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No SNS, a saúde não tem nacionalidade

Roseane Alves e a filha mais velha, Hélia, de 15 anos. São de Cabo Verde, agora vivem em Lisboa. Roseane está a ser vigiada no IPO de Lisboa a um carcinoma. Hélia fez um cateterismo cardíaco quando tinha sete anos no Hospital de Santa Marta (Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

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Maria Dulce Évora veio de Cabo Verde para ser operada aos joelhos. A última cirurgia, no São João, é recente, está a recuperar, aguarda alta para voltar ao seu país. Roseane Alves, da ilha do Sal, está a ser vigiada a um carcinoma do colo do útero no IPO de Lisboa. Antes disso, a sua filha mais velha foi tratada a uma doença de coração no Santa Marta. Ibrahim Silla veio quatro vezes de Bissau, Guiné, por dificuldades de visão e problemas neurológicos. Na primeira vez, nem um ano tinha, tem oito agora. Vidas em primeiro lugar. Sempre.

As dores começaram há oito anos e eram tão fortes, tão intensas, que Maria Dulce Évora não conseguia dormir, tantas e tantas noites em claro. Por vezes, sentava-se nas escadas de sua casa a ver a escuridão tornar-se dia, o sol a nascer na cidade da Praia, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Os joelhos davam-lhe que fazer, travavam-lhe o andar, consumiam-lhe o corpo e a cabeça. O marido amenizava-lhe o sofrimento como podia e sabia, naquele conforto de palavras. Os três filhos sempre preocupados, sempre com o coração nas mãos.

Na ilha, não havia solução, veio a Portugal. No início deste mês, a 5 de maio, Maria Dulce, de 66 anos, foi operada ao joelho direito no Hospital de São João, no Porto. Tem consulta marcada para amanhã, segunda-feira, espera tirar os pontos, ter alta para regressar ao seu país, onde continuará a recuperar e a fazer fisioterapia. “Cabo Verde é pobre, não tem remédios”, desabafa poucos dias depois da cirurgia, ainda em convalescença em casa de uma amiga da filha, no Porto. “É uma doença que não há solução na minha terra.” Está muito grata por tudo o que têm feito pela sua saúde, tanto cá, como lá.

Roseane Alves, 36 anos, também veio de Cabo Verde, da ilha do Sal, para tratar de si no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Andou um ano com sintomas, dores de barriga, sangramentos, a ginecologista falava-lhe de uma infeção, prescrevia-lhe remédios, nada. As dores não passavam, continuava na mesma, não melhorava. “Não conseguiam descobrir o que tinha”, conta. Resolveu ir a outra ilha, a São Vicente, procurar outro diagnóstico, a médica de lá desconfiou o que seria na primeira consulta, marcou biópsia. Roseane não imaginava o que iria ouvir quando o resultado chegou dez dias depois: cancro do colo do útero. “Perdi o chão. Estava sozinha noutra ilha, liguei ao meu marido, não consegui contar aos meus pais”, recorda. Pediu ao marido para dizer à mãe.

Se ficasse em Cabo Verde, Roseane faria quimioterapia na Praia, noutra ilha, todavia havia o receio médico do processo acelerar a doença, de o mal se espalhar rapidamente. Pediram a sua evacuação para Portugal, dois meses de análises e exames em São Vicente, a mãe sempre por perto, a acompanhá-la, junta médica, tratar da documentação, cinco meses de espera até entrar no avião. Durante esse tempo, nada. “Não fiz nenhuma medicação, se tivesse uma coisa mais grave tinha de ir ao hospital.”

Em novembro de 2020, estava no IPO de Lisboa, primeiras consultas, em janeiro de 2021 começaram os tratamentos, radioterapia e quimioterapia ao mesmo tempo, rádio de segunda a sexta, químio às segundas, três meses seguidos, intensos. Roseane Alves tem o carcinoma controlado, não há evidência de recidiva, está atualmente em vigilância, tem consultas de três em três meses, a última foi há um mês. “Fui muito bem tratada, estarei grata até ao fim da minha vida”, confessa. Em 2015, a sua filha Hélia, na altura com sete anos, esteve no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, a tratar de um problema do coração. Correu bem, rasteirou o destino.

Ibrahim Silla não tinha um ano quando veio ao Hospital de São João, no Porto, pela primeira vez. Os seus olhos não viam, pensa-se que terá havido complicações no parto quando e onde nasceu, em Bissau, Guiné. Regressaria pouco depois, com ano e meio, para consultas. Voltou mais duas vezes ao São João, pela visão e por problemas neurológicos diagnosticados cá, ficou em casa de Marta Martins e Nuno Vilas Boas, e seus dois filhos, sua família de acolhimento em Barcelos. Ibrahim tem agora oito anos, vive em Bissau, não vê bem, tem de usar óculos, tem défice cognitivo, problemas neurológicos. Não se sabe se regressará para mais tratamentos hospitalares em Portugal. Marta e Nuno acompanham-no à distância, depois de meses de idas e vindas ao São João, depois de o terem ido levar a Bissau, depois de terem conhecido a sua família. Continuam a apoiar no que é necessário.

