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Morar na rota da droga

Fotos: Pedro Correia/Global Imagens

Porto, 15/03/2023 - Moradores de bairros de droga que vivem à margem do tráfico e do consumo. Bairro da Pasteleira nova patrulha no bairro (Pedro Correia / Global Imagens)

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O silêncio ensurdecedor é lei em bairros onde o tráfico impera. Nas duas maiores cidades do país, o retrato de quem vê gente injetar-se à porta de casa, de quem tem a rua rodeada de vigias, de quem vive à margem do consumo e da venda, mas no epicentro de tudo. É um trapézio sem rede. Muitos cresceram já no meio desta realidade que é parte da vida inteira, outros viram-na chegar perto de repente e gritam o desespero. Aqui, há uma só morada: o medo que se faz calado.

De gorro, carapuço ou boné, espécie de indumentária que parece código de vestuário transversal, são dezenas os homens a circundar blocos de prédios cobertos de tijolo de cor pálida. Um autêntico muro humano, a policiar todos os que se aproximam, em torno de um bairro inteiro. Bairro esse que se fecha ao resto da cidade, sem serviços dentro, sem parques infantis ou campos de jogos, e onde o único caminho de entrada é rua sem saída. Na Pasteleira Nova, no Porto, vizinha da arte contemporânea de Serralves e já quase de olhos postos no Douro, há cadeiras de plástico pousadas às portas das vielas estreitas entre prédios, que são bancas de venda de droga à luz do dia, num negócio intenso. E há quase vida nenhuma na rua para lá do tráfico. De quando em vez, avistam-se idosos de sacos de compras nas mãos em passo acelerado para entrar em casa.

São cerca de 900 os moradores do bairro, todos obrigados a conviver com o tráfico de heroína e cocaína. E o receio ou o facto de receberem contrapartidas não deixa margem para falarem, num manto de silêncio ensurdecedor que ali é lei. A história é sabida. A demolição dos bairros do Aleixo e de São João de Deus e o realojamento de moradores sem planeamento transformou o bairro da Pasteleira Nova, concluído em 2000, no epicentro do tráfico no Porto, no supermercado de droga do norte do país. O fenómeno concentrou-se aí, traficantes e consumidores mudaram-se em força para essa zona da cidade. E é preciso alargar o perímetro para chegar à dor de quem aqui tem morada. Para quem sofre não tanto com o tráfico, mas com o consumo. Com o sem-fim de consumidores que habitam as ruas 24 horas por dia.

Jorge – só Jorge, pelo medo que corrói e que o mediatismo veio adensar – mora numa casa alta das Condominhas, bairro vizinho da Pasteleira feito de moradias, e não pára de espreitar pela janela. Tem dois filhos, um miúdo de 14 e uma jovem de 17. “A minha filha tem medo de sair quando está escuro. Tenho muito receio. Mal chego a casa, corro da garagem para a porta da cozinha e fecho-a logo à chave. Estou em casa e não me sinto seguro.” O aumento do consumo nos últimos anos, com gente de todo o lado a vir abastecer-se à Pasteleira, trouxe-lhe essa realidade para a porta de casa.

Os moradores das Condominhas fazem rondas pelo bairro

A sala de consumo assistido, aberta desde agosto para tentar atenuar o problema, não é suficiente. “E depois de consumirem, têm que arranjar dinheiro para a próxima dose”, comenta João, outro morador, que há muito não deixa as duas filhas virem para casa a pé. O resto é um novelo sem fim. Consumos a céu aberto, tendas espalhadas por jardins que a Câmara vai tentando fechar uns atrás dos outros, assaltos, vidros dos carros partidos, seringas e fezes pelo chão. A primeira reunião dos moradores das Condominhas, tomados pelo desespero de viver paredes-meias com a droga, fez-se numa garagem em setembro de 2021. “A partir do momento em que começámos a ser mais assediados, com gente a rondar-nos as casas, a espreitar para dentro, a tentar entrar, sentimos a necessidade de fazer algo e criámos uma associação”, relata Jorge. Foi aí que começaram as rondas noturnas combinadas entre a vizinhança num grupo de WhatsApp.

