Itamar Vieira Junior: “Esta crise no Mundo tem-nos mostrado que a democracia é frágil”

A terra e o chão. O patriarcado. As mulheres submissas e poderosas ao mesmo tempo. Quem manda e quem obedece. As chagas da escravidão, as feridas da colonização. A religião. A violência. A libertação. O escritor brasileiro resgata memórias da família e experiências no campo (enquanto geógrafo) para os seus livros. Com “Torto arado”, história de amor e luta, venceu o Prémio LeYa em 2018. E tornou-se um fenómeno literário. Tem nova obra, “Salvar o fogo”. Escreve sobre o que o incomoda e a escrita dá-lhe voz para intervir. A primeira vez que publicou em Portugal foi aqui, nas páginas da “Notícias Magazine”. Um conto de Natal.

Quis ser escritor, desde sempre, desde cedo. Aos oito anos, escrevia em folhas soltas e em cadernos, no que lhe aparecia à mão, a mãe a dizer-lhe para se concentrar na escola, família pobre, não havia escritores à volta, literatura é coisa de gente doida, onde já se viu? Esse menino vai viver de quê? Mas era impossível não escrever, era ofício reservado, que guardava para si. “Tinha vergonha de mostrar as coisas que escrevia”, partilha. Aos 11 anos, no Natal, recebeu uma máquina de escrever portátil. Os pais a entender o que havia ali, não seria um passatempo apenas. Não alimentavam, não recriminavam, não reclamavam. Percebiam. Na biblioteca da escola, devorava livros de literatura, leu-os todos, passou para os técnicos, sobretudo de História, e os olhos seguiam fascinados as linhas dos mapas. Crescia, tinha de ter uma profissão, pensou em ser professor, estudou Geografia, curso, mestrado, doutoramento em Estudos Étnicos e Africanos. Entrou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, funcionário público, agora com licença sem vencimento por causa da escrita. Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, Brasil, tem 43 anos e anda pelo Mundo a apresentar a sua mais recente obra “Salvar o fogo”, romance de feridas e fantasmas, uma viagem ao rio dos ancestrais. Esteve em Portugal na última semana, acaba de partir.

“Torto arado” mudou-lhe a vida, tornou-o escritor, o maior e mais recente fenómeno literário do Brasil de dimensão mundial. Já vendeu mais de 700 mil exemplares só no Brasil, mais de 500 mil pelo Mundo. Publicado em mais de 24 países, na lista dos 200 livros mais importantes para se entender o Brasil (e onde estão nomes como Jorge Amado, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade), no Plano Nacional de Leitura do seu país. Interessam-lhe as engrenagens da ficção e os seus pilares: a capacidade de observar, a memória, a imaginação. Os seus livros têm vários narradores. “Uma história sempre será uma versão de quem conta.” Cada personagem relata a sua. “Muda a perspetiva da narrativa e essa mudança me dá uma visão mais total. Gosto de imaginar que a ficção pode ter muitas caras, muitas facetas para se contar uma história.”

Chega antes da conversa, última sexta-feira de maio, faltam cinco minutos para as 11 da manhã, a fila para a Livraria Lello, na Baixa do Porto, é extensa. Comenta esse facto que acontece à frente dos nossos olhos, confessa-se surpreendido quando se fala do sucesso que está a ter, fala do jet lag que sentiu no Japão, quando lá esteve em abril a apresentar o seu novo livro, sentia-se inebriado, uma bebedeira sem ter bebido. Mais à noite, fará a apresentação do seu novo livro na Lello, dizem-lhe que estão mais de 100 pessoas inscritas. Fica contente.

É um conversador generoso, disponível, atento. A conversa acontece na sala Gemma da Lello, cheia de relíquias, manuscritos, livros raros, pergunta se há ali primeiras edições de Saramago, dizem-lhe que sim, informam-no que a Lello tem uma sala dedicado ao único Nobel português da literatura com objetos pessoais. Antes disso, é reconhecido na Lello, duas mulheres brasileiras pedem-lhe dedicatórias nos seus livros. E, no fim da conversa, saberemos que aquela pregadeira que traz presa à camisa, é arruda, planta da boa sorte e que protege do mau-olhado, que a sua editora do Brasil fez para distribuir. É a planta verde que aparece desenhada na capa do seu último livro.

Itamar Vieira Junior escreve sobre o que o incomoda. Os mais vulneráveis. A pobreza que tem cor. A terra lavrada por aqueles que nunca serão donos dela. A violência. A escravidão. Interessa-lhe a história do que está à sua volta, o que se vê e o que não se vê, o que continua abaixo do radar. “O Brasil é um país profundamente desigual, um país fundado sobre a égide da violência, da violência contra os povos indígenas. A história da escravidão do país ainda reverbera, é muito nítido na nossa sociedade que ali houve uma clivagem muito grande. As pessoas negras não conseguem ascender, há uma espécie de determinismo, criou-se uma escala de vida e valor que é difícil ser desconstruída no Brasil”, constata.

