O braço de ferro entre a arte e a inteligência artificial

Álbuns de bandas que já não existem novinhos em folha, artistas falecidos que subitamente “ressuscitam”, centenas de músicas, e de livros, e de pinturas, e de ilustrações que ganham vida em menos de nada. E um mar de questões que se colocam. Sobre direitos autorais, sobre originalidade e criatividade, sobre ética. Sobre o mundo que aí vem e o que queremos dele.

As notícias sucedem-se ao ritmo de uma melodia sufocante. Frank Sinatra canta “Toxic”, de Britney Spears, ABBA de volta, com um concerto virtual super-realista, falsa canção de Drake e The Weeknd torna-se viral, banda Oasis recriada em novo álbum, Beatles preparam-se para lançar uma última canção, ilustração de nova edição de “Alice no país das maravilhas” gera críticas, traduções não-humanas acendem polémica no mercado editorial. Por trás delas, há um denominador comum chamado inteligência artificial (IA), uma superferramenta que está a fascinar meio mundo, a amedrontar outro meio, e que será com certeza imensamente desafiante, em particular no campo das artes.

Olhemos para o caso dos Beatles. Em junho passado, Paul McCartney, icónico membro da banda inglesa que na década de 1960 revolucionou a cena musical, anunciou uma canção final do grupo, com a “presença” do falecido John Lennon. Uma promessa que há bem pouco tempo valeria ao músico um atestado de insanidade mental, mas que foi tornada possível graças às potencialidades da IA. O próprio McCartney explicou que, graças à tecnologia, foi possível extrair a voz do ex-companheiro de banda de uma demo antiga, isolando-a dos ruídos de fundo para conseguir um “áudio limpo”. O burburinho criado à volta do anúncio foi tal que, dias depois, McCartney sentiu necessidade de se dirigir aos fãs, numa publicação feita nas redes sociais. “Temos visto muita confusão e muita especulação à volta disto tudo. (…) Não posso dizer muito para já, mas nada foi artificialmente ou sinteticamente criado”, garantiu, numa tentativa de serenar as hostes.

Em junho, Paul McCartney anunciou um novo tema dos Beatles, em que não faltará a voz do falecido John Lennon. O músico explicou que tal foi conseguido com dedo da IA. Foto: Robert Freeman/AP

No entanto, não faltam episódios em que isso tem acontecido. Em abril, por exemplo, a banda indie britânica Breeze anunciou o lançamento de um “álbum perdido” dos Oasis, tendo sido usada IA para recriar a voz de Liam Gallagher, outrora vocalista do grupo que liderou as tabelas de vendas em 1990 e abandonou os palcos em 2009. “Estávamos aborrecidos à espera que os Oasis voltassem”, fizeram saber, no momento em que lançaram “The lost tapes – volume one”, sob o pseudónimo de AISIS, uma junção de “AI [Artificial Intelligence]” com o nome da banda de Gallagher. Mas o dedo da IA não é sempre tão óbvio. E isso levanta uma multiplicidade de questões e problemas.

Os britânicos Oasis viram recentemente ser lançado um novo álbum com a voz de Liam Gallagher… graças à IA.
Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens

Basta recordarmos o caso ocorrido, também em abril, com um aparente dueto entre os músicos canadianos Drake e The Weeknd. Intitulado “Heart on my sleeve”, o tema foi lançado nas várias plataformas e rapidamente se tornou viral, com milhões de reproduções no Spotify e outras tantas visualizações no TikTok e no YouTube. Só que o que se anunciava como o mais recente êxito da música canadiana não passou, afinal, de um produto da IA, colocado online com o intuito de se fazer passar por um hit original. Na legenda, o utilizador em questão apregoava uma promessa que dá que pensar: “Isto é apenas o início”. Dias depois, a canção foi, sem surpresa, retirada de todas as plataformas de streaming.

Mais difícil é estancar o rastilho de perguntas levantadas pelo sucedido: corremos mesmo o risco de ver episódios como este multiplicarem-se? A fronteira entre a música “real” e a que é criada com recurso a IA ficará cada vez mais indefinida? E como é que ficam os músicos e a indústria no meio de tudo isto? Na ressaca da polémica, a editora em causa, a Universal Music, partilhou um comunicado pungente. “Coloca-se aqui uma questão: de que lado da história querem estar todos os que trabalham na indústria musical. Se do lado dos artistas, dos fãs e da expressão criativa humana, se do lado da falsidade, da fraude e de negar aos artistas uma compensação justa.”

