Marketing inclusivo: preocupação ou aproveitamento?

Um anúncio com pessoas com doença mental. Outro com um casal homossexual. Há ainda um só com atores afrodescendentes. E outro com um atleta paraplégico. Entre o objetivo de lucrar e a ajuda à inclusão, as marcas aparentam preocupar-se cada vez mais com questões-chave da sociedade. Mais do que falar para as minorias, esta promoção tem como objetivo consciencializar as massas.

Recuemos a 1994. Nas televisões norte-americanas passava às 22 horas (quando as crianças já estavam a dormir, era assim justificado o horário escolhido na época) uma série de novos anúncios publicitários da marca sueca IKEA. A campanha tinha como objetivo representar as diferentes famílias existentes. Um sobre pais adotivos. Outro sobre mães solteiras. Só por aí, a marca já tentava representar minorias na sociedade, mas decidiu ir mais longe. Assim, há 29 anos, surge o primeiro anúncio televisivo com um casal assumidamente homossexual.

Os dois homens estão sentados à mesa de refeição a partilhar a sua vontade de comprar mobília nova, referindo estar numa relação há três anos. As reações, relata-se, não foram positivas. Diversos meios de comunicação falam em ameaças de bomba, boicote e críticas severas à IKEA. Em Portugal, foi necessário esperarmos até 2011 para que a marca publicitasse com protagonistas da comunidade LGBTQIA+. O anúncio chama-se “A festa” e passou na época de Natal. Desde aí temos vindo a assistir a mais anúncios inclusivos de minorias da sociedade. É uma nova tendência?

Um anúncio da IKEA que esteve no ar nos Estados Unidos da América em 1994 é considerado a primeira publicidade protagonizada por um casal homossexual
(Foto: DR)

Sónia Nogueira, docente de Marketing na Universidade Portucalense (UPT), responde que sim. “O termo marketing ou publicidade inclusiva tem o seu crescimento principalmente de há três anos a esta parte.” A própria evolução da consciência da sociedade é apontada como o fator essencial para esta nova preocupação das marcas em representar temas que são, por vezes, ainda considerados tabu ou fraturantes.

“A inclusão tornou-se não só uma estratégia das empresas, mas uma exigência dos consumidores.” O poder dos clientes sobre as marcas, explica a especialista em marketing, acontece, sobretudo, “através da força e velocidade de propagação das redes sociais”, ou seja, faz sentido que o crescimento da publicidade inclusiva tenha acontecido nos últimos anos, já que as plataformas digitais têm ganho cada vez mais peso na sociedade e na vida das pessoas.

A marca de refrigerantes Sumol é um dos exemplos nacionais mais diretos desta marca temporal assinalada por Sónia Nogueira. Em 2019, um anúncio televisivo usava a frase “não tens vergonha nenhuma” para representar pessoas em cadeiras de rodas, com excesso de peso, nanismo, afrodescendentes e da comunidade LGBTQIA+. Tudo no mesmo anúncio. Já no ano passado, um spot semelhante incentivava a que as pessoas se “assumissem” com as suas diferenças, protagonizando, entre outras questões, um beijo entre duas pessoas do mesmo género. Este tem sido um trabalho consistente da marca, que questiona constantemente nos seus trabalhos publicitários o que é (ou não é) considerado normal.

A marca nacional Sumol tem mantido a consistência no incentivo à aceitação e inclusão das diferenças de cada um
(Foto: DR)

“Normal” é, aliás, a palavra mais ouvida durante a conversa da “Notícias Magazine” com João Matias, o primeiro – e único – modelo profissional em cadeira de rodas em Portugal. Atualmente focado na área da moda, já passou pela publicidade comercial e, garante, Portugal está atrasado no marketing inclusivo. Principalmente quando se fala de pessoas com deficiências físicas. “É inegável que hoje vemos mais publicidades que tentam fugir ao estereótipo físico ou de comportamento, mas quantas pessoas de cadeira de rodas, sem uma perna ou com limitações físicas vemos diariamente na televisão ou nos outdoors?” Provavelmente, zero, responde o modelo de 35 anos à própria questão. Uma das confirmações do que afirma detém-se no facto de ser o único modelo profissional em Portugal em cadeira de rodas.

Agrupar ou integrar?

“Dando o exemplo de uma realidade que conheço, em Nova Iorque é fácil encontrar modelos com deficiências físicas e em cadeira de rodas. É normal, já”, salienta João Matias. “Lá fora”, como diz, é tão “normal” que existem até agências de moda especializadas em modelos apenas com essas condições. Ainda que isso não faça sentido para o profissional português: “Se eu quero inclusão quero ser avaliado pelo meu trabalho como qualquer outro. Por isso, não faz sentido que haja um espaço da moda onde se ‘aglomeram’ pessoas com determinada característica”. Não há agências só de ruivos ou só de loiros, pormenoriza. Porque é que se faria o mesmo com outros traços físicos?

