Masturbação. O estigma cede, mas não cai

Diabolização começou a ser desmontada há mais de um século, benefícios estão comprovados, há até vantagens várias no contexto de uma relação a dois. Mas o preconceito resiste.

Há uma cena marcante em “Annie Hall”, película realizada por Woody Allen em 1977, em que, a meio de uma troca de ideias acalorada entre o par romântico do filme, a discussão deriva para a masturbação. “Bem, finalmente estamos a entrar num assunto sobre o qual sabes alguma coisa”, atira Annie Hall, em tom provocatório. Alvy Singer (representado pelo próprio Woody Allen), visivelmente irritado, não se fica. “Ei, não menosprezes a masturbação. É sexo com alguém que amo.” A tirada haveria de se tornar icónica, sendo ainda hoje recordada por muitos que viram o filme. É também reveladora do caminho que se tem feito em relação à discussão sobre o tema. Mas, afinal, o que nos diz a ciência sobre este ato de estimulação dos órgãos genitais, que tem como objetivo a obtenção do prazer sexual e que pode ser realizado tanto a sós como com companhia?

Rui Soares, consultor de sexologia clínica no IPO de Coimbra e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, ajuda a responder à questão. “Sabemos hoje que há um conjunto de hormonas que são estimuladas durante este ato e que são essenciais ao bom funcionamento do nosso corpo. A dopamina, a ocitocina, as endorfinas, todas elas são libertadas durante um orgasmo, com benefício fisiológico e orgânico. Falamos, por exemplo, de um humor melhorado, de uma redução dos níveis de stresse e ansiedade.” Entre outros proveitos mais “dirigidos”. “As endorfinas também têm um benefício ao nível da dor, pelo que motivam uma sensação de alívio em pessoas com dor crónica. Em relação à dopamina, sabemos que ajuda no foco e na concentração, pelo que pode ser muito benéfica sobretudo para pessoas mais irrequietas e com problemas de concentração. Além de que, à custa do alívio do stresse e da redução da ansiedade, também tem reflexo no sono, pode ajudar a induzir alguma qualidade do sono.”

Nuno Louro, urologista no Centro Hospitalar Universitário do Porto, particularmente dedicado à andrologia (a área que trata problemas de infertilidade e disfunções sexuais nos homens), ressalva que, quando comparada como outras formas de atividade sexual, não “há evidência de benefícios nem de malefícios” associados à masturbação. “À exceção daquela verdade de La Palice de que previne doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes indesejadas.” Mas há estudos que indicam benefícios do aumento da frequência da ejaculação, admite. Nuno Louro aborda apenas a população masculina, porque só trabalha com homens. “Por um lado, ao nível da fertilidade. Há estudos que sugerem que as ejaculações mais frequentes se traduzem num aumento da qualidade do esperma. Outros apontam uma melhoria dos níveis de testosterona, que é uma hormona muito importante em vários aspetos do nosso organismo, com impacto ao nível do metabolismo ósseo, das alterações cognitivas, do próprio humor.”

Os estudos referem ainda que um aumento da atividade ejaculatória pode funcionar como fator protetor em relação ao cancro da próstata. Um estudo conduzido por investigadores da Universidade de Boston (EUA) e publicado na revista científica “European Urology”, em 2016, concluiu que os homens que ejaculam pelo menos 21 vezes por mês têm um risco 20% menor de desenvolver este tipo de tumor. “Além de que, ao contrário do que aconteceu até ao início do século XX, quando era considerada como a causa de todos os males, tem efeitos positivos no autoconhecimento do corpo e na aprendizagem da sexualidade.”

Do pecado grave à educação sexual

A alusão motiva uma breve viagem no tempo, importante para interpretar certos preconceitos que resistem. Mesmo que o estigma não tenha sido sempre a lei. Os sumérios, por exemplo, acreditavam que a masturbação aumentava a potência sexual. Para os antigos egípcios, esta era até apanágio das divindades, sendo vista como um ato de criação (acreditava-se que o deus Atum, depois de se ter criado a si mesmo, tinha criado o universo masturbando-se). Já na Grécia Antiga, e depois no Império Romano, prevalecia uma certa naturalidade face a este ato. Mas com a chegada da cultura judaico-cristã ao Ocidente o caso mudou de figura. A naturalidade deu lugar à repressão, sendo o “desperdício voluntário de esperma” visto como pecado grave. Na cidade americana de New Haven, a masturbação chegou a ser crime punido com pena de morte. A condenação passou a ser a regra, mesmo por parte dos médicos, que a conotavam com doenças variadas, dos distúrbios digestivos à impotência e à falta de desejo sexual. E assim se propagaram variados mitos anticientíficos de conotação altamente pejorativa que visavam desencorajar o ato. Foi preciso esperar até ao início do século XX para que esta visão fosse desmontada, muito graças ao contributo de estudiosos de referência como Sigmund Freud. Já o consenso, entre profissionais de saúde, de que se trata de uma prática saudável e até de uma parte importante do desenvolvimento sexual chegaria mais para o final do século, com o advento dos estudos e das especializações académicas na área da sexualidade.

