Na moda, nada se inventa, tudo se reinventa

Transparências, gangas ou flores. As tendências que, todos os anos, saltam para as passarelas - e depois para as lojas - não são mais do que revisitações de modas passadas. Resgatar roupa do armário dos avós ou dos pais nunca fez tanto sentido. Afinal, em que época se inspiraram as linhas atuais? Façamos um regresso ao futuro através do que vestimos.

Teremos de recuar bastante para situar o início da moda. Mas ainda que entremos numa máquina do tempo para chegar à altura em que a roupa começou a ser conceptualizada e pensada antes de vestida (situando-se aí o início do que poderemos chamar os primórdios deste setor), teremos também de estar conscientes de que, à época, esta indústria não tinha o mesmo significado que hoje tem.

A moda “começou no Antigo Oriente, no Egito”. Quem nos guia nesta viagem é Adriana Matos, stylist e criadora de conteúdos digitais de moda. Na altura, não tinha um conceito de mercantilização por detrás. Era a necessidade que fazia as tendências. “Foi o clima, com altas temperaturas, que fez com que os egípcios começassem a utilizar linho, tecidos frescos, leves e transparências.” Estava calor e, por isso, as roupas que vestiam tinham de começar a ser pensadas da melhor forma, consoante os materiais disponíveis. “Ou seja, a moda começou com a necessidade de criar roupa adaptável ao clima”, resume a consultora de imagem.

A moda surgiu por necessidade de adaptação às condições que rodeavam o ser humano
(Foto: Wikimedia.com)

Mas a história não fica aqui. Adriana Matos prossegue: “Já em Roma, no início da república, o traje masculino era a toga, uma túnica de linho, inspirada na Grécia”. Então, revisitar tendências não é de agora. Continuamos a fazê-lo, a inspirarmo-nos tanto no Antigo Egito como na década passada, e, por isso, a moda vive, sem dúvida, de reinvenções, reinterpretações e, acima de tudo, desde o seu começo, de adaptações. Principalmente, adaptações às questões da atualidade.

A consultora de imagem Adriana Matos continua na máquina do tempo para afirmar que “o século XIV trouxe algumas evoluções a nível de moda que se explicam pela individualidade de cada um e pela desassociação à Igreja”. É, como dizíamos, adapta-se ao contexto que a rodeia. É nesta fase de um certo liberalismo que, indica a stylist, se situa o surgimento “da noção moderna de moda”.

Mercantilização de tendências

“A partir daí surge uma grande evolução e ao longo dos reinados muitas foram as mudanças, desde a influência do estilo Luís XVI, que consiste em linhas retas e simplicidade, à alta-costura influenciada pela rainha Maria Antonieta, que era retratada pelo luxo e elegância.” Em suma, foi com a monarquia e a vontade de expressar e expor as posses monetárias que a moda passou de ser um instrumento meramente utilitário – para proteger do calor ou do frio, por exemplo – para ter uma função estética.

Adriana Matos faz o paralelo com os diferentes estilos de roupa utilizados pelos reis com a atual indústria. “A moda também vai variando tendências e passando da exuberância à simplicidade”, no entanto, é de salientar que, agora, com “uma noção alargada das muitas opções a nível da indústria e com o mercado muito mais explorado”.

Foi com a monarquia que a moda passou de uma função de necessidade para um âmbito estético e de exposição da riqueza
(Foto: Wikimedia.com)

Fazendo esta leitura histórica da moda é possível compreender que esta nunca pode ser dissociada dos comportamentos humanos. É a partir deles que é pensada e (re)criada.

“Antigamente, as modas surgiam naturalmente pela evolução e necessidade da população e hoje surgem através de estudos da sociedade para gerar vendas.” A mercantilização das tendências dá ainda mais força aos revivalismos, já que as memórias e a familiaridade são parte importante e vista como positiva pela maioria. Se reavivar tendências chama mais pessoas, isso dará mais dinheiro e, por isso, será mais vezes a escolha, pelo menos, das grandes marcas.

Contexto na Moda

Também a estilista e criadora Fátima Lopes, com mais de 30 anos na indústria, fala da ligação entre a moda e os contextos contemporâneos. “Esta tendência transversal e atual de ousadia e sensualidade tem muito a ver com a nova forma de estar na vida, com o empoderamento feminino, principalmente, e com a liberdade de expressão.”

Fátima Lopes explica que os revivalismos, por exemplo, de modas da década de 1980 e 1990, à época consideradas demasiado ousados, são agora bem aceites pela população: porque há liberdade e, por outro lado, uma vontade de viver (ou vestir) o que antes não era permitido (ou pelo menos bem-visto pela maioria).

A moda tem esbatido os limites que impunham a diferença entre masculino e feminino
(Foto: DR)

“Agora já não há medo de usar e vestir assim ou assado.” A estilista acredita que não foi apenas no feminino que as mentalidades se alteraram – ainda que aqui tenha sido mais visível pela forma como as mulheres sempre viveram com mais limitações à sua liberdade. “Os homens também vestiram sempre da mesma maneira durante muitos anos, caracterizados por pouca versatilidade e sem coragem de ser diferentes, o que, felizmente, tem vindo a mudar”, garante Fátima Lopes. “O Mundo não é o mesmo e não vai voltar para trás.” Por isso, poderemos esperar cada vez mais evolução na moda.