João Matias criou a a Bound Management, uma agência de moda, juntamente com uma amiga, também modelo. Nunca recebeu candidaturas de modelos em cadeira de rodas, mas já recebeu de pessoas com outras limitações físicas. E rejeitou alguns. Foi criticado por isso, mas justifica: “Eu avalio os candidatos por igual. Se alguém não tem um braço ou uma perna não a vou contratar especificamente por causa disso, vou fazê-lo se a pessoa tiver atitude para isto”.

Foi o que fizeram com ele, assegura. “Eu comecei na indústria depois de participar num desfile como amador e um fotógrafo reparar em mim. Ele disse-me ‘tens imagem para a moda’, não me disse ‘coitado, estás numa cadeira de rodas e por isso vais conseguir trabalho’.”

Para João Matias, na diferença entre integrar ou agrupar reside a verdadeira inclusão. “O marketing inclusivo é mesmo inclusivo ou discrimina? Bem, se for eu, por exemplo, lado a lado com tantos outros modelos ditos ‘normais’ é inclusão.” E se isso não acontecer? O profissional português não vê com bons olhos as campanhas exclusivamente dedicadas a determinada condição. “Se vejo uma proposta de trabalho em que vão ser só mostradas pessoas em cadeiras de rodas ou só pessoas com determinada característica, percebo que isso é aproveitamento, não é inclusão.”

Campanha do dia da pessoa afrodescendente, campanha do dia da pessoa em cadeira de rodas, campanha do dia da pessoa amputada. João Matias não concorda com publicidade que tenha o objetivo concreto de “publicitar” determinada característica – “Aí estão a olhar para mim por eu não andar e não por todas as restantes mais-valias de modelo que tenho”. E a lucrar com a sua deficiência, diz.

João Matias (à direita) é o primeiro e único modelo profissional em cadeira de rodas em Portugal. É também responsável por uma agência de moda
(Foto: DR)

Mas não são apenas as deficiências físicas que ficam para trás nesta corrida do marketing à inclusão. O anúncio de 2017 da Johnson & Johnson é caso raro na integração de pessoas com síndrome de Down. Por cá, não há dados, mas um estudo de 2021 nos Estados Unidos da América indica que a prevalência de pessoas com algum tipo de deficiência na publicidade televisiva é de apenas 1%. Não seria problemático caso essa fatia não representasse mais de 25% da população total no país. Ou seja, o marketing, ainda que esteja a crescer na inclusividade, está longe de representar a diversidade existente na sociedade.

As causas da moda

João Matias dá um outro exemplo. “As minhas colegas com problemas de pele estão atualmente cheias de trabalho.” A procura por modelos com condições como o vitiligo, mais falado após a contratação de Winnie Harlow pela Victoria’s Secret, cresceu exponencialmente, destaca o modelo português. “Aquela modelo ficou famosa ali e agora todas as marcas querem replicar.”

A docente Rosa Cabecinhas, da Universidade do Minho (UM), corrobora. O racismo e as questões de género são dois exemplos de como a forte presença das temáticas na sociedade levou as empresas a adotarem os temas. “Durante muito tempo as marcas usavam quase exclusivamente pessoas brancas como modelos. Algo que se tem vindo a alterar.” O mesmo acontece com a igualdade de género, já que vemos cada vez mais anúncios com mulheres a conduzir ou com homens a tratar de cozinha, invertendo os papéis repercutidos ao longo dos anos.

Ainda que o panorama esteja a melhorar, Rosa Cabecinhas, investigadora na área da psicologia social e da comunicação intercultural, sublinha que ainda há muito caminho a fazer. Os produtos de luxo, exemplifica, “ainda hoje são maioritariamente publicitados para o homem maduro”. E as instituições portuguesas “ainda se dirigem a um público imaginado como branco”. Em suma, “fala-se de racismo, do género ou da comunidade LGBTQIA+ como se tudo estivesse bem resolvido, e não está”.

Visibilidade controlada

A mudança à qual temos vindo a assistir é conotada pela docente da UM como uma “visibilidade controlada”, ou seja, as marcas incluem determinado tipo de pessoas, mas apenas em algumas campanhas e não numa perspetiva de permanente representação da sociedade. Podemos então falar de marketing inclusivo? Sim, afirma Rosa Cabecinhas, porque, apesar de ser uma visibilidade controlada, “pode ter efeitos positivos na discriminação que existe, já que o facto de as pessoas se aperceberem de uma mudança pode levar à discussão e à reflexão”.

Já percebemos que o caminho da inclusividade no marketing está ainda no início. Há uma panóplia de outros tipos de diversidade que é necessário representar, além de fazer uma verdadeira inclusão do que já aparece. Mas podemos afirmar que as marcas estão a fazer esse esforço? Paulo Gomes, diretor-geral da agência de comunicação Blue Line, responde positivamente, ainda que, sublinhe, seja um esforço lento. “Estas preocupações de inclusão acrescem trabalho, tempo e dinheiro e é preciso que as empresas estejam dispostas a abdicar de tudo isto em prol da diversidade.”