Rui Soares destaca este ponto, relacionado com a educação sexual. “É uma vantagem maravilhosa para a perceção do corpo, para que o jovem conheça os seus pontos de prazer. É aconselhável que o faça antes de iniciar a sua vida sexual com um parceiro. Era essencial que isto fosse explicado. Muitas vezes, quando os jovens iniciam a sua vida sexual, têm o foco apenas na penetração. E isso tem de ser desmistificado porque o conhecimento de pontos de prazer não passa apenas pela penetração, passa por um conjunto de fatores.” Se este for um processo partilhado, tanto melhor. “Em termos relacionais, temos a noção de que um casal é muito mais cúmplice, funciona mais a dois, se houver esse ato masturbatório mútuo. Em consultas de casais de namorados que estão a iniciar a vida sexual, aconselhamos isso mesmo: ‘Deem um ao outro esse tipo de prazer.’ É uma partilha da sexualidade que é fundamental. Essa intimidade e essa segurança acabam por ser mais vantajosas do que o coito propriamente dito.”

Masturbação mútua a crescer

Luana Cunha Ferreira, psicóloga clínica e terapeuta familiar, que, entre outras áreas, foca a sua investigação científica nos processos de intimidade e desejo no casal, não tem dúvidas de que a masturbação mútua “está cada vez mais presente” no dia a dia dos casais. A propósito, uma ressalva. “É preciso desconstruir esta ideia de que a masturbação substitui qualquer coisa dentro do casal. Em geral, isso não é verdade. A masturbação, na sexualidade do casal, segue uma narrativa própria. Claro que podemos ter casais que sentem que já têm uma sexualidade muito desinvestida e tentam por isso encontrar parte da sua motivação erótica na masturbação. Mas também temos casais com vidas sexuais muito satisfatórias, para os quais a masturbação acaba por ter um papel importantíssimo.” Até porque, lá está, “não é necessariamente algo que se faz sozinho”.

Vantagens? Inúmeras. No universo feminino são ainda mais notórias. “Ao nível do orgasmo, há enormes benefícios para as mulheres e pessoas com vulva, porque tendem a não atingir o orgasmo através da penetração, é preciso estimulação clitoriana. E através da masturbação aprendem a conhecer o seu próprio corpo, a saber o caminho de que precisam para chegar ao orgasmo. Até porque se não o souberem, não o podem ensinar ao parceiro ou parceira.” A tal vertente de educação sexual de que Rui Soares falava. Aliás, “há muitos casais que conseguem ter orgasmos num mesmo encontro por causa da masturbação”, realça a docente da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. “Caso contrário, os orgasmos conjuntos seriam ainda mais um mito.”

Os pontos a favor não se ficam por aqui. Além de poder ser um espaço seguro para “pessoas com sexualidades altamente estigmatizadas [das minorias às pessoas mais velhas]”, há ainda, no contexto de uma relação a dois, uma outra vantagem que remete para a questão da “privacidade e autonomia sexual”. “Sabemos hoje que, para mantermos um desejo sexual elevado, particularmente num casal monogâmico, a autonomia e as fantasias privadas têm um papel muitíssimo relevante.”

Luana lembra ainda a importância crescente da masturbação, e do sexting – troca de mensagens eróticas, com ou sem fotos, via telemóvel – que muitas vezes lhe está associado, nas relações à distância. “Há cada vez mais casais a viver em países diferentes. E isto também foi particularmente significativo durante a pandemia. A masturbação acabou por funcionar como um dos principais fatores protetores nos casais que não viviam juntos.”

Ainda assim, reconhece, há um estigma que resiste. A psicóloga apercebe-se disso também durante as sessões de terapia familiar. “Ainda é relativamente frequente a masturbação individual ser considerada, pelo parceiro ou parceira, como um ato de infidelidade, sobretudo quando se associa ao consumo de pornografia. “Não é tanto a ideia de fantasiar com outra pessoa, nem sequer uma questão moral. Tem mais que ver com uma ideia mítica, romântica e ideológica da exclusividade. Como se o outro tivesse de ser o fiel depositário de toda a nossa energia amorosa e sexual. Claro que isto acontece em casais com muito pouca privacidade e muito intrusivos na autonomia um do outro. Hoje sabemos que não temos um grande talento para a exclusividade monogâmica. E uma coisa é assumir um compromisso monogâmico. Outra é o que se passa na nossa cabeça. Nós fomos feitos para fantasiar, às vezes até com personagens que não são reais.”

A investigadora chama ainda a atenção para uma outra face do preconceito. “Também se reflete ao nível da educação sexual e mesmo da investigação científica. Aprende-se sobre masturbação sobretudo através dos media e da pornografia. E esse não é, de todo, o ambiente mais adequado e pedagógico para essa aprendizagem. Ainda é, de facto, um ato muito estigmatizado, com duplo standard de género. Isto é, muito mais aceite pelos homens e para os homens do que para as mulheres, o que é curioso visto que as pessoas com vulva beneficiam muito mais da masturbação para conseguirem atingir o orgasmo. É altamente paradoxal. Não deixa de nos surpreender o quão castigadores estes estigmas continuam a ser para a sexualidade feminina.”