Margarida Rebelo Pinto

Mulheres de Marte


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Existe um provérbio no Zimbabué, da tribo Shona, que atravessa de forma recorrente o meu espírito feminino e feminista: o machado esquece, a árvore lembra. Aquilo que foi instituído como o Dia Internacional da Mulher tem tido nos últimos anos uma evolução para o conceito Março, o mês da Mulher. Ao longo das semanas, instituições, figuras públicas e pessoas anónimas alertam para o que é ser mulher, quais os direitos que lhe são negados, revelando as atrocidades que continuam a perpetuar-se no nosso Planeta, tanto à porta da nossa casa como no Irão, no Afeganistão, em África, ou em qualquer outro lugar no qual a ignorância, o machismo e a misoginia, não raro escudados em crenças religiosas, diminuem, ferem, humilham, discriminam e mutilam as mulheres. Falemos de excisão, que continua a ser praticada em território português. Se por cada menina mutilada, a lei determinasse a castração do mutilador e existissem meios de a cumprir, os números seriam outros. Falemos de violência doméstica que em 2022 vitimou 24 mulheres e quatro crianças. Não esquecer que o número oficial é o resultado de mortes diretas, não contabilizando as que morrem nas camas de hospital dias ou semanas depois, nem as que ficam para sempre com limitações físicas ou desfiguradas. Falemos das adolescentes envenenadas nas escolas no Irão, que já são mais de mil. E do Brasil, onde uma mulher é violada de dois em dois minutos. Na nossa civilizada e pacata Europa, falemos das mulheres que, desempenhando as mesmas funções que os seus colegas de trabalho, ganham em média menos 20%. Falemos das leis laborais que não respeitam as infernais dores menstruais. Se os homens sangrassem mensalmente, outra lei existiria. Falemos do patriarcado, da ideia machista de Deus Pai, enquanto entidade criadora, quando quem gera a vida no útero é uma mãe, estando já cientificamente provado que todos descendemos da mesma mulher. Falemos das grandes mulheres nas artes e na literatura que foram abafadas pelos pais, maridos e amantes. Falemos do namoradinho do bairro que criticou uma saia mais curta, uma camisa justa, uma gargalhada mais sonora. Ou de um pai bem-intencionado que explica à filha adolescente que os homens andam com as fáceis e casam com as outras. Falemos do trolha que fazia comentários ordinários às 7.40 horas da manhã na paragem do autocarro. Ou dos monstros que encostam o seu corpo nojento às miúdas no metro e no comboio.

Os homens agem desta forma pela mesma razão que os cães lambem os tomates, porque podem. E enquanto acreditarem que podem, vão continuar a agir. O machado esquece, mas a árvore lembra, porque a árvore não tem pernas para fugir nem braços para retaliar. A árvore não tem voz para gritar. A árvore que dá sombra, folhas e frutos, que fornece seiva e madeira, morrerá de pé, como morrem muitas mulheres ao serem atacadas. E, no entanto, nunca desistimos e nunca iremos desistir, porque a luta é eterna, não há machado que corte a raiz ao pensamento. Março é aquele mês em que os machistas encapotados em discursos hipócritas sobre a igualdade de género suspiram de impaciência, à espera que o mês acabe e as vozes se calem. Mas não nos vamos calar, em nome das nossas avós que não se calaram para que pudéssemos votar, viajar, trabalhar e divorciar-nos, e para proteção das nossas netas que irão perpetuar a luta. Não nos calamos porque podemos estar cansadas, mas nenhum machado irá abater-nos. A luta é eterna, até ao dia em que os abusadores serão castigados. Até ao dia em que viveremos livres da violência de género. Até ao dia em que os homens entenderem que também somos de Marte, se for preciso.