Metem as mãos na massa e também dão ordens. As mulheres na construção civil

Operárias ligadas à construção ainda são uma raridade, mas, num "setor fortemente masculinizado", há quem desafie a lógica e faça por escavar o preconceito. Cinco testemunhos que fazem sonhar com um futuro distinto.

Está uma manhã soalheira em Canidelo, freguesia de Vila Nova de Gaia colada ao mar. A cada rua, novas construções, condomínios de luxo acabados de nascer, outros que ainda vão arrancar, casas a surgir do zero, ou a meio caminho, umas tantas quase prontas, nesta zona oferta não falta (para um dado segmento endinheirado, diga-se). Numa perpendicular à praia, com vista direta para o mar, uma destas construções parece, no entanto, demarcar-se das demais. Não tanto pelo tamanho ou o estilo arquitetónico, antes porque no centro da obra, de capacete na cabeça e alicate na mão, estão duas mulheres. Camila Santana, 30 anos, e Ana Cláudia, 35, partilham o andaime e outros pontos em comum: são ambas brasileiras, de Pernambuco, vieram para Portugal a sonhar com melhores condições de vida, encontraram na construção civil a oportunidade que procuravam, juram ambas ter sido um tiro certeiro. Mesmo que este não fosse um cenário que se desenhasse à partida. “O meu pai é da área da construção e eu quando era mais nova ajudava a fazer coisas básicas, mas sempre achei que não conseguiria trabalhar na construção”, admite Camila, sorridente e despachada. Anda atarefada a prender os ferros que desembocam no topo da pilha de blocos, para que, ainda esta tarde, se possa betonar a estrutura. Ana Cláudia também. Para ela, vir parar a esta área afigurava-se um desfecho ainda mais improvável. “A minha mãe sempre fez tudo em casa, mas eu não, não tinha jeito nenhum. Achava eu. Aqui percebi que tenho.”

É licenciada em Gestão de Turismo, mas nunca conseguiu trabalhar nisso. No Brasil, passou por uma fábrica e depois esteve anos na área administrativa, quando chegou a Portugal, em agosto do ano passado, ainda andou um mês a fazer limpezas de quartos num hotel. Entretanto, falaram-lhe de uma empresa de construção que estava a dar formação a mulheres para trabalhar e viu ali uma boa oportunidade de “aprender uma nova profissão”. Camila chegou há mais ou menos um ano, no Brasil trabalhou dez como administrativa, nunca tinha experimentado nada que se relacionasse com isto. Mas depois soube da Ecoconcept, e de uma publicação nas redes sociais em que a empresa desafiava mulheres a ir trabalhar, e quis experimentar. Ao fim de três dias de teste, percebeu que estava à altura do desafio. O facto de se tratar de uma construção em ICF (Isolated Concrete Forms), com blocos isolantes que se empilham ao jeito de legos para depois serem preenchidos com betão armado, também ajuda, aponta António Alves, CEO da empresa. Além de vantagens ao nível do isolamento térmico, da filtragem do ar e da rapidez da construção – pelo menos é isso que garante o responsável -, o facto de estes blocos serem leves e facilmente transportáveis, e de o seu manuseamento não requerer uma “mão de obra tão específica e tão artística”, abre portas a protagonistas até aqui improváveis. “Neste tipo de construção a precisão é um ponto-chave. E as mulheres, regra geral, são mais perfecionistas, fazem cortes mais limpinhos.”

Ana Cláudia, 35 anos, também trabalha na Ecoconcept, uma empresa de construção que aposta em casas passivas e que pretende empregar cada vez mais mulheres
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Camila não se retém na falsa modéstia. “É um trabalho mais técnico, mais detalhista, não é tão braçal. E nós somos mais atentas aos pormenores.” Por tanto, não há homem que as supere? “Sem dúvida que estamos ao mesmo nível. Não vou dizer que estamos um nível acima que é para não humilhar”, atira, a rir, em jeito de provocação. Por aqui, o ambiente entre elas e eles é sobretudo isto, assegura. “Flui muito bem, trabalhamos bem, claro que há brincadeiras, mas sempre com respeito.” De resto, Camila já é chefe de equipa e o bom trabalho que tem feito levou-a até a ser promovida a consultora. Está, por isso, em fase de transição. Ana Cláudia segue a tempo inteiro com as mãos na massa, mas dá-se por feliz, só quer ter condições para trazer o filho de 12 anos que ficou no Brasil com a avó, pensa até em evoluir. Por parte dos colegas, nunca notou estranheza face à sua presença. Algum espanto sim, mas só dos clientes que visitam as obras e, de tão surpreendidos, às vezes até pedem para as fotografar. De quem passa na rua também. E nisto Camila, que tinha ido ao piso de baixo, reaparece e faz questão de acrescentar isto, como que a rematar a conversa. “O lugar da mulher é onde ela quiser.”

