Jorge Manuel Lopes

O desafiador e singular John Cale


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

O novo álbum de John Cale resulta de uma longa gestação. “Mercy” (Double Six/Popstock) é o primeiro trabalho de canções originais em 13 anos, mas tem composições que vêm sendo ouvidas em palco desde a década passada. Um disco que prossegue pela via essencialmente eletrónica da sua produção neste século.

“Mercy” segue por paisagens noturnas rumo à luz. No tema-título, com Laurel Halo, longo como os créditos finais de um filme, assim como em “Noise of you”, como que se fecha um círculo de inspiração mútua com The Blue Nile – é fácil imaginar Paul Buchanan, voz da banda escocesa, a habitar estas canções, um crooner entre sombras e recursos aparentemente escassos, mas em que cada batimento sintético conta.

Envolto em véus sónicos e ecos, Cale flutua em território mais familiar em “Marilyn Monroe’s legs (beauty elsewhere)”, ao lado de Actress. A mesma sensação se encontra em “Time stands still”, com a dupla Sylvan Esso, que recupera o seu registo vocal mais lírico e dramático, a câmara lenta orquestral pontuada por eclosões rítmicas que deverão algo ao hip-hop em declinação trap. “Story of blood”, rodeada pelos murmúrios de Weyes Blood, é pura sessão de imersão, sete minutos etéreos de baixa pulsação.

Paradoxalmente, “Mercy” ganha nuvens e fantasmas à medida que a presença de John Cale se torna menos elusiva. “The legal status of ice”, com os Fat White Family, mete o rock numa liquidificadora e evoca o modernismo distópico à luz dos anos 1990. Pelo meio também há uma espécie de canção radiofónica, “Night crawling”, um encontro estético com David Bowie reforçado pelo videoclipe em que as versões animadas de ambos passeiam na noite nova-iorquina dos anos 1970. O final, desanuviado, traz a agridoçura psicadélica de “I know you’re happy”, a voz de Tei Shi crucial a responder a Cale; e “Out your window”, balada sinfónica para piano repetitivo, um musical de salvação que conta tudo numa mão cheia de minutos. Tudo John Cale, quase 81 anos, uma vida criativa ampla, desafiadora, única.