Marta Martins e Nuno Vilas Boas acolheram Ibrahim Silla, um menino da Guiné, que esteve no Hospital de São João a ser tratado. Mantêm o contacto com a família
(Foto: Global Imagens)

Foi no colo de Marta que Ibrahim teve convulsões, tanta aflição, a ambulância, o hospital, o internamento. Era um menino doente, a família sabia, adaptou-se, ajustar logísticas, lidar com questões e hábitos culturais. “Queríamos que tivesse uma vida de criança, uma escola que o recebesse”, salienta Nuno Vilas Boas. Ibrahim tinha três anos na primeira vez que ficou em Barcelos, ficou com Marta e Nuno, e seus filhos, durante sete meses. A segunda, e última, foi mesmo antes da pandemia, esteve pouco tempo, teve de regressar devido às circunstâncias. Enquanto cá esteve, andou na escola, foi a aniversários de amigos, começou a cantar e a falar, a socializar. “Arranjámos uma escola com coração, sempre integrado na mesma turma, os colegas ainda hoje perguntam por ele”, adianta Marta. De cá, foi medicação que não existe na Guiné e Marta e Nuno iam relembrando aos pais do menino que não se esquecessem da toma dos remédios. Durante a pandemia, Ibrahim esteve mal, febres altas, internado. Marta e Nuno, mais uma vez, ajudaram a família.

Tratar, recuperar, voltar

O cancro de Roseane estava numa fase avançada quando o diagnóstico foi comunicado lá, em São Vicente. Quando o seu mundo desabou. A última citologia feita tinha dois anos, estava tudo bem nesse momento, de repente, tudo se alterou. “A médica disse que tinha de fazer um tratamento mais eficaz”, lembra. Assim foi.

Não era a primeira vez que vinha a Portugal por razões de saúde. Em 2015, Roseane, grávida do filho mais novo, esteve três meses no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, com a filha mais velha, Hélia, então com sete anos. Hélia também foi evacuada, foi mais rápido, mês e meio desde a decisão médica à viagem. Hélia veio tratar de uma doença congénita no coração, fez cateterismo cardíaco, ficou bem, continua a ser acompanhada. “Tem consulta uma vez por ano para ver se está tudo bem.” Tem estado.

Maria Dulce, agora reformada, foi telefonista na Direção-Geral de Estatística de Cabo Verde, viveu anos de agonia, aquelas dores nos joelhos que pioravam dia após dia. “O joelho é que move tudo”, comenta, sem nunca ter percebido as causas ou consequências de ter ficado naquele estado. “Fui ao hospital, o senhor doutor mandou tirar a chapa, a cartilagem dos joelhos estava gasta. Desconhecia essa doença e, na minha simplicidade, perguntei se não podia pôr ferros nos joelhos”, rebobina. Não, não podia. Cartilagem rompida, artroses. Tomou remédios, levou injeções, já só fazia o percurso casa-hospital-casa, o medo constante de cair, andava de canadianas, custava-lhe caminhar. As dores continuavam. “Tomava remédio, as dores passavam uns dias e recomeçavam novamente. O senhor doutor não queria dar-me injeção, viu que não havia solução, que não melhorava, pediu a minha evacuação para Portugal.”

O processo começou, junta médica, exames, Maria Dulce aguardava a viagem, veio a pandemia, parou tudo. “As dores eram terríveis, não podia continuar assim, pensei que ia morrer. Os meus familiares e os meus filhos ajudaram-me e mandaram-me fazer uma operação em Coimbra.” Em agosto do ano passado, foi operada ao joelho esquerdo, o que estava pior, em Coimbra, e voltou a Cabo Verde.

A primeira vez que Ibrahim foi evacuado para Portugal, para ser tratado no São João, ficou em casa de Maria José Ferreira, enfermeira e presidente da Missão Saúde para a Humanidade (MSH), Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) de Aveiro. Luís Gonçalves, oftalmologista do Hospital de Guimarães, em missão em Bissau, referenciou o menino, tinha de ser operado imediatamente, precisava de ser evacuado, o processo começou, a MSH contactou uma ONG de Bissau para tratar de toda a documentação necessária. A evacuação aconteceu mais de meio ano depois da referenciação médica. Ibrahim chegou e não via. Maria José não esquece quando o pegou ao colo. O bebé, de meses, cheirou-lhe a pele, estava a conhecê-la na sua única forma de conhecer. Hoje, Ibrahim precisa de acompanhamento médico constante, de socializar, de ter uma vida de criança lá onde vive, na Guiné.

A família de acolhimento de Ibrahim recebeu-o em duas ocasiões. Levou-o a consultas, acompanhou os internamentos, quis que ele tivesse uma vida de criança
(Foto: DR)

Ibrahim viveu meses com Marta e Nuno, ambos economistas. Marta sempre quis ter uma experiência de voluntariado, ajudar, dar de si aos outros. A médica da filha falava-lhe de missões humanitárias, de ajudar mais cá do que lá, lá fora, fosse onde fosse, falou-lhe de crianças que vinham sozinhas de outros países serem tratadas no hospital, que precisavam de quem as acolhesse, havia organizações envolvidas no processo. O casal pensou no assunto, pediu o contacto, reuniu com a MSH, a realidade foi-lhes dita tal como era, nua e crua, como seria, esta missão não era para todos, são crianças que precisam de apoio, de colo, que não estão disponíveis para adoção. A família percebeu, estava capaz, Nuno ultrapassou as dúvidas iniciais. Disseram que sim, sabiam que eram uma ajuda importante. “Se não houvesse esta ponte, estas crianças morreriam”, diz Marta. Nuno concorda e vai mais além, realça que, muitas vezes, só se fazem ecografias quando há missões, quando há médicos de cá que vão à Guiné. “É fundamental haver este apoio, é necessário, funciona, mas não é o ideal, é um penso rápido para doenças brutais”, repara. “É a melhor das piores soluções”, acrescenta. Em sua opinião, é necessário formar médicos nesses países, instalar unidades avançadas nos países subdesenvolvidos, investir em missões permanentes.

Berta Lopez é ginecologista no IPO de Lisboa e tem integrado missões humanitárias, as últimas três na Guiné-Bissau. É médica, cuida de todos. “Trato doentes, não trato doentes por nacionalidade”, refere. O conhecimento da cultura, de formas de expressar a dor, de reações e dúvidas, ajuda na hora de tratar cá doentes que chegam de África. “Mais tolerantes somos, quanto mais conhecemos.”

Os acordos com outros países, sobretudo com os PALOP, que evidenciam um vínculo histórico, são, em seu entender, benéficos, existem a bem dos doentes. “A saúde tem de chegar a todos, aos que mais precisam, às pessoas mais vulneráveis e frágeis.” Na Guiné, tem dado formação a colegas, a profissionais de saúde de lá, sobretudo no âmbito cirúrgico. “As missões só funcionam quando se trabalha com pessoas locais”, observa. O cancro do colo do útero é uma das principais causas de morte de mulheres guineenses, os rastreios não funcionam, sensibilizar sem haver soluções acaba por ser ingrato. Berta Lopez lembra que o cancro ginecológico é evitável, que a vacinação seria essencial, defende investimentos globais de todos os países. Como, por exemplo, “um acordo global em vacinar esta população”. As mulheres da Guiné-Bissau.

Berta Lopez não alimenta a visão romântica de que vai fazer a diferença, faz o que pode, a diferença na vida de alguém, guarda os obrigados e sublinha a constante e generosa partilha das gentes de lá.

Evacuação quando não há solução

As dores moíam o corpo de Maria Dulce. Fisioterapia no hospital, o joelho direito tinha de ser tratado, andava desanimada, perguntaram-lhe se tinha familiares em Lisboa ou no Porto, havia possibilidade de voltar a Portugal para nova cirurgia. Queria tanto, a filha era hospedeira de bordo, conhecia gente em Portugal, fez contactos, acabou por arranjar casa de uma amiga cabo-verdiana no Porto disponível para acolher e dar suporte a Maria Dulce. Teve de atualizar todos os documentos de que tinha tratado há três anos, o marido cuidou de tudo, a resposta chegou, a 25 de janeiro deste ano tinha consulta no Hospital de São João com o médico Frederico Raposo. Saiu de Cabo Verde dia 24, aterrou em Lisboa dia 25, viagem de comboio para o Porto. Veio com o filho que, entretanto, regressou à ilha. Maria Dulce ficou cá desde então, análises, exames médicos, a preparar-se para o internamento, para a cirurgia. “O médico foi muito honesto, havia lista de espera, tinha de aguardar, explicou como seria a cirurgia, mostrou-me um catálogo, disse o que devia fazer depois, não podia andar sem canadianas três meses antes de ser operada, fazer fisioterapia.” Sabe que precisa de tempo, que os joelhos demoram a recuperar, que não havia outra solução, que tinha de se tratar num hospital com as condições que necessitava, num outro país, num outro continente. “Nossa terra é muito pobre.”

A vida de Roseane não tem sido fácil. Estava ainda a ser tratada no IPO de Lisboa quando foi despedida do emprego em Cabo Verde. Era rececionista de hotel, o despedimento foi feito através de um telefonema, uma chamada para o telemóvel. À distância e em pleno tratamento ao carcinoma. “Ficou ainda mais complicado para mim.”

Em maio de 2021, voltou a Cabo Verde, ver os três filhos, o marido, a família. Sentia que ainda não estava completamente bem de saúde, dois meses depois voltou a Portugal. Se ela não estivesse bem, ninguém estava tranquilo lá em casa. “Como estive cinco meses para ser evacuada, fiquei com medo”, confessa.

Chegou num tempo estranho, pico da pandemia, hotéis fechados, ficou em casa de uns familiares do marido em Aveiro, arranjou trabalho num restaurante, o marido procurava trabalho em Portugal, é carpinteiro, conseguiu, tratou de tudo, visto, contrato, tudo certo, chegou no Natal de 2021. O trabalho era em Lisboa, Roseane mudou-se de Aveiro para a capital, conseguiu trabalho nos postos de atendimento das áreas de serviço de combustíveis às portas de Lisboa, os três filhos chegaram em março deste ano. Por fim, a família novamente junta depois de muito trabalho. “Tinha de tratar de tudo, organizar tudo, ter uma casa.”

O acesso à saúde é um direito. Cuidados de saúde em qualquer emergência não se negam a ninguém. O SNS tem acordos bilaterais com vários países para a prestação de cuidados de saúde que garantem condições de reciprocidade e igualdade de tratamento com os portugueses, em situações de estada e residência no nosso país. Em caso de estada temporária, é necessário o atestado de direito a assistência médica válido solicitado no país de residência.

As evacuações para tratamentos hospitalares no SNS acontecem ao abrigo de um acordo de cooperação, no domínio da saúde, com os PALOP. A MSH deu o apoio possível nessas evacuações, acolhimentos, estadas, acompanhamento nos internamentos, alimentação e vestuário, a crianças que chegam sozinhas da Guiné. Desde 2009, acompanhou dezenas delas, no ano passado, acolheu as duas últimas. Maria José Ferreira fala num acordo da década de 1970 que terá de ser revisto e de uma responsabilidade que a MSH foi cumprindo, mas que não é sua. “Assumimos o papel dos acolhimentos sociais do Estado da Guiné-Bissau. Fizemo-lo com empenho, com gosto e dedicação, durante mais de dez anos”, sustenta. Com muito trabalho, procura de respostas, contactos com várias instituições, muitas e muitas horas para encontrar famílias de acolhimento. E nem sempre resulta, nem sempre dá certo, são os laços que se criam, são as adaptações que não acontecem. “Já me deixaram crianças à porta de casa, com malas e bagagens, literalmente”, revela Maria José. “O futuro não pode ser este, o caminho não pode ser este, se existe um acordo de cooperação ele tem de funcionar”, vinca.

“Estou muito grata e muito feliz, não é só o lado profissional, é o lado humano, tentar saber se está tudo bem, se é preciso alguma coisa. É a positividade”, reconhece Roseane Alves
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

“Estamos em 2023 e não temos nenhuma instituição para acolher crianças”, constata a presidente da MSH. Não há resposta do ponto de vista social. Com o Ibrahim correu bem, é uma história bonita, mas há muitas outras que não são felizes. A MSH apoia mensalmente duas escolas e um orfanato na Guiné, suporta encargos e cria projetos de apadrinhamento, envia contentores com donativos para os seus parceiros, e prepara-se para construir uma casa de acolhimento para voluntários da MSH e para crianças que ali possam ficar antes de serem evacuadas e depois de regressarem ao seu país.

Maria Dulce está muito agradecida. “Fui muito bem atendida, guardo boas lembranças. Só tenho a agradecer à minha família, aos meus médicos de Cabo Verde e de Portugal, aos profissionais de saúde, aos portugueses, que me ajudaram para o resto da minha vida. A um país que me acolheu tão bem, desejo tudo de bom.” “Com vida e saúde espero gozar o que resta da minha velhice”, acrescenta. Roseane Alves também não esquece a forma como foi tratada no IPO de Lisboa. “Estou muito grata e muito feliz, não é só o lado profissional, é o lado humano, tentar saber se está tudo bem, se é preciso alguma coisa. É a positividade.” A saúde em primeiro lugar. Seja quem for, seja onde for.