Valter Hugo Mãe

O Dino d’Santiago


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Quando o disco do Dino d’Santiago saiu, na euforia que cria sempre nas pessoas que gostam de música, uma frase pairou sobre todas as conversas. Não resisti, à altura, a falar disso numa crónica minha. A falar dessa frase que diz: “Nossos corpos também são pátria”. Há dias, em conversa com o magnífico músico, dizia-lhe que o amor por Fernando Pessoa não me convence de que minha pátria haveria de ser a Língua portuguesa porque quero ser de uma amplitude bastante maior que se completa também com o indizível, o sem idioma, o silêncio e a mudez, a apneia que nem permite qualquer oxigénio, o pressentimento que sequer se pode partilhar. Pátria é muito do que se diz e de quem diz, mas é também de quem não fala nem tem voz. É imperioso que todos os lugares sejam lugares onde se legitimam os calados, sem discurso aparente, aqueles que aprofundam de outro modo, os que são humanos até no exterior de nosso entendimento.

Deu-me a vida o privilégio de passar perto do Dino d’Santiago esta semana que acabou. Nas alegrias de quem o via, sei bem o que se defende: a beleza da música e a importância de haver alguém como ele a provar que há caminho para as pessoas negras para lá das periferias enjeitadas, boicotadas.

É, contudo, prova também de que apenas uma heroicidade qualquer parece tirar as pessoas negras de suas lonjuras sociais, dessas lonjuras para que foram relegadas por séculos de submissão, exploração, discriminação. Não é senão a heroicidade que traz as pessoas negras ao centro da comunidade portuguesa, e isso custa ver. Que a normalidade ainda não tenha aberto vaga para negros nas moradias do centro, nos prédios disputados das boas avenidas, nos empregos mais sossegados, nos que cuidam de quem os cuida também.

Quando o Dino d’Santiago ergue sua t-shirt, o peito, dizendo “Nossos corpos também são pátria”, impõe a presença de sua pele na nossa realidade, obrigando a que o debate seja colocado. Por tantas agressões e tanto tabu, ponderar os negros portugueses é ponderar bravos sobreviventes. Aqueles que resistiram, e resistem, ao grito de outrora e à censura de hoje.

Conversar com o Dino, nascido em Portugal mas descendente de cabo-verdianos, é testemunhar como falta fazer tanto. Falta criar memória e toda a paridade. Porque não há democracia sem memória e sem paridade. E não há democracia enquanto apenas os mais brilhantes se vêem transpor as portas. Apenas os que ganharam capacidades quase mágicas de deslumbrar as multidões são admitidos, e ainda assim com cautela, no reduto privilegiado dos brancos.

Ele, negro, que nasceu em Portugal, e eu, branco, que nasci em Angola, experimentamos conceitos prévios bastante distintos. Senti, contudo, que sem saber dançar, sou tão a mesma coisa que ele é. Tanto assim que me espanta que eu não seja também gentil. Comparado com o Dino, sou um rinoceronte nas porcelanas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)