António encontrou uma seringa num vaso de casa

A cada noite, juntam-se dois ou três moradores para tentar afugentar os consumidores que possam estar perto. Caminham devagar pelas ruelas de paralelos entre fileiras de pequenas moradias de todas as cores e feitios, algumas mesmo à face da rua, com muros que dão pela cintura e dois passos a separar o portão da porta. Houve quem investisse em gradeamentos sobre os muros, em câmaras de vigilância, em sistemas de alarme, em cães de guarda. Há até casas devolutas de janelas e portas cimentadas para evitar a entrada de toxicodependentes. António, também morador, já apanhou uma seringa usada num vaso de casa. “Podia ter sido o meu neto a encontrar, é um perigo.” E José (nome fictício) abre as portas do pátio para mostrar o que lhe aconteceu há tempos. “Era domingo, cinco da tarde, e estava aqui na sala a ver televisão com a minha esposa.” O janelão da sala dá para o pátio. “Quando olhámos para o lado, vimos um fulano a tentar entrar-nos em casa. Conseguiu saltar o meu muro com mais de dois metros. Ainda fui atrás dele, tinha que defender os meus, a minha esposa e a minha filha, mas ele conseguiu fugir. Ainda bem, não sei o que lhe faria.” A filha ouve o relato com a ansiedade de quem teve que aprender a viver com medo e interrompe: “Agora sempre que saio de casa fecho as portadas todas, tranco tudo”.

“José” viu saltarem-lhe o muro para o assaltarem a um domingo à tarde

A insegurança invadiu sem perdão os bairros vizinhos da Pasteleira Nova, forçados a viver lado a lado com a miséria de quem cai num poço sem fundo, “com o assalto, a sujidade, o consumo e a pernoita no espaço público”. “Isto é inaceitável.” Rui Carrapa tem morada num prédio no Fluvial e é ríspido nas palavras que escolhe para denunciar a exaustão de uma luta inglória. “Eu abordo os consumidores, não quero que consumam na minha rua. Já fui agredido à frente da minha filha, mas se mostrar medo estou lixado. Agora que o assunto está na moda não faltam polícias aqui, só que isto é só cosmética. Sou a favor de criminalizar o consumo na via pública.” A sala de consumo assistido, admite, trouxe melhorias, mas “está saturada” e Rui, no meio da angústia e da irritação, diz ser “do interesse de muitos que isto se mantenha concentrado aqui”.

Crianças sem brincar na rua, a intervenção policial

A escassos metros da Pasteleira Nova está um jardim, o Parque da Pasteleira, que virou recentemente abrigo para consumidores. Um lago, um parque infantil deserto de brincadeiras e pontes de madeira que já só servem de teto ao consumo. É uma zona verde a separar o bairro do Centro Social da Paróquia de Nossa Senhora da Ajuda, que é creche, pré-escolar, ATL e centro comunitário direcionado para apoiar a comunidade. Há semanas, foi assaltado pela sexta vez desde o final do ano que passou. Partem janelas, arrombam portas, roubam comida, telemóveis. “Estou cá há 21 anos e nunca sentimos este clima. As instituições e serviços da zona sempre foram protegidos pela comunidade. Mas há muita gente que não é de cá e a realidade dos consumidores agora é muito mais visível”, conta Sara Cerqueira, diretora técnica e assistente social, que contrasta com a corrente de receio que paira e ergue a voz. “Sentimos que não estamos seguros. Mas não basta ter cá a Polícia, esta problemática tem que ser vista com olhar alargado. É preciso punir o crime, mas também cuidar de quem está em fim de linha. Isto é um problema da cidade, que tem bons técnicos que podem sentar-se e olhar para este contexto. Não podemos sair de manhã para levar crianças à escola e ter pessoas a dormir nas entradas de prédios, nas paragens de autocarro, dentro de caixotes do lixo, como já me aconteceu.”