Aos 25 anos, como geógrafo, foi trabalhar no campo, no Interior do país, na Bahia e no Maranhão (quando foi colocado no Maranhão não tinha dinheiro para comprar o bilhete de avião, meteu-se no autocarro, demorou 30 horas a lá chegar). O campo à sua frente, conhecia-o da literatura nos livros de Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, escritos há 60, 70 anos. Nada havia mudado e foi um choque. “Ali eu vi, de uma maneira brutal, como a nossa sociedade ainda é desigual. Pessoas vivendo em situação de extrema vulnerabilidade, miséria, é um lugar de muita violência”, recorda.

Fez muita coisa no campo, pesquisas, acompanhou projetos de alfabetização, deu assistência técnica para aumentar produções, trabalhou em processos de regularização fundiária que envolvem comunidades tradicionais, como as quilombolas, de pessoas que descendem de africanos escravizados. Viu a força das mulheres líderes de movimentos sociais e de associações de agricultores. Carregou tudo isso para os seus livros. “São histórias simples de pessoas que, muitas vezes, não têm sequer noção do que estão vivendo, mas, com o passar da história, com o tempo, isso vai sendo modificado. Até pela própria experiência, pela própria vida, vão-se assenhorando da sua história e do seu destino, almejam outra realidade, sonham com outra perspetiva.”

Um livro, uma música, um teatro, uma minissérie

Bibiana e Belonísia, duas irmãs, uma mala da avó guardada debaixo da cama, uma faca, uma família no sertão da Bahia. Uma história de combate e redenção. “Torto arado” ganha o Prémio LeYa em 2018, em Portugal, e é distinguido no Brasil com os prémios Jabuti e Oceanos dois anos depois, em 2020. “É um livro que aborda uma história em comum, uma ferida que existe entre os dois países.” Portugal e Brasil. A colonização (já lá iremos).

Não tinha editora na altura, procurou um concurso, o primeiro que lhe apareceu nas pesquisas foi o LeYa, enviou, ganhou. No dia em que Manuel Alegre lhe liga a dar a boa nova, estava a caminho do hospital com o seu pai, Itamar, era o seu dia de acompanhá-lo. Eram oito da manhã no Brasil. “Torto arado” é dedicado ao pai, que inspirou Zeca Chapéu Grande, personagem da obra. “Quando o livro chegava ao Mundo para encontrar os leitores, eu estava me despedindo do meu pai. Foi uma maneira de demarcar que as referências de vida que ele me deu estavam comigo, estavam presentes também nessa história”, revela.

O livro ganha vida própria. O compositor brasileiro Rubel fez uma canção da história, em poucas estrofes a narrativa. Os direitos televisivos foram adquiridos, há uma minissérie em preparação para o streaming. Haverá uma edição em audiolivro. Há uma peça de teatro chamada “Depois do silêncio”, baseada no livro, da brasileira Christiane Jatahy, encenadora premiada no Festival de Veneza. Itamar assistiu à estreia na Áustria, a peça já esteve em França, Bélgica, Suíça, Holanda, Croácia, Estados Unidos – há previsão para passar por Portugal. “É um espetáculo muito interessante, mistura teatro com cinema, imagens do local que inspirou a paisagem da história de ‘Torto arado’”, diz o escritor que confidencia que várias pessoas, e não foram poucas, tatuaram a capa da edição brasileira do livro no corpo.

O seu novo livro, “Salvar o fogo”, acontece na Tapera do Paraguaçu, Moisés, Luzia e seus irmãos, as terras sob domínio da Igreja. Dedica-o à mãe que congrega todas as mulheres que a antecederam. E elas lá estão no novo livro. “As personagens carregam a força feminina que me habita”, reconhece. Itamar, o mais velho de quatro irmãos, cresceu numa casa de mulheres de personalidades fortes, vincadas, a mãe, bisavós, avós, muitas tias a dizer o que podia ou não fazer. “Numa casa que era atravessada pelo patriarcado, pelo machismo, ou seja, elas eram vítimas de violência de toda a sorte, não só da família, mas também da sociedade. Talvez por sofrerem tudo isso, e sempre estando encontrando forças para reagir, se impregnaram no meu imaginário com essa certa dose de heroísmo”, sublinha.

Em “Salvar o fogo”, Luzia lava a roupa dos padres que vivem no mosteiro. Itamar recua na História. Na América, não apenas no Brasil, durante a colonização, fincaram uma cruz cristã. “Essa cruz significou o apagamento de muitos saberes, de muita cultura que existia antes. Todo o empreendimento colonial e escravista só teve sucesso porque a Igreja participou ativamente nisso, e a Igreja, durante séculos, foi a maior detentora de terras do Brasil e de escravizados também.” Do passado para o presente. “Os abusos da Igreja estão em toda a parte, esse abuso que nós temos conhecimento hoje é uma espécie de metáfora dos abusos que ocorreram durante muitos séculos, desde a Inquisição.”

No novo livro, a Igreja é uma personagem, uma instituição. “No Brasil, vivemos a ascensão dos neopentecostais, eles fazem parte de tudo, da política, a todo o momento atentam contra o Estado laico. As pessoas não têm direito à saúde, o aborto é clandestino, