou, pelo contrário, começam a arriscar deixá-lo definhar, como tantos adultos demonstram ter feito um dia.
Ora aí está uma aprendizagem das grandes.
Acho que era Wittgenstein quem dizia que o humor não é um estado de espírito, mas uma visão do Mundo. Não será menos do que isso, e de modo nenhum se esgota no riso. Evidentemente, sermos capazes de nos rirmos das avarias do cosmos é desde logo uma afirmação. Significa, pelo menos, que somos capazes de perceber que há uma desordem (o que demonstra não só conhecimento da ordem, mas sensibilidade à sua alteração) e, ao mesmo tempo, conseguimos encontrar um património nela. Daqui à capacidade de nos rirmos de nós mesmos, de conseguirmos determinar os nossos fracassos e encontrar igualmente um bem neles (isto é: não só a necessidade, mas a possibilidade de crescer), já vai menos distância.
Só que rir é apenas uma parte da qualidade, provavelmente nem sequer a maior parte. Porque ter sentido de humor também é ser capaz de ficar triste com alguma coisa, ou indiferente, ou indignado. Todo o estado de ânimo, positivo, negativo ou mesmo neutro, é um humor, e o sentido de uns não existe sem o sentido dos outros. Que, no fundo, representa sobretudo um sentido de proporções – o sentido das proporções das coisas, do seu tamanho relativo, da sua real importância. É isso que fazemos quando nos rimos de nós: damo-nos um desconto. O que pressupõe sabermos que há coisas maiores (e também menores) do que a nossa relevância, o nosso entusiasmo, a nossa angústia.
Não é um sinal de cultura, o sentido do humor. Não é um sinal de inteligência, como gostamos de dizer. É a própria inteligência, como é a própria cultura. É ele quem faz luz sob a superfície das coisas, quem nos traz a capacidade de observar de várias perspectivas, a ousadia de pensar de outras maneiras, e a inventiva, e a espontaneidade. E tudo isso, dizem os pedagogos, pode treinar-se já: dançando, brincando e rindo; em breve, surpreendendo; não tarda, transgredindo – e, devagar, deixando que comecem a ser eles, os bebés, a comandar essas interacções, para libertar a imaginação.
Como é que nós chegámos vivos aqui, filhos de pais que nos dirigiam duas palavras por dia, podia ser um mistério. Mas talvez se limite a mostrar que o Mundo tem o seu próprio sentido de humor também.