Cada vez mais revivalismos

Ainda que, como vimos, os revivalismos e reinterpretações tenham estado sempre presentes na moda (desde cedo), esta é uma tendência cada vez mais atual, considera Alexandra Cruchinho. A docente em Design de Moda e Têxtil da Universidade Lusófona e investigadora na área diz que “há uma tendência cada vez maior, agora revelada nesta estação, para a reinterpretação de técnicas, como as rendas”. Ainda que se fale em reinterpretação e revivalismos, pela forma como as novas ideias são inspiradas por técnicas e estéticas passadas, a especialista entende isso também como “uma forma de inovação”. “É o revivalismo de ir buscar às origens uma técnica, mas que é reinterpretada em locais que nunca foram usados.” Por isso, pode ser considerado como uma invenção dentro da reinvenção.

Alexandra Cruchinho acredita que esta continuidade de revivalismos aconteceu, acontece e irá sempre acontecer. “Eu acho que na moda as coisas são cíclicas. Há um ciclo que percorre tendências, que vão e, depois, voltam.”

Os padrões florais são uma moda intemporal, que remonta à Grécia Antiga, e que se vai reavivando de décadas em décadas
(Foto: DR)

Mas no regresso, nota a investigadora e docente, voltam com uma mensagem diferente. “Estamos numa altura de cada vez mais verdadeiras manifestações de sustentabilidade. E estes elementos de revivalismo de técnicas e tendências tradicionais ou passadas são pontos de sustentabilidade.” Em primeiro, Alexandra Cruchinho fala da reinvenção de tradições de moda, como é o caso das linhas de lérias, que têm feito parte do trabalho da docente. “Quando temos novos talentos a querer aprender e reutilizar estas técnicas e materiais estamos a falar de sustentabilidade no sentido em que grande parte das pessoas que trabalham estes elementos são idosas.” Reviver modas passadas, desta forma, trata-se também, então, de ter um papel social na comunidade, resume.

Sustentabilidade social

Ainda assim, não é apenas na sustentabilidade social que assenta esta ideia de revivalismos. Já lá iremos. Primeiro, as tendências para este ano. A especialista Alexandra Cruchinho explica que, para a próxima estação, estão em destaque, “acima de tudo, as cores – algumas até bastante vivas e psicadélicas”.

Há ainda uma forte aposta na renda e nos brancos. “Há sem dúvida, nas novas tendências, um reforço da vida, da cor, da luz. Compreende-se que existe uma vontade dos criadores de trazer uma mensagem positiva e de esperança, dado que estamos a passar um período de guerra, saídos de uma pandemia e às portas de uma crise.” A moda, afiança, não pode ficar indiferente a isso.

Como se dizia anteriormente, a moda regressa (cores psicadélicas, brancos e rendas podem ser encontrados nas tendências no final do século passado), mas agora com uma nova roupagem e, acima de tudo, com uma nova mensagem inspirada no contexto atual da sociedade. Em concreto, a investigadora e docente refere algumas coleções atuais que retomam a memória aos períodos do século XVII e XVIII, com grandes golas e punhos.

Joana Vasconcelos preparou um trabalho para o desfile da marca Dior totalmente feito em renda, num claro revivalismo desta técnica tradicional
(Foto: Geoffroy Van der Hasselt/AFP)

Para dar um exemplo da opção primordial por revivalismos, Alexandra Cruchinho exemplifica com o recente trabalho da artista portuguesa Joana Vasconcelos para uma marca de alta-costura: uma valquíria gigante trabalhada em renda. “Há um pensamento de ‘vamos aprender com estas pessoas e vamos aplicar estes produtos tradicionais noutro tipo de produtos’.”

Voltemos à consultora de moda Adriana Matos, que corrobora toda a ideia da característica cíclica da moda. “O que se observa é que conseguimos usar uma tendência, como por exemplo o veludo, mas que surge com cores ou padrões diferentes.” A tal nova roupagem de que falava Alexandra Cruchinho.

Desconstruir o armário passado

Falando das mais recentes coleções, a criadora de conteúdos digitais, que tem estado presente em diversas “fashion weeks” (semanas da moda, numa tradução livre), comenta que é possível “perceber que uma das grandes tendências da primavera e verão é a alfaiataria desconstruída”. E de que se trata esta tendência? “Há uma brincadeira de diversas marcas e criadores entre sobreposições e assimetrias com os fatos. A prova de que um conjunto pode continuar tendência ao longo de década e décadas, mas com um toque de irreverência.”

Os fatos completos, uma peça intemporal, têm saído do armário para aparecerem agora “desconstruídos”
(Foto: DR)

De forma simples, é dizer que, mais do que nunca, está na hora de ir buscar fatos usados ao armário dos avôs ou dos pais. A stylist aconselha a que, nestes casos, sejam adicionados acessórios, uma forma de dar um toque de modernidade a um revivalismo.