Só que nem os mais otimistas acreditam que alertas como este serão suficientes para estancar o problema. A propósito, Afonso Ferreira, diretor de A&R (Artistas e Repertório) da Sony Music, chama a atenção para números reveladores. “O primeiro efeito que as editoras [discográficas] têm sentido é a diluição do seu market share [quota de mercado] dentro das plataformas. Se há cerca de ano e meio havia, em média, 60 mil músicas novas no Spotify por dia, agora temos cento e tal mil. É uma diferença enorme. De certeza que não são só os artistas que estão a colocar mais canções. Atribui-se isto a músicas criadas com recurso à IA. Alguém que chega a estes sistemas e diz ‘quero uma música para um momento à lareira, com um copo de vinho, com influências disto e daquilo’. Isso basta para produzir uma música através da IA”, alerta. E as consequências (pelo menos uma parte delas) são óbvias: “O resultado prático é que o dinheiro que as plataformas pagam está a diluir-se por muito mais música e a relevância das editoras neste bolo vai diminuindo”.

Uma batalha “brutal”

Que a IA encerra em si mesma um manancial de possibilidades fascinante, potencialmente decisivo para a evolução da Humanidade, sobretudo se pensarmos em áreas como a medicina, ninguém parece duvidar. Mais nubloso é o debate sobre os riscos que ela pode representar. No caso da arte, então, o tema convoca uma miríade de questões. Desde logo a dos direitos de autor. E da sobrevivência dos músicos e da indústria. Na verdade, de todos os artistas. Porque ainda que, de momento, a música seja a área que mais polémicas tem suscitado, o novo paradigma aplica-se a praticamente todos os quadrantes da arte. Nelson Zagalo, professor da Universidade de Aveiro na área dos Novos Media, ajuda a pôr o problema em perspetiva, deixando um aviso para a questão da monetização dos conteúdos. “A questão é que a legislação que existe neste momento garante aos produtores de tecnologia o uso de qualquer tipo de conteúdo para aprimorar a IA. A ideia é poder exponenciar a tecnologia. E eu não vejo nenhum problema nisso se só for usado para criar os algoritmos. O problema é o que se faz com o resultado disto. E neste momento já há pessoas e empresas a fazer dinheiro com isto.” Por um lado, as grandes empresas que estão por trás destes sistemas de IA, como o ChatGPT e o Dall-E, que, para aceder a mais funcionalidades, “já cobram uma mensalidade”. Por outro, “as pessoas e empresas que utilizam recursos fabricados graças a estes sistemas para fazer dinheiro”. “É tudo muito engraçado se for numa lógica de brincadeira. Se as empresas passam a fazer dinheiro com isso, entramos num nível diferente.”

Acresce que a IA, pela forma como funciona e mistura uma imensidão de dados, “não permite dizer que se copiou” o que quer que seja. “Sabemos que as influências estão lá, mas não tenho como dizer de onde vem a informação, pelo que quem produziu o material que serviu de base àquele resultado não recebe nada, nem sequer o reconhecimento.” Também por isso, o docente da Universidade de Aveiro realça a importância de legislar mais especificamente sobre estas matérias. “O EU AI Act [primeiro marco regulatório de IA do mundo, aprovado em junho pelo Parlamento Europeu] é um conjunto de boas práticas interessante, mas é só um princípio, ainda não cobre estas questões.” E o processo não se perspetiva fácil. “A Microsoft, a Amazon, o Facebook vão tentar ao máximo que não se legisle neste momento, porque a tecnologia ainda está a evoluir. O que têm dito é ‘nós estamos a trabalhar nisso, estamos atentos, vamos fazer tudo para vos proteger’. Também temos que nos lembrar que há aqui um problema grave de financiamento, que estas empresas ainda há relativamente pouco tempo despediram imensa gente, que o custo diário do ChatGPT anda nos milhares de euros por dia, que estas empresas quererão com certeza arranjar formas de rentabilizar tudo isto. Não podem é rentabilizar-se à custa dos outros.”

Tozé Brito, conhecido letrista e compositor português e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), reconhece que o tema levanta “questões legais e económicas brutais” e antecipa um futuro “extremamente duvidoso”. “Ainda estamos numa fase muito embrionária. A verdade é que eu não imagino nenhum destes grandes operadores que estão por trás da IA a investir milhões para não tirarem dividendos disso, para que os trabalhos que estes sistemas criam possam ser utilizados gratuitamente. Mas se alguma vez os trabalhos ou as pessoas que programaram os sistemas forem remunerados então temos um problema gravíssimo.” Dá como exemplo o seu caso. “Eu, para escrever uma canção, se for extraordinariamente feliz, demoro no mínimo duas horas. A IA, no espaço de uma hora, deita cá para fora centenas de canções. É uma luta completamente desigual. Eu espero obviamente que eles nunca possam ser pagos. E até agora a jurisprudência que tem havido nos EUA tem bloqueado essas intenções. Mas prevejo uma grande batalha. De um lado estão os grandes operadores, que querem ser pagos até porque têm investido milhões nesta tecnologia. Do outro estamos nós, que vivemos disto, e que corremos o risco de as nossas obras rapidamente serem engolidas pela IA. A batalha vai ser brutal.”

