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Multidão de 1953

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O meu amigo Bernardo acaba de fazer setenta anos de idade mas é de todos o mais menino. Na verdade, é um mestre, não lhe falta erudição nem gabarito, mas alguma coisa na inteligência genuína, franca, lhe permitiu o alcance do melhor dos tesouros: a existência algo cândida, uma alegria que só as crianças dominam. Nós, os que de verdade envelhecem, somos uma demora no seu pensamento sempre à frente, um pensamento logo pelo avesso, no contraditório, com a mania de negar e subverter, com a mania de não deixar nada igual. Para ele, viver é criar, não serve para passividade alguma. Viver é uma pressa e é cheio de ganas.

O Bernardo é um provocador mas, alma sincera, não usa de maldade. É todo inteiro um provocador da ordem das sementes. As sementes também não pedem licença para o ser que criam. Criam-no e querem que medre onde se deitar ao chão. Importa pouco que imaginem espinhos ou apenas o macio das pétalas, aquilo que se cria pode ser de toda a feição. O Bernardo é sobretudo uma vocação de liberdade. Por isso é que todos o admiram, sobretudo quem o cobiça ou inveja. A cobiça e a inveja começam todas na admiração.

Eu penso que o Bernardo é mais novo do que os próprios filhos, a Beatriz, o Adriano e o Frederico. Farto-me de arriscar previsões, mas nunca acerto. O Bernardo é a maçã alegre do truque de Guilherme Tell. Sabe que pode ser atingido, sabe que todos temos pouco tempo, não o perde em lamúrias. Diz o espantoso do Mundo, diz o alarve e o urgente, diz o belo e o estranho, diz o único. Como as crianças mais brilhantes, ou como na infância mais intensa, o que ele vê e propõe é inaugural. Começa tudo.

Andam os artistas todos à procura de uma identidade nunca vista e o Bernardo a abundar de autenticidade e modo raro. É-lhe tão natural que nem se dá conta do quanto se põe de mistério para a humanidade das convenções. Tenho a impressão de que há um planeta para nós e um planeta só para o Bernardo. Tão vizinhos que nos podemos frequentar, mas distintos. Com pessoas de outra forma nas praias, homens de pestanas muito longas a descansar as vistas, palhaços lindos cujos narizes vermelhos parecem só resfriados. Eu, que espreito para o planeta do Bernardo, fico maravilhado.

Fez agora mesmo setenta anos de idade o nosso amigo mais jovem. Que maravilha. Ele, que nasceu a 1953, é uma multidão de 1953, porque é por toda a parte e vale por toda a gente. Quando consideramos saber perfeitamente o que fará, faz de outro modo, nem que só para nos boicotar a expectativa. O comezinho da normalidade.

A Julieta é quem assiste a tudo de mais perto. Eu acredito que a Julieta ensinaria Deus a curar o Mundo, porque ela é carregada de milagre. Não tenho dúvida alguma. Casada com o Bernardo quase há séculos, ela leva-o de impossível em impossível, com o sorriso bom de quem não é por trás de nada. Ela é por dentro. Os melhores casais são estes, os que se fazem de quem se milagra mutuamente.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)