O lugar dela é na cozinha. Mas não é o que parece

Marisa Rodrigues, de 42 anos, não se socorre da expressão, mas o percurso dela tem sido a concretização deste lema. Natural de Vila Pouca de Aguiar (embora viva em Bragança há mais de 20 anos), filha de carpinteiro, habituou-se a andar com ele para todo o lado e a entreter-se com o pouco que havia. “O meu pai dava-me pedacinhos de madeira e eu fazia um bocado de tudo: gatinhos esculpidos, mobiliário para as minhas Barbies, casotas para os meus gatos. Noutras alturas, ele ia envernizar os bancos das igrejas e eu ia ajudar. Lixava, martelava, eu sei lá.” O que o pai de Marisa não previu foi que o bichinho havia de lhe dar dores de cabeça. “Comecei a pintar uma série de coisas em casa, o meu quarto, os móveis, o meu pai dava-me cabo da cabeça”, recorda Marisa, sempre a rir. “Outra vez, fartei-me dos azulejos que tinha no chão do meu quarto e fui à oficina dele pegar em dois martelos para os tirar. Quando lá chegou tinha o chão todo picado e já tinha tirado uns bocados. Depois ele lá teve de tirar o resto e de pôr uma madeira flutuante.” Mais tarde, na escola, teve também umas noções de eletricidade. E então a saga continuou, agora noutro capítulo. “Mexia em tudo, transformadores, interruptores. No meu quarto, por exemplo, tirei o que lá tinha e coloquei daqueles com rodinha, em que se pode aumentar e diminuir a intensidade da luz. Estava sempre a inventar coisas, não parava quieta nem um bocadinho.”

Marisa Rodrigues “estreou-se” nestas lides com o pai, carpinteiro, e o bichinho não mais a largou. Hoje, é a única mulher numa empresa que se dedica à renovação de casas, em Bragança
(Foto: Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens)

Foi talvez o fascínio pelos interruptores que a levou a querer Engenharia Eletrotécnica no Politécnico de Bragança. Mas o curso não a agradou. Mudou para Engenharia do Ambiente, seguiu-se um mestrado em Gestão e Conservação da Natureza, depois passou uns dez anos a trabalhar no Ciência Viva, em Bragança. Pelo meio, comprou casa e pôs mãos à obra. “Eu e o meu namorado, agora marido, remodelámos o apartamento todo. Até a parede da cozinha deitámos abaixo.” Marisa fala depressa, como quem tem sempre mais qualquer coisa para contar. Mais tarde, o companheiro, que já era dono de uma agência funerária, quis abrir o negócio num novo local. Ela pegou num amigo e foi para lá remodelar o espaço, um antigo ginásio, para lhe fazer surpresa.

Não espanta, por isso, que Marisa tenha ido parar à MELOM Obras, a empresa responsável pelas renovações de casas exibidas no programa “Querido, mudei a casa” (e por tantas outras que não têm honras de emissão televisiva). “Bati à porta e disse: ‘Olhem, eu faço isto assim-assim, gostava de ajudar’.” E assim foi. Esteve três ou quatro dias à experiência (isto em 2018) e rapidamente os patrões se convenceram de que ela seria uma mais-valia. Na altura, trabalhava com quatro homens. Hoje são 12 funcionários, mas Marisa continua a ser a única mulher. Nada que a apoquente. “Quando entrei, ia algo receosa, não sabia o que esperar, mas são todos muito porreiros e respeitosos, dizem-me muitas vezes: ‘Olha, anda cá ver, achas que está bem assim?’. E quando vou fiscalizar e algo não está bem, também ralho com eles.” Mas eles não se ofendem, no Dia da Mulher (celebrado na próxima quarta-feira, dia 8) costumam até levar-lhe flores, por vezes rebuçados. “Normalmente os clientes é que ficam mais admirados quando me veem em obra. Volta e meia perguntam-me: ‘Então mas também faz isso?’.” Faz isso e mais, verifica a obra e prepara o orçamento, é a responsável pelas cozinhas, tira as medidas e conduz todo o processo de montagem, se for preciso também instala roupeiros, chão flutuante, acabamentos. Agora que foi mãe (há um ano, mais coisa menos coisa), até tem estado mais pelo escritório, mas sempre que é preciso põe mãos à obra. Também já gessou paredes e fez gesso cartonado, até a canalização de água e saneamento. Por tudo isto, não tem dúvidas: “É como se fosse um deles.”