Gonçalo Gil Barreiros, responsável nacional do departamento de Propriedade Intelectual da sociedade de advogados PRA, admite que, no que toca aos aspetos legais, “ainda é tudo muito cinzento”. E que há questões importantes que se têm vindo a levantar em relação aos direitos de autor. “De acordo com a legislação que temos atualmente, entende-se que, para uma obra ser protegida por direitos de autor, a autoria tem de ser humana. A IA vem afrontar isto. Daqui a uns anos, o objetivo de quem está por trás destes sistemas será certamente obter essa proteção da lei. E isto entra em confronto direto com a conceção que hoje temos. Por outro lado, se isso avançar, e tendo em conta que a IA consegue produzir resultados em segundos, do ponto de vista concorrencial vai criar um problema. É certo que este tipo de questões vão sendo colocadas ciclicamente, faz parte da evolução tecnológica, mas creio que a IA nos vai obrigar a repensar o conceito de autoria.”

O advogado, que trabalha habitualmente na área dos direitos de autor, chama também à atenção para o que tem acontecido nos EUA. “É verdade que as sentenças têm sido sempre negativas, na perspetiva de que se não há intervenção humana, a obra não pode ser protegida, mas recentemente o Copyright Office emitiu um parecer que de alguma forma abre um bocadinho a porta a uma eventual mudança de paradigma. Sempre com muitas reservas, é certo, mas dizia que as criações de IA podem vir a ser protegidas se se perceber que por trás da criação há uma intervenção humana. E isto levanta muitas outras questões, sobre como é que vamos medir até que ponto uma dada obra reflete o espírito humano. São terrenos muito movediços.”

A criatividade é só nossa?

Para lá das nuances legais, há outras discussões mais latas que importa ter. Luca Possati, investigador da Delft University of Technology que se debruça especificamente sobre a área da Ética da Tecnologia, aponta alguns dos pontos que estão em causa. Um deles tem que ver com a questão da originalidade. “Há um debate em curso sobre se a arte criada através de IA pode ser considerada original ou autêntica. É verdade que a IA é treinada com uma grande quantidade de dados e que a partir daí cria novas combinações. Mas essas criações não são réplicas nem cópias. Pode gerar coisas completamente novas. Ainda que sempre assentes em padrões e dados de trabalhos criados por humanos, claro.”

Outro ponto que importa discutir, entende Luca, é o da “criatividade e identidade humana”. “A criatividade é considerada um traço específico dos humanos. Ouvimos muita gente dizer: ‘Ok, a IA é muito boa a fazer isto. Mas os humanos têm mais criatividade’. Ora, parece-me que isto não é totalmente verdadeiro. O que a IA está a revelar é que, no limite, a criatividade humana pode ser reduzida a uma análise estatística. Na perspetiva de que o que nós consideramos como algo original, algo único, é uma espécie de erro, de ilusão, porque na verdade não vemos a ‘big picture’, não conseguimos considerar todas as possibilidades em aberto, pode dizer-se que não temos uma boa base estatística.” O investigador, que já passou pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, procura concretizar o raciocínio. “Por isso, ficamos fascinados com aquela pintura única, mas, se formos pensar nisso, a base estatística segundo a qual aquela pintura pode ser considerada única não existe. E isto levanta muitas questões sobre o que nos torna únicos e sobre a identidade humana.”