Paulo Gomes criou a Blue Line no início do século. A agência nasceu sem nenhuma referência particular à inclusão, mas o tempo fez com que se especializassem na área. Hoje, trabalham com marcas que procuram ser mais acessíveis e inclusivas. “Eu sou daltónico profundo e, apesar de não parecer um grande obstáculo, enfrento dificuldades por causa disso que me tornam consciente de como fazer publicidade para quem tem o mesmo problema que eu.”

Depois, contrataram um designer surdo para a empresa e começaram a fazer alterações aos trabalhos que tinham para integrar a condição do colega. “Às vezes são detalhes que nem nos apercebemos e que há muitas pessoas que se sentem limitadas a ver um simples vídeo ou a ler um outdoor por causa disso. Diz-se ‘minoria’, mas na verdade são milhares de pessoas.”

Um exemplo atual dado pelo gestor da Blue Line é a integração de língua gestual na publicidade. “Raras são as vezes em que encontramos anúncios com legendagem ou língua gestual portuguesa. Para se poder chamar verdadeiramente inclusivo devia ir a todos os níveis e não só aos que se fala mais, como o racismo ou a homofobia.” Em suma, Paulo Gomes acredita que “ainda se faz publicidade para a sensibilização da população e não para a acessibilidade da população”.

Ajuda profissional

Uma das marcas em Portugal que mais se tem destacado pela inclusão de temas não consensuais na publicidade tem sido a Vodafone. O anúncio de Natal é já tradição na empresa. O último foi sobre saúde mental, mas já se falou de bullying, de violência doméstica, da figura da madrasta. Leonor Dias, diretora de marca da Vodafone Portugal, conta que os anúncios têm um impacto para lá da mera assistência. “Todos os anos recebemos mensagem de pessoas a dizer que se identificaram com determinado anúncio ou a contar a sua história.” Esse, realça, deve ser o objetivo do marketing. “Não pegamos nestes temas para vender um produto, o que queremos é despertar consciências na população.”

A Vodafone Portugal tem apostado em anúncios que consciencializem para temas fulcrais na sociedade. Equipas da marca noutros países procuram replicar o trabalho que tem sido feito por cá
(Foto: DR)

De forma natural, a empresa integra nos seus anúncios pessoas diversas. “Já tivemos à mesa de uma das publicidades casais homossexuais, e pessoas multiculturais são uma constante.” Podem não ser a figura central de determinado anúncio, mas estão lá, “integrados de forma natural”, frisa Leonor Dias. Mas, e para lá da publicidade, há uma verdadeira inclusão? A profissional da Vodafone acredita que sim. “Não somos inclusivos só nos anúncios, levamos esses valores e essa consciência que publicitamos para a estrutura organizacional da empresa.”

Multiculturalidade, igualdade de género, saúde mental dos trabalhadores ou integração de limitações físicas estão asseguradas em diversos postos da empresa, assinala. “Há marcas a aproveitar-se dos temas apenas e só para o lucro sem praticar esses valores? Sim, mas isso é notado pelo consumidor. O essencial no marketing é ter consistência: se eu faço um único anúncio no ano todo com uma pessoa negra, provavelmente fi-lo só porque sim, mas se em todos ou quase todos representar alguém de diferentes origens étnicas é porque acredito verdadeiramente na integração.”

A Primark tem, desde 2018, um modelo albino e outra com um braço amputado. A Victoria’s Secret contratou Valentina Sampaio, a primeira modelo trans da marca, em 2019. A Unilever criou um desodorizante pensado para pessoas com mobilidade reduzida na parte superior do corpo, fez um anúncio e até ganhou um prémio em 2021. Fernando Fernandes é um ex-canoísta e ex-modelo brasileiro em cadeira de rodas com uma carreira preenchida. Estes são alguns exemplos de sucesso do marketing inclusivo, mas estamos longe de ver modelos como estes de forma diária e natural. Principalmente em Portugal, já que os exemplos referidos raramente aparecem nas televisões nacionais, por exemplo.

Fernando Fernandes é um ex-modelo brasileiro que chegou a representar várias marcas
(Foto: DR)

João Matias deseja que um dia a verdadeira integração seja alcançada e que, na profissão, consiga ter tantas propostas como outros colegas seus. Depois de ter concretizado recentemente o sonho de fazer uma semana de moda (participou no Portugal Fashion pela marca Marques Almeida, da qual é representante), quer fazer o pleno em Portugal e pisar o desfile da Moda Lisboa. Depois, quem sabe, voar para destinos internacionais.

E o que se pode esperar do futuro do marketing inclusivo? Paulo Gomes, diretor da agência de comunicação Blue Line, imagina que “vai acontecer o que aconteceu com a arquitetura”. “Se recuarmos 20 anos, não havia rampas ou guias nas escadas. Ganhou-se sensibilidade e alterou-se a forma de fazer. Com legislação, é certo. Mas acredito que na publicidade não precisamos de leis para fazer o que está correto. Estamos a aprender a ter sensibilidade e acredito que daqui a vinte estaremos a conversar sobre como a diversidade se tornou algo natural nos anúncios.”