Joel Neto

O casal sem filhos


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

O casal sem filhos é o casal mais bonito do restaurante. Senta-se na melhor mesa da sala, reservada com zelosa antecedência, e come olhos nos olhos, embora nem sempre (como diz a canção) o que sai das suas bocas pareça condizer com o que cada um deles diz com o olhar. O casal sem filhos está bem vestido, em boa forma, e bebe um vinho sobre o qual poderia ter uma conversa. Os seus gestos são conscientes, os pratos que escolhe sofisticados. Discute coisas interessantes, o casal sem filhos – mesmo quando são repetidas -, e no fim deixa uma gorjeta generosa, mas adequada.

O casal sem filhos come cada vez mais vezes fora, mas às sextas-feiras vai a um bom restaurante, de preferência exótico, talvez um japonês. Escolhe-o pela qualidade da confecção ou mesmo pelo chef, que aliás já se tornou hábito cumprimentar. Os dedos do casal sem filhos encaixam-se nos pauzinhos de uma maneira esguia e elegante, dir-se-ia que orgânica, e a sua destreza não é alheia ao conhecimento que tem daquela gastronomia – naquele lugar e nos outros lugares que, cartesianamente, neste dia preteriu.

O casal sem filhos traz relógios grandes, pelos quais antes de sair de casa substituiu as pulseiras de fitness, mas passa a semana quase toda com estas, a conferir a evolução das suas performances. De qualquer modo, é uma coisa que não incomoda, uma pulseira de fitness: mesmo quando se está a ler o último Philip Roth, ou a ouvir um disco de Miles Davis num surround incrível, ou a folhear distraidamente um álbum de pintura impressionista – até apenas a ver a última série da HBO, em binge watching, para poder desdenhar do Netflix -, o pequeno aparelho continua a contar. É quase um electrocardiograma permanente.

Não que o casal sem filhos seja hipocondríaco. Simplesmente, há informação para que não é mandatório (o casal sem filhos chega a dizer “mandatório”) activar o seguro de saúde: basta ter uma boa app. De resto, o casal sem filhos sabe o valor da informação. Compra os diários, não os semanários, mas aquilo em que se detém mais ainda é as revistas estrangeiras. Os diários são sobretudo para seguir o cartaz cultural.

O casal sem filhos segue o cartaz cultural, decora as críticas do cartaz cultural, discute o cartaz cultural. Como nem sempre encontra os parceiros ideais para isso – nos últimos anos desatou tudo a procriar, até o padel alguns deixaram -, volta e meia dá um giro, de preferência para um daqueles lugares onde nenhum homem foi antes (pronto, vocês percebem, ninguém das relações do casal sem filhos), e onde pode não só contactar com outros modos de vida, mas com outras tradições, linguagens, gastronomias, indumentárias, visões do Mundo. Está tudo no Instagram.

O casal sem filhos é o primeiro a chegar e o último a sair. O casal sem filhos usa buffs e tatuagens. O casal sem filhos tem tempo para ouvir os problemas dos amigos, que aliás se apressa a convidar. O casal sem filhos constrói opiniões. A primeira coisa que um casal com filhos precisa de fazer, na verdade, é tentar conservar o que lhe reste de quando era um casal sem filhos. Mas, ao fim de quase cinco meses, ainda não tive saudades (embora talvez venha a ter, parece que é frequente).

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)