Margarida Rebelo Pinto

O mestre e o aprendiz


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

“A Fuga de Wang-Fô” é um dos mais belos contos escritos por Marguerite Yourcenar que recria uma lenda chinesa milenar. Wang-Fô era o mais famoso pintor do seu tempo, o Imperador cresceu fechado no seu palácio a admirar o trabalho do génio que decorava salas e corredores, retratando a China bela, limpa e pura, sem sombras nem maldade. Quando o Imperador se fez homem e conheceu o país com todos os seus horrores, sentiu-se enganado pelo pintor, ordenou a sua prisão e condenou-o à morte. Wang-Fô, como todos os grandes mestres, tinha por companhia um jovem aprendiz chamado Lin, que o seguia por todo o lado. Perante a crueldade da sentença, pediu um último desejo: pintar uma parede do palácio. O imperador acedeu em conceder-lhe a derradeira vontade e Wang-Fô começou por pintar o mar, com suaves ondas. O mar galgou as paredes e foi inundando a sala. Então, o pintor desenhou uma pequena embarcação com dois remos e um rochedo. Quando a água já atingira uma altura considerável, subiu para a embarcação com Lin, e remou em direção ao rochedo. Ao passar por trás deste, a embarcação desapareceu.

Um artista nunca vê as coisas como elas realmente são. Se visse, deixaria de ser artista. A bela China retratada no interior do palácio talvez fosse a China que o pintor via, através dos seus olhos iluminados pela arte, ou a China como ele gostaria que fosse. A arte também serve como meio para projetarmos os nossos sonhos e ideais, sejam eles para o Universo, ou para o nosso coração, o que no fundo é quase a mesma coisa. O Imperador não lhe perdoou a ilusão que tomou como uma mentira, sem perceber que uma das funções da arte é exatamente a de iludir a realidade, ainda que por vezes a retrate de forma crua. Como dizia a minha querida Agustina, é preciso mascarar a realidade para a ir domesticando. Quando o mestre e o aprendiz escapam à morte através de um artefacto fantasioso, é fácil fecharmos os olhos e imaginarmos que foi assim que tudo aconteceu. A narrativa é tão bela e libertadora que nos dá uma sensação de vitória pelo sucesso da fuga.

Quantos de nós, em momentos crucialmente dolorosos da nossa existência, não desejámos pintar uma fuga que nos liberte do caminho das pedras a que a realidade nos obriga, a via cruccis da eterna repetição dos mesmos erros, o peso de subir todos os dias a mesma montanha, qual Sísifo dos tempos modernos? A fuga do pintor é um hino à liberdade e à capacidade de superação, por mais difíceis que sejam as circunstâncias.

Às vezes gosto de imaginar o que aconteceu ao pintor e ao seu aprendiz depois de terem escapado à sentença cruel do Imperador. A China sempre foi imensa, um mundo dentro do Mundo, em parte fechada por uma muralha mais extensa do que a fronteira de muitos reinos. Será que o Imperador, ultrajado com tal proclamação de liberdade, ordenou a captura dos foragidos ou, vencido pelo engenho da arte, encolheu os ombros e secretamente se regozijou com tamanha audácia?

Todos carregamos dentro de nós um Imperador, alguém que se agarra à realidade e à razão e que condena os sonhadores, ou um sonhador otimista e incurável, que nunca se cansa de desafiar todas as paredes e muros. Prefiro ser o mestre, despojado e livre, que vence todos os muros com a suavidade da água, a servir o monstro da racionalidade. Prefiro a ausência e o vazio à tristeza das sombras.