Joel Neto

Lição número um


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Às vezes vejo-os no Facebook, em proclamações. Aplaudem um filho com epítetos como “O melhor de mim”. Estipulam a qualidade da prole com referências do tipo “Filho meu jamais”. Ponderam-lhe o futuro com previsões começadas por “Quando chegares à minha idade”. A segunda pessoa do singular é um dos seus recursos, mas na verdade falam para a Geral. Bom seria se tudo se resumisse a um problema de formulação. Falamos, em primeiro lugar, de um paradoxo geográfico: o eu está no centro e, ao mesmo tempo, sopra de Norte, de Sul, de Este e de Oeste. E, quando se trata de ego simples, ainda vá: às vezes o que está em causa é o mais puro solipsismo – não apenas a perda de importância do outro na presença do sujeito pensante, mas o seu próprio desaparecimento face à existência deste.

Encontro esse famoso post, o da celebração do aniversário de uma criança com hossanas de ordem genética, e acendem-se-me as luzinhas vermelhas todas, aos apitos. Mas, mesmo assim, há pior. Há pais que, com o tempo e a amargura, se tornam competitivos com os filhos. E há outros a quem a perturbadora sensação de irrelevância em que vivem torna até rivais dos filhos. Isto é: pais para quem a felicidade dos filhos acaba por ser um incómodo. Para quem o sucesso dos filhos se reduz a um barómetro do respectivo fracasso. Para quem a mais básica concretização deles – arranjarem um emprego, casarem com alguém que os ame, constituírem a sua própria família – se torna tão insuportável que a solução mais benigna ainda é irem-se embora, para não terem de assistir.

Geralmente, teimaram muito uns com os outros, esses pais e esses filhos. Quase sempre, e com o tempo, os olhares e as respirações vão dispensando a recriminação como arma do crime. Com frequência, há pelo meio outro filho qualquer, quase sempre com tanto de incapaz como de incapacitado, nutrido como a cria fraca de que os pais se podem tornar cuidadores (e apaziguar-se com isso). No fim, a relação entre todos não chegou a ter hipóteses. E, se houver beneficiado durante uns anos de alguma manobra de diversão mais ou menos sagaz, pode vir a deteriorar-se até num tempo em que já toda a gente se encontre em idade não só para ter juízo, mas para ter consciência.

Vi-o acontecer: a dor é ainda maior, porque mais absurda, mais surpreendente e inapelável. E a circunstância de toda essa equação ter oferecido colateralmente alguma irredutibilidade à cria dita forte, o facto de lhe ter acrescentado não só resistência, mas desejo, até pode ajudá-la a superar a poeira dos dias, mas não a sobreviver ao inimigo silencioso que se foi alimentando daquela combinação de calor e humidade: o sentimento de culpa.

Não: eu não vou ser competitivo com o meu filho. Não vou reclamar-me autor dos seus feitos, não vou ser seu rival, não vou ter inveja dele. E, no primeiro dia que algum triunfo seu provoque em mim outra coisa que não o mais genuíno regozijo, hei-de lembrar-me da suprema lição que as décadas me proporcionaram: não chantageies o teu filho. Não te permitas enchê-lo de sentimento de culpa, nem da culpa da emancipação nem de nenhuma outra. Aprende com os melhores, mas também com os piores – e, destes, faz ao contrário.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)