Joel Neto

O avô do Artur


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

No dia em que eu não tiver mais nada a dizer sobre um homem, hei-de pôr-me, ainda assim, essa pergunta: ele sabe dançar? Se um homem sabe dançar, já merece que nos detenhamos nele. Há no gesto de dançar (e, ademais, de dançar em público) ao mesmo tempo uma tal liberdade e uma tão admirável segurança que eu era bem capaz de trocar por essa aptidão, por essa sabedoria, dois terços das capacidades que eventualmente tenha adquirido ao longo da vida, inclusive as que me deram mais trabalho. Nutro para com os homens que sabem dançar tanto a mais honesta admiração como uma vergonhosa inveja, e não raro, se posto perante um pé-de-dança elegante e feliz, vejo-me obrigado a lutar contra mim mesmo para não deixar a raiva vencer a simpatia.

O avô do Artur sabe dançar, e só isso já o aconselhava para esse papel, além do mais estando em causa um menino que vai crescer no campo. Mas não é tudo. O avô do Artur é um coleccionador, um homem do pormenor, um esteta. Sabe usar umas sandálias. Encontra duas licoreiras na montra de um antiquário e não precisa de pensar duas vezes para determinar a mais especial. Conduz um Jaguar. E, entretanto, é também um homem culto e humilde. Manda abaixo uma série de livros por mês – de todos os tipos, e a maior parte de ficção. Viveu no Algarve, em África, em Lisboa, em Estocolmo e em Londres (pelo menos), e mesmo assim os açorianos estimam-no como ao mais açoriano deles – ao mais açoriano de nós.

Chamo-lhe “o avô do Artur”, mas antes disso já era o meu amigo João. Temos sorte: como também foi um pai relativamente tardio, não nos aconteceu o infortúnio de darmos por nós nas mesmas fotografias do liceu. E, claro, também temos coisas em comum. Por exemplo: arquitecto, o meu amigo João conhece todas as bíblias do minimalismo moderno, mas mesmo assim a sua casa é muito mais do que uma máquina de morar – é um cofre de memórias, toda uma biografia, pouco menos do que um santuário. Mais uma razão por que será um tão grande privilégio para o Artur tê-lo por avô: toda a sua vida é também um duelo contra o esquecimento e a indiferença, que tanto se empenham em desapossar-nos da nossa condição de humanos.

Mas a primeira de todas as razões ainda é aquilo que nos distingue, e que no fundo nos torna aos dois modelos tão diferentes de masculinidade. Apesar de tudo aquilo em que fui conseguindo educar-me, continuo a ser sobretudo um homem físico. Toda a minha família manuseou cajados e armas de fogo, da geração dos meus pais até não sei que grau de antepassado – aliás, provavelmente analfabeto -, e quem me conheça há-de descrever-me como um homem ardoroso, mas meio bruto, bastante impaciente e, aliás, mais facilmente encolerizável do que não só gostaria ele próprio, mas com certeza toda a gente à sua volta.

O meu amigo João é tudo menos isso. O avô do Artur é tudo menos isso. Basta vê-los a ambos de volta do neto, e nestes dias que passámos juntos os quatro em São Miguel tudo isso voltou a brilhar. O resto é a relevância que eu dou à figura do avô, em abstracto e em concreto, e que talvez tivesse de descrever aqui se todo o meu trabalho não tivesse sido sempre, em larguíssima medida, essa descrição.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)