Calceteira não. Chefe calceteira

Se para Marisa a entrada num setor habitualmente reservado aos homens foi o cumprir de uma vocação de longa data, para Marlene Rodrigues, 43 anos, foi uma questão de força maior. Natural de Penafiel, estudou até ao 12.º ano, depois foi para uma fábrica embalar roupa de bebé. Entretanto casou e começou a ajudar na empresa do marido, a Portflester, que se dedica às pavimentações. “Trabalhava na parte do escritório, controlava a documentação dos trabalhadores, respondia aos pedidos dos empreiteiros, tratava da questão dos equipamentos de proteção individual, dos exames médicos, do processamento dos vencimentos, tudo o que fosse mais relacionado com a parte mais burocrática.” Mas depois também ia com o marido ver as obras, acompanhava-o em viagens, ia percebendo como as coisas funcionavam.

Para Marlene Rodrigues, a incursão a fundo neste setor foi mais uma questão de necessidade. Com a morte do marido, teve de assumir o controlo da empresa de pavimentações até aí gerida por ele
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

O conhecimento que bebeu ao longo daqueles anos no terreno haveria de revelar-se crucial. Há uns anos, o companheiro de uma vida adoeceu, foi-lhe diagnosticado um tumor maligno, ainda lutou que se fartou, mas depois também apanhou covid e as coisas complicaram-se, acabou por falecer há mais ou menos um ano. E então as visitas às obras que fazia “mais por companhia” tornaram-se uma necessidade. Marlene faz uma pausa quando chega a esta parte da história, pede uns segundos para se recompor, a vida tem isto de nos trazer dores sem tempo. Mas não se deixa vencer. Às seis e meia da manhã em ponto, lá está ela no escritório, a tirar guias de transporte, a garantir o material para os homens, a ver se está tudo certo. Depois, sempre que é preciso, acompanha o encarregado nas visitas às várias obras. “Ver se estão prontas para começar, assentar guias, resolver problemas.” E ninguém parece estranhar a presença dela. “Como muitos já me conheciam de ir com o meu marido, acham normal. Mesmo entre os clientes novos, acho que ninguém estranha, pelo menos nunca me apercebi de nada.” E, se for preciso, também trabalha no terreno. “Já andei com o meu encarregado de obra a preparar a base para o assentamento, para os calceteiros poderem começar a calcetar.” Não esconde que por vezes “é difícil”, mas está determinada a singrar. A prova é que se prepara para fazer uma formação de condutor de obra. “Agora, aos 42 anos, vou voltar a pegar nos livros, já viu? Mas tem de ser.” E prossegue com a convicção de que nada a pode travar. Muito menos o género.

Engenheiras a ganhar terreno

A realidade mostra, porém, que as mulheres ainda têm um longo caminho a percorrer na área da construção. Fátima Messias, coordenadora da Federação Portuguesa dos Sindicatos da Construção, Cerâmica e Vidro e da Comissão para a Igualdade entre Mulheres e Homens da CGTP, reconhece tratar-se de um “setor fortemente masculinizado, com poucas mulheres e uma grande diferença de tratamento”. A prova é que a “Notícias Magazine” pediu ajuda à federação para chegar à fala com mulheres operárias que trabalhassem no setor e, segundo informações recolhidas junto dos vários sindicatos, não há atualmente qualquer associada que desempenhe essas funções. Mais: ao longo dos últimos anos, Fátima ouviu apenas falar de duas ou três operárias que seriam brasileiras e laborariam no centro do país. Mas nunca conseguiu chegar a elas. “Faltam muitas mulheres no setor da construção. Claro que não é uma realidade só do nosso país, mas é um facto. E as que existem estão maioritariamente no apoio administrativo ou na parte mais técnica.” São técnicas de higiene e segurança no trabalho, por exemplo. Ou engenheiras.