Outra tendência que parece saída do armário dos pais (ou até do armário de adolescência dos próprios leitores) é o que Adriana Matos chama de “total denim”. Ou seja, a moda “ganga total”. Quem não se lembra dos anos 2000, quando Britney Spears ou Paris Hilton usavam diariamente conjuntos de roupa totalmente compostos de ganga? “O denim é sempre tendência, mas desta vez pode juntar a ganga toda do armário e fazer um ‘look’ completo para uma versão mais ‘trend’”, aconselha a consultora de moda Adriana Matos. Esta é uma tendência que tem chegado às mais recentes passerelles e que, se não fosse pela diferença de qualidade fotográfica, poderíamos confundir com algumas do início do século XXI.

A “ganga total” remonta aos anos 1990. Britney Spears era uma das famosas que apostava, à época, nesta tendência
(Foto: DR)

Com os revivalismos, principalmente de ganga, calças à boca de sino, camisolas curtas e fatos, a moda tem também vivido das lojas em segunda mão. “As lojas vintage acabam por também ter um papel importante nesta forma de reviver a moda”, afirma Alexandra Cruchinho, da Universidade Lusófona. Primeiro, comenta a docente, porque a “mentalidade das novas gerações, de defesa do ambiente, principalmente, faz com que usem com orgulho roupa em segunda mão”. Este reforço de clientela da venda de roupa usada leva também a que os jovens, principalmente os jovens criadores de moda, tenham acesso a tendências passadas, o que “alimenta uma imaginação com base em revivalismos”.

Os conjuntos totalmente compostos por ganga têm sido um dos pontos fortes das mais recentes coleções
(Foto: DR)

Ainda dentro das tendências atuais, as calças cargo, um estilo utilitário que surgiu na década de 1940 para vestir os militares, tem ganhado cada vez mais espaço. Mas não são de agora. Esta peça já se usou em 2000, “e agora volta em tecidos de cetim ou mesmo em tecido de algodão e verde caqui”, indica Adriana Matos.

O “replay” de tendências

Como já referido, as transparências, que derivam do início da moda, no Antigo Egito, “continuam um ‘must-have’, tal como na estação quente passada”. “Inicialmente, surgiram em tons escuros para usar em contexto de noite e agora surgem em tons coloridos para usar no dia a dia.” Mais uma vez, a moda a viver de adaptações. Já o couro, tal como a ganga, aparece em força, em vestidos, espartilhos e conjuntos, “como podemos ver na coleção da Chloé”, sugere a stylist. Este é um material transversal a vários séculos e décadas. Bem como a forma em que é agora usado. O espartilho, em pormenor, tem sido um revivalismo interessante, pela sua simbologia.

As calças cargo, com uma função militar, estiveram em alta nos anos 2000
(Foto: Tim Roney/Getty Images)

Na monarquia, o espartilho era amplamente utilizado, sendo até agora visto como símbolo da opressão feminina. Agora, numa época de revivalismos e de reinterpretação do passado (e do presente) o espartilhado ressurge por vontade das próprias mulheres, como símbolo de reforço da sua liberdade em escolher o que vestir ou o que não vestir – ressignificando um objeto que, até agora, era visto como negativo.

As calças cargo regressam agora (foto da influencer @cmoniz)
(Foto: DR)

Assimetrias, grandes decotes e aberturas estão também bem presentes neste mundo. Fátima Lopes considera-as completos revivalismos, assinalando que, já na década de 1990 as suas coleções apresentavam todos esses detalhes que estão, agora, em alta. “São peças mais sensuais que fiz ao longo da vida toda e pelas quais fui muitas vezes criticada.” Agora, realça, o que era motivo de desconfiança do seu trabalho, “virou tendência”.

As transparências são uma tendência para a próxima estação, mas não são novidade, havendo provas da sua existência já no Antigo Egito
(Foto: DR)

Por esta nota temporal, Fátima Lopes descreve-se como “à parte” do mundo da moda atual. “Eu andei sempre à frente do meu tempo.” Muito do que se faz agora, garante, já fez. Questionada sobre o porquê de tantos criadores optarem por revivalismos e reinterpretações, a estilista portuguesa avalia a indústria com “falta de imaginação”. “Eu fiz tudo isto numa altura em que havia um nicho de mercado para vestir. Hoje é fácil criar roupa sensual, porque é um mercado transversal a várias camadas da população.” Fátima Lopes assegura que as suas inspirações não vêm de tendências de outros ou nem mesmo das suas anteriores.

Descreve que o ato de criação é unicamente focado em si e no que pensa querer vestir na altura. “Não olho para esta ou aquela peça ou desenho antigo e penso que vou redesenhar. Não. Faço tudo do zero.”

Alexandra Cruchinho não vê um lado negativo em haver troca de inspirações e interpretações. “As pessoas mais jovens estão cada vez mais ligadas às manualidades, o que acarreta consigo uma responsabilidade social.” Para a docente e investigadora em Design de Moda, “a moda não deve ser vista ou pensada como efémera e fútil, mas com um objetivo e visão”. Se a interpretação e revivalismo de técnicas e materiais acarreta consigo uma mensagem de mudança social, é sempre bem-vinda, remata.