O melhor cão
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Descobri o Gauguin no dia em que enterrei o Melville. Há algo de absurdo nisso porque, cachorro ainda, o Gauguin dormiu em cima da minha cama durante um ano. Foi o ano mais solitário da minha vida, e o zelo com que me lambia o rosto quando me sentia angustiado era o mesmo com que se deixava quieto quando percebia que eu queria ficar a ler em silêncio.
Só que o Melville ocupava o espaço todo. Fez tanta asneira, e durante tantos anos, que eu acordava de manhã, revirava os cobertores por cima do Gauguin e ia conferir os estragos da noite. Do Gauguin – como da Jasmim, na altura havia três cães cá em casa -, demorava até a dar-me conta. Só quando o Melville foi parar ao cemitério que lhe construí na matinha, por detrás do calistemo, me detive nele.
E era admirável. Eu estava muito triste, a Marta estava muito triste, e durante semanas fez tudo para nos apaziguar, apesar da sua própria solidão. Deixou de roer objectos e de destruir plantas. Aprendeu a andar sem trela, entre os dois, nas caminhadas pelo pontão. Ficou horas infinitas no chão do shed, a ver-me trabalhar – fez tudo o que os outros faziam de bom e nada do que faziam de mau, desde logo ser sossegado como a Jasmim (e não o Melville) e desprovido de ciúme como o Melville (e não a Jasmim).
Foi por isso que, quando decidimos arranjar-lhe companhia, visto haver um bebé a caminho, escolhemos tornar a comprar um cão, excepção que eu só abrira com ele. Um whippet compreendia imensas vantagens: não tinha cheiro, não largava pêlo, era mimoso e, além disso, comportava-se bem com bebés. Entretanto, havia uma ninhada disponível aqui na ilha – e, nas fotos, a Colette era a mais mosca-morta.
Claro que o tiro nos saiu pela culatra, porque onde o Gauguin é obediente a Colette é insurrecta, onde ele é higiénico ela é emporcalhada e onde ele se detém a avaliar os riscos ela atira-se de cabeça.
Da primeira vez que lha mostrei, ele olhou para mim como que atónito: “Então, mas agora ainda me trazes isto para eu criar?”. Ela nunca mais parou de espalhar o terror. Não há uma só peça de roupa do Artur que ainda não tenha tentado comer. Todos os dias leva o tapete do WC para a enxerga do corredor com a mesma dissimulação com que um mágico tira o soutien a uma senhora. E, antes de se ir deitar, passa meia hora às voltas pela casa, a cartografar asneiras para o dia seguinte.
Mas, durante as semanas em que estivemos alheados com o nascimento e depois a infecção do Artur, o Gauguin foi pai, mãe, irmão mais velho e primo afastado dela. E, de lá para cá, manteve-se disponível para esses papéis todos em favor do bebé também. Se a Colette tem um descuido, olha para mim com o ar de: “Tudo bem, foi só cocó”. Se é o Artur, meneia a cabeça como quem diz: “Tudo bem, foi só xixi”. Quando ele chora muito, vai deitar-se à porta do quarto, num plantão preocupado. Quando vamos todos dormir, abre os braços à Colette e dorme com ela em conchinha.
Temos fotos – são um amor. E agora estamos ansiosos por passar desta fase das lambidelas controladas àquela em que simplesmente largamos o Artur na cama deles: “Toca a imunizar”. Há-de haver sempre um lugar que é da inocência e não é de mais nada. É o lugar dos cães, e é também o das crianças.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)