Ascensión Moreira, 43 anos, nascida em França mas residente em Marinhais, perto de Salvaterra de Magos, é uma delas. Quando acabou o Secundário foi para Engenharia de Minas no Técnico (em Lisboa). Mais por causa da média do que por outra coisa. Mas acabou a adorar o curso. “Na altura, era uma área de que não se ouvia falar em Portugal. Comecei na Fornecedora de Britas do Carregado, passei pela Bucelbritas, agora estou na Rodio Portugal, onde sou responsável pelo departamento de qualidade e ambiente. E também dou uma perninha na segurança.” Pelo menos uma vez por semana, visita todas as obras que a empresa tem em curso. Verifica condições de trabalho dos colegas em termos de segurança, vê se em termos ambientais as regras estão a ser cumpridas, dá formação sempre que necessário. “Tenho contacto direto com todos os elementos, do servente ao diretor de obra.”

Ascensión Moreira é a responsável pelo departamento de qualidade e ambiente da Rodio Portugal. Está habituada a trabalhar entre homens e nunca achou que o facto de ser mulher fosse uma questão
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

E, nestes já largos anos que leva de profissão, nunca achou que o facto de ser mulher fosse sequer uma questão. “Nunca me senti minimamente excluída ou deslocada, sempre fui muito bem tratada e muito bem recebida. Tanto logo no início, quando comecei a trabalhar nas pedreiras, como agora em obra. Nem sequer noto que me avaliem pelo facto de ser mulher.” Ainda assim, admite que tem havido uma evolução. “Quando comecei a trabalhar, ainda havia muito poucas mulheres nesta área, fosse em que função fosse, a mim nunca me disseram nada, mas ainda havia homens que estranhavam o facto de estar uma mulher junto deles. Agora não, já não se sente em constrangimento, há uma mudança de mentalidade.” Mesmo os trabalhadores não se acanham em pedir-lhe ajuda se precisarem. “Ó engenheira, dê aí um jeitinho”, dizem-lhe, volta e meia. Traça até um cenário risonho para o futuro. “Acredito que daqui a uns anos vai ser normal ver uma mulher numa giratória, numa grua ou a manobrar equipamentos mais pesados. Nós é que ainda não nos virámos para aí. Hoje em dia, qualquer setor deixou de ser exclusivo para os homens. As empresas, e as pessoas no geral, já não olham para isso.”

Fátima Messias, da CGTP, não é tão otimista. Ressalvando que o setor da construção não é, em si mesmo, atrativo (“por causa da dureza do trabalho, dos horários, dos salários, da precariedade”, assinala), e que esse continua a ser o maior problema, admite que, em cima disso, há, em relação às mulheres, um certo preconceito, principalmente “por parte de quem contrata”. “Volta e meia chegam-nos testemunhos disso. Ainda se olha para a mulher como se ela só pudesse ter ocupações pré-definidas. Ainda há muito a cultura de que o trabalho pesado é para homens e o trabalho de minúcia, de atenção, de cuidar é para as mulheres. O setor da construção reflete muito isso.” A responsável sindical vai até a exemplos mais concretos. “Se formos a ver, especialmente em contexto de obra, tudo está organizado para os homens. As instalações, a inexistência de casas de banho para homens e para mulheres, o equipamento que é mais adequado para homens, o próprio facto de este ser um setor móvel, que implica passar temporadas fora, acaba por ser mais prejudicial para as mulheres, porque ainda há muito a cultura de serem elas a tratar dos filhos, a irem com eles ao médico, a cuidar de outros familiares. Tem sido uma evolução tão lenta que ainda custa a encontrar mulheres [operárias] neste setor.” Ou como aquela inspiradora máxima que tem guiado Camila Santana, trabalhadora da Ecoconcept, anda ainda longe de ser lema universal. Um dia, talvez.