A ideia está longe de ser consensual. Valter Hugo Mãe, por exemplo, não tem dúvidas de que há nos artistas uma “dimensão intuitiva” que não pode ser replicada por qualquer sistema de IA. “A arte só é pertinente pelo exercício do pressentimento e da intuição. A grande epifania humana está no momento em que o Picasso assaca de máscaras africanas o cubismo. E isso é algo que nunca se vai conseguir executar numa dimensão mimética.” Por isso, diz, o ChatGPT e afins, capazes de produzir livros em segundos, não lhe tiram o sono. “Não me preocupa muito. E o que me parece é que os escritores vivos só os temerão se não tiverem nada de novo para oferecer, se tiverem também eles uma dimensão mimética. A arte tem uma grandeza única e irrepetível e, por mais que o algoritmo se sofistique, tenho a impressão de que nunca será capaz de trazer uma identidade que ilumine o Mundo, que seja um novo paradigma.” O escritor reconhece, ainda assim, que o facto de haver muito mais oferta disponível “vai criar confusão”. “Acredito que muita gente vai achar graça. As pessoas tendem a fascinar-se por coisas sem grande qualidade. Em vez de se disponibilizarem para o desconhecido, há um vício pela repetição. A cultura TikTok é o expoente disso. A sociedade corre o risco de deixar de ser criativa para passar a ser amestrada. Mas os escritores são seres em perigo por natureza, sempre foram colocados ao pé da fogueira. Com frequência vemos os livros de Saramago e Lobo Antunes ao pé das piores coisas que para aí andam, de uma não literatura. E nesse caso acredito que a IA possa imitar porque é um esquema relativamente simples. Agora no caso de um Saramago? Mesmo que consigam imitar, quem é que vai querer uma mimetização de Saramago quando pode ler o original? Ou quem vai querer uma mimetização em vez de um autor vivo, que ainda pode olhar para as coisas com espírito crítico?”, questiona, otimista.

Também Pedro Abrunhosa se mostra relativamente tranquilo, dentro da natural inquietação que chega com todas as grandes descobertas da Humanidade. “O que me parece é que a IA é uma possibilidade, não é um fim determinístico. Não a podemos encarar como uma realidade assombradora à qual nos subjugamos. Temos de fazer com que a IA nos sirva e não o contrário.” O músico regressa à questão da criatividade, já elencada por Luca Posatti, ainda que a perspetiva seja diametralmente oposta. “[Com a chegada da IA], estamos obrigados a refletir sobre o que é ser criativo. E isso é assustador, mas também é encorajador. Porque só pode ser criativo aquilo que é consciente. É verdade que no campo da literatura, por exemplo, estes sistemas vão vampirizar aquilo que já está feito. São uma espécie de Bimby de palavras, como lhe chamou o filósofo basco Daniel Innerarity. Sofisticadíssima, é certo. Mas que não é surpreendente nem disruptiva. É um algoritmo resultadista. Só há um algoritmo criativo quando existe uma mão humana que diz que quer ir por aqui e não por ali. A arte não é só um ato de inteligência, é também um ato de consciência. Sem consciência não passa de um papagaio.”

No caso da música, recorre a uma expressão do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han para lembrar que já ao longo dos últimos dez anos a indústria se tem rendido a uma certa “mesmização”, “uma música refrigerante que sabemos que vai resultar na maior parte das pessoas”, com a digitalização a ditar o tipo de som que fará sucesso. E esse, considera, é o risco maior em tudo isto. “Se esta ‘mesmização’ prossegue, se não temos a noção de que é o nosso livre arbítrio que faz a diferença, se este perfil ético continuar a reduzir-se ao agradar, então vai deixar de se cumprir o “Hamlet” do Shakespeare, por ser altamente fraturante. E há riscos maiores porque não podemos dissociar a IA das velhas teorias populistas, da vontade de acreditar no que é fácil. Nesse aspeto, acho que pode ser tão perigosa para a arte como para a política.”

A ética e o que aí vem

Luca Possati, investigador da Delft University of Technology, invoca ainda outros dois pontos que lhe parece pertinente discutir. Por um lado, a possibilidade de uma “perda de ‘skills’” dos seres humanos, à boleia da crescente dimensão de tarefas que a IA será capaz de executar. Por outro, a ética na criação de arte através da IA, que é em si mesmo um imenso novelo de questões. Tanto mais quanto esta permite recriar a imagem e a obra de figuras que já partiram. O tema tem dado pano para mangas no Brasil, à boleia de um anúncio publicitário comemorativo dos 70 anos da Volkswagen (VW). No spot, Elis Regina, cantora brasileira falecida em 1982, surge ao volante de uma velha “Kombi”, num dueto com a filha Maria Rita, que conduz um veículo mais recente da marca.

No Brasil, um anúncio da Volkswagen que “ressuscita” Elis Regina tem dado muito que falar

Um anúncio só possível graças à IA, que gerou grande polémica, tanto mais quanto Elis sempre combateu a ditadura militar do país, enquanto a VW apoiava o regime. O caso levou mesmo o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária do Brasil a instaurar um processo ético para investigar o anúncio, na sequência de queixas de consumidores que questionaram se seria ético “o uso da IA para trazer uma pessoa falecida de volta à vida” para este fim. E se, legalmente, a campanha parece encontrar respaldo no veredicto dos herdeiros, que são detentores dos direitos de imagem de Elis e autorizaram o anúncio, do ponto de vista ético a questão é bem mais complexa, mexe com valores profundos, convoca as visões e as crenças da própria sociedade. Possivelmente para evitar que situações semelhantes ocorram, Madonna alterou recentemente o testamento, sendo que uma das mudanças introduzidas passa por proibir que a sua imagem seja usada após a sua morte com recurso à IA (nomeadamente através de hologramas).