As crianças a brincar no recreio do Centro Social da Paróquia de Nossa Senhora da Ajuda, uns metros acima da Pasteleira Nova

O retrato violento e de degradação endurece quando os miúdos entram na equação. O centro social é frequentado por 238 crianças, 138 são moradoras dos bairros à volta. E enquanto no recreio há saltos acrobáticos e corridas barulhentas atrás da bola, a realidade é um murro no estômago que foge da órbita da inocência. “Isto faz parte da vida delas. E há uma grande probabilidade de caírem no mesmo caminho. Como é que conseguimos transmitir valores a estas crianças quando no sítio onde vivem tudo se consegue de outra forma que não o trabalho? Temos crianças aqui que estão entregues aos avós e bisavós [porque os pais foram presos]. Para elas, a Polícia é o mau da fita.” Quase diariamente, há rusgas no bairro, movimentações aceleradas, fugas audíveis à Polícia. “Estas crianças têm direito a olhar pela janela de casa e não ver gente a vender, a defecar, com uma arma na mão.” Há idosos que não saem de casa pelo medo aterrorizador. E dar uma caminhada, brincar na rua, jogar à bola, andar de bicicleta não é sequer possibilidade. “As crianças não podem brincar no seu bairro e também já não podem ir para o parque porque agora é um sítio onde consumidores dormem e há seringas, pratas, todos os dias a Polícia Municipal está lá a fazer limpeza.”

Rui Mendes, comandante da Divisão de Investigação Criminal do Comando Metropolitano do Porto da PSP, reconhece que o problema não é só securitário. É social. Se noutros tempos o tráfico de estupefacientes – e, invariavelmente, onde há tráfico há consumo, pois andam de mãos dadas – se dispersava pela cidade, por bairros como o Cerco ou o Lagarteiro, hoje é inegável que o fenómeno está concentrado, “que é muito visível, que tem muita exposição e repercussões sociais”. Até porque o bairro da Pasteleira tem características, do ponto de vista urbanístico, “que facilitam muito a atividade de tráfico”.

Rui Mendes, comandante da Divisão de Investigação Criminal do Comando Metropolitano do Porto da PSP, que assegura que a intervenção no bairro tem sido uma prioridade

A intervenção nesta zona tornou-se prioritária para a PSP, “é um dos principais problemas neste momento na cidade”. Mas há uma dicotomia evidente. Por um lado, o tráfico, que é “algo que a Polícia tem combatido” – em 2022 só nesta zona cerca de 500 pessoas foram detidas, neste ano o número já vai nas 150. Por outro, é preciso tentar responder “às populações do ponto de vista das consequências sociais” e para as quais “não é fácil haver uma resposta efetiva”. Olhando só para a Pasteleira, “onde há pessoas a morar alheias ao tráfico, que saem todos os dias para trabalhar e regressam à noite, um dos objetivos do combate ao tráfico é também manter naquele aglomerado social algum nível de ordem pública, devolver alguma estabilidade social ao bairro”. Curiosamente, não há grandes registos de agressões ou crimes patrimoniais que visam os moradores do bairro, embora haja situações de violência entre traficantes. “As principais queixas são de ruído, de instabilidade nas entradas dos prédios. Mas não podemos parar de maneira nenhuma. Caso contrário, corremos o risco de o tornar num bairro completamente inacessível e sem lei”, realça Rui Mendes.

Lisboa, depois do Casal Ventoso

Se rumarmos ao sul do país, a história escreveu-se por linhas diferentes depois do desmantelamento do Casal Ventoso. O mítico narcobairro virou ruínas e foi apagado do mapa de Lisboa, estávamos em 1999. Muitos dos moradores foram realojados na Quinta do Cabrinha, paralela à Avenida de Ceuta, em Alcântara, bairro de edifícios altos, com Amália e a guitarra portuguesa a colorir fachadas. Outros foram distribuídos por outras zonas. E o mercado da droga dispersou-se pela cidade, por bairros não só em Alcântara, como em Campo de Ourique, Areeiro, Beato, Marvila.