Depois de ter sido hospitalizada, Madonna mudou o testamento para garantir que a sua imagem não poderia ser utilizada após a sua morte, com recurso à IA
Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Para João Gama, coordenador das estratégias nacionais para IA e investigador sénior do INESC-TEC, a história não chega sequer a ser um caso. “Foi um golpe de marketing excelente”, diz, meio a sério, meio a brincar. “Seguramente a VW garantiu o suporte legal necessário para fazer aquilo e portanto parece-me perfeitamente legítimo.” Em relação aos álbuns musicais produzidos com recurso a IA, a postura é semelhante. “Os Beatles têm uma música nova com recurso à IA? Desde que se identifique claramente do que se trata, que seja percetível para quem o ouve que assim é, não vejo problema nenhum. Até fico muito curioso. Incomoda-me mais ir assistir a um concerto em playback do que ouvir música criada pela IA”, afirma, com humor à mistura. Mais a sério, recorda que sempre que há uma tecnologia disruptiva, “há quem fique de pé atrás, há quem adira, e há os chamados velhos do Restelo”. “Eu, como sou um adepto fervoroso das tecnologias, claro que fico agradado.” Mas sim, reconhece-lhe riscos, menos associados ao meio artístico e mais à nossa existência enquanto sociedade. “O problema é que as tecnologias que permitem isso podem ser usadas de forma perversa. Temos exemplos que circulam na Internet. O Obama a apelar ao voto no Trump, por exemplo. Isso é que é criminoso.”

O desenvolvimento da tecnologia convoca discussões mais profundas, nomeadamente sobre a essência da criatividade e uma possível perda de “skills”

De volta à arte. Para adensar ainda mais a discussão, vale a pena ter em conta esta visão de Luís Paulo Reis, presidente da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial. “A IA será absolutamente imparável. Seguramente vamos ter um mundo muito diferente, em que vai ser nossa parceira, mas em que muitas vezes vai ser impossível perceber se as coisas foram feitas por humanos ou por IA”, augura. “O que estamos a discutir atualmente é a IA que existe agora. E agora ainda se consegue perceber o que foi produzido por IA ou não. Mas a tecnologia vai-se desenvolver até esse ponto. Quando se diz que a AI não consegue ter emoções, ou dar contexto cultural, muito possivelmente vai ser capaz de o fazer no futuro.” De resto, não tem dúvidas de que esta será plenamente incorporada no mundo artístico. Arrisca até um prognóstico polémico. “Tenho dúvidas de que, no futuro, o trabalho dos artistas se consiga diferenciar do que é feito pela IA. Porque esta é capaz de apresentar coisas completamente novas, muito criativas, imagens que nunca foram vistas. A IA é, no fundo, uma rede neuronal artificial que, tal como o nosso cérebro, é capaz de gerar arte.” Para Valter Hugo Mãe, o desafio de futuro, na perspetiva dos artistas mas não só, resume-se a isto: “A questão aqui é sabermos se enquanto coletivo vamos querer consumir conteúdos orgânicos ou se vamos render-nos ao fascínio de ter outros a fazer por nós, a um pensamento mimético”.

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Como funcionam
ChatGPT, Dall-E, Midjourney, GPT-3. O leque de opções dentro da inteligência artificial generativa vai engrossando aos poucos. Mas, afinal, como funcionam estas ferramentas? Alípio Jorge, investigador do INESC-TEC e docente da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, resume a premissa: “Tudo é possível desde que haja algo que se possa digitalizar”.No caso particular dos “transformers” (como o ChatGPT), falamos de “modelos generativos que, depois de consumida uma grande quantidade de exemplos, conseguem capturar os conceitos de forma automática e reproduzi-los de forma generativa e muito poderosa”. Sendo que, dependendo da ferramenta usada, o princípio se pode aplicar ao texto, à imagem, à música. E a mecânica que está por trás de tudo isto é relativamente simples de entender. “[Estas ferramentas] conseguem decompor aquilo que veem para encontrar certas abstrações que depois são usadas para gerar novo conteúdo. No fundo, decompõem para compor outra vez.” Dito de outra forma, os “transformers” são “modelos matemáticos que têm milhares de milhões de exemplos e que são treinados com técnicas de otimização”, pelo que o produto final é sempre “melhorável”.