Nuno Maneta tem 50 anos, os olhos muito azuis e o cabelo penteado – era conhecido por Elvis em catraio. Vive no bairro Portugal Novo, nas Olaias. No meio de muitos blocos de azul desbotado, é no 3.º andar de um prédio branco de varandas cor-de-rosa que mora. O tráfico e o consumo são uma realidade aqui, apesar de a repressão policial recente ter acalmado o negócio, após um tiroteio à luz do dia que alarmou as gentes e destapou o véu da incerteza. “Conheço a maior parte das pessoas do bairro. São da minha geração ou pouco mais novas. Vi-as a crescer.” É talvez por isso que Nuno fala sem o medo paralisante que amarra outros e que as últimas manchetes de jornais ainda vieram atiçar.

Nuno Maneta, que é técnico de rua na associação Crescer, junto ao bairro Portugal Novo, onde mora com a mãe de 89 anos

Nuno cresceu na antiga Quinta do Monte do Coxo, no vale que recebe hoje o Rock in Rio, bairro que ruiu e que, mais tarde, a poucos metros, deu lugar ao Portugal Novo. Não se lembra de viver sem o negócio a circular à porta. E é ex-consumidor, esteve mergulhado na droga durante toda a década de 1990, num caminho de vaivéns que só chegou ao fim em 2000 quando entrou num programa terapêutico, “a melhor coisa” que fez na vida. Curiosamente, foi na tropa, já depois de sair do lugar onde nasceu, que se viciou. Hoje, além de um negócio de entretenimento, trabalha numa equipa de rua na associação de intervenção comunitária Crescer, que apoia pessoas que consomem substâncias psicoativas e em situação de sem-abrigo. “Não posso deixar de fazer o que faço, é uma espécie de lembrete. A sociedade olha para quem consome com uma carga forte, como se fossem o problema, quando na verdade são pessoas como nós, que estão numa fase má e que precisam de esperança. A maioria quer parar.”

Depois dos ziguezagues da vida, foi há coisa de dois anos que Nuno voltou ao Portugal Novo, para morar com a mãe, de 89 anos, e encontrar um fenómeno que se intensificou nos últimos anos. “Sinto que a dinâmica do bairro é prejudicial para 80% a 90% dos moradores. Porque quem olha de fora acha que é um bairro de bandidos. Mas não, a maioria das pessoas tem casa, sai todos os dias para trabalhar, só que a montra é essa, a da venda e do consumo. Ainda há pouco tempo, uma rapariga não quis entrar no bairro para me entregar uma encomenda por medo.”

Dentro das portas daquele amontoado de prédios, a sensação de insegurança é gerada sobretudo por quem vem de fora para comprar e consumir, “porque os moradores têm filhos, cães que querem passear e têm medo de encontrar seringas, pessoal a consumir, pessoas estranhas”. “Não sabes o que esperar e sentes que o bairro já não é teu. Mas, na verdade, não há muitos assaltos dentro do bairro. Há muito lixo e ouço os vizinhos queixarem-se, até a minha mãe. Mas eu sei mais do que isso, não ponho rótulos de marginais sem conhecer as pessoas.”

Aqui, como noutros bairros de droga, o tráfico é uma estrutura bem oleada, e a venda acontece em escadas de prédios, o que deixa, muitas vezes, os moradores reféns do lado de dentro ou do lado de fora da porta de entrada, num método cruel. Da janela, Nuno assiste muitas vezes a zaragatas. “Mas estou habituado a isso, nasci ali.” Soluções? Mais salas de consumo, “para consumirem de forma segura e não estarem na rua a criar este mal-estar”. “Isso e legalizar a droga. Ou seja, ser o Estado a regular a venda, como se faz com o álcool. Aí, tudo seria melhor, a qualidade das drogas, a segurança, menos riscos de saúde pública, o encaminhamento para tratamento”, acredita Nuno.

Em Lisboa, há uma sala de consumo fixa no bairro da Quinta do Loureiro – onde, antes, a uns metros, estava edificado o Casal Ventoso e onde a droga continua presente qual herança – sem vagas suficientes para dar resposta às pessoas que se inscrevem e que acabam a consumir na rua. Andreia Alves, coordenadora da equipa técnica de rua Lisboa Oriental da associação Crescer, faz um retrato rápido dos últimos anos. “Depois do Casal Ventoso, foram encontradas respostas que foram eficazes para o consumidor dos anos 1990. Mas a população mudou e mais de vinte anos depois não tem o mesmo perfil de consumo, não tem a mesma escolaridade e não tem as mesmas necessidades. E as respostas continuam as mesmas.” Hoje, refere, a maioria das pessoas fuma e não injeta, prefere entrar no mercado de trabalho do que numa comunidade terapêutica. E o fenómeno do consumo a céu aberto, na capital do país, dispersa-se cada vez mais, o que dificulta o trabalho às equipas no terreno.

Andreia Alves, coordenadora da equipa técnica de rua Lisboa Oriental da Crescer, na Quinta do Cabrinha, onde funciona a associação

A Crescer não olha para o assunto sem ver os moradores, que Andreia diz, firme, que têm que ser ouvidos. “Precisamos dos moradores dos bairros para nos sinalizarem onde estão as pessoas em situação de sem-abrigo, onde estão as seringas. Não podemos fazer o nosso trabalho sem a população sensibilizada.” Os técnicos de rua, que estendem a mão a consumidores, também querem ser úteis ao resto da comunidade. “E ser útil pode ser uma senhora que se queixa de ter consumos à porta de casa e garantir que estamos lá todos os dias a recolher seringas ou um lojista que tem alguém a dormir à frente da loja e nós identificarmos a pessoa e procurarmos uma solução de habitação digna.” O problema é a falta de respostas e as soluções demoram. “Os tempos de espera para tratamento são de meses, não há vagas na sala de consumo, nem respostas de habitação. E não se trabalha na prevenção, em políticas de habitação para estancar os casos de pessoas que chegam à situação de sem-abrigo. Muitas delas não tinham consumos e começam na rua”, critica.

Um bairro Branco no beato

Nos meandros dos bairros lisboetas onde a droga impera, os moradores calam as dores, fogem das perguntas, escondem o nome, a cara. O bairro Carlos Botelho, a que todos chamam Branco, no Beato, faz-se anunciar mal se vislumbram vigias a rodear os lotes de paredes envelhecidas a esfolar. Uma fachada inteira colorida com o desenho de um robô é cartão de visita. E o ambiente pesado ainda é palpável depois de uma rusga que deteve traficantes, vigias, mas que não pôs travão ao negócio.

Tiago Alves, 45 anos, aproxima-se, veste um gorro, traz um fio prateado ao pescoço, anéis nos dedos, tatuagens. Nasceu num bairro de lata de que pouco tem memória. Aos seis anos, os pais tiveram direito a habitação e ali mora desde então. Mesmo depois de casar, ficou no bairro. “A droga esteve sempre presente aqui, a partir dos anos noventa, sobretudo. Depois acalmou. E está como não via há muitos anos, eu que associava isto muito à geração que hoje tem 50, agora vejo miúdas e miúdos de 20 anos agarrados, é impressionante.” É gente que chega de fora do bairro para consumir e que por ali fica.

Andreia Alves, coordenadora da equipa técnica de rua Lisboa Oriental da Crescer, na Quinta do Cabrinha, onde funciona a associação

Se calcorrear aquelas ruas, é conhecido de todos, não tem medo por ele. Só pelas filhas, duas gémeas de 12 anos, e pelos sobrinhos. “Que sejam assaltados. E pelas seringas que há no meio da rua, pelo pessoal a injetar-se à vista de todos. Já tive um senhor aqui à porta a baixar as calças e a injetar-se na virilha. Perguntam-me ‘ó pai, o que é que ele está a fazer?’ e tento desviar a conversa.” Há consumos debaixo das escadas, atrás dos carros, às vezes “partem os vidros dos carros e metem-se lá dentro”. E pequenos assaltos, “a pessoas, casas, até no autocarro, o 30, o único que passa por aqui”. A vida num desassossego.

Nos últimos tempos, os consumidores dormem em barracas montadas a poucos passos dos prédios, num descampado que é caminho de terra, mesmo nas traseiras de uma creche. “É um caminho que toda a gente usa para atravessar a Picheleira. E vivem ali umas dez ou doze pessoas. À volta, está tudo cheio de lixo. Os miúdos passam para ir para a escola e vê-se tudo a acontecer, desde consumir, fazer sexo, as necessidades. Não culpo os consumidores, falta uma resposta aqui.”

O relato é inquietante. A decadência humana é vizinha de Tiago há décadas, está acostumado. Mas não foi há muito tempo que uma jovem a quem já havia oferecido comida lhe disse “ó tio, dás-me dez euros e fazes o que quiseres comigo”. “Caiu-me tudo, fiquei com o queixo no chão.” E o tráfico, esse, soma-se ao tanto que é morar no bairro. “Fazem o que querem dos prédios, vendem lá, fecham as portas, mudam fechaduras. As pessoas querem sair e às vezes não conseguem. E têm muito medo, sobretudo os idosos.” Os elevadores estão constantemente avariados e a sujidade é um desconcerto.

A voz rouca de Manuel (nome fictício) junta-se à conversa. Está de fato de treino e é áspero no discurso. Fala sem pudores, mas não sem o temor de represálias que o faz exigir: “Não vai escrever o meu nome aí”. Nasceu na Quinta da Curraleira, antigo bairro de que já só sobra memória, a droga sempre à mão de semear. “Sou ex-toxicodependente”, assume, sem artifícios. “Consumi nos anos oitenta. Graças a Deus estou limpo dessa porcaria. Mas sempre lidei com esta realidade. Só que antes isto era tudo quintas e barracas e agora são bairros, com prédios, o que torna tudo muito mais visível.”

Sabe que não se vai acabar com a droga, “mas que há falta de vontade por parte de quem manda para resolver o problema, há”. “Era só investir em mais salas de consumo, com médicos a apoiar. Tenho receio pelas doenças que andam aí. Tivemos aqui um indivíduo a viver debaixo das escadas com tuberculose. Chamámos a Polícia, tudo, ninguém fez nada.” De ter morada no bairro Branco, há marcas cravadas para sempre por tudo o que lhe passa diante dos olhos, todos os dias. Ergue a mão enfurecido. “Há que tentar ajudar estas pessoas. Já basta a miséria em que estão e depois vêm uns agentes da autoridade dar-lhes porrada, como já vi, a pessoas sem defesa nenhuma, e acham que resolvem alguma coisa. Eu tinha vergonha.”

A Manuel já o tentaram assaltar uma vez, nada que o amedronte. É filho da terra, cresceu tanto com quem faz negócio no bairro, como com quem, como ele, ali mora à margem do mundo da droga. Tem espírito bairrista. Aflige-se só pelos filhos – são quatro, os dois ainda menores vivem com ele. “De saírem de casa e verem um a picar na virilha, outro no pescoço. Mas também compreendo. Andei nessa vida e sei qual é a aflição de te injetares o mais rápido possível.” É assaltado pela memória e não esconde nada aos filhos, tenta “explicar-lhes o que é isto, o maior erro é esconder”. E viver? Vai-se vivendo, repete vezes sem conta, como quem aceita o destino que lhe calhou. “Vivemos aqui há anos. Tivemos que aprender a viver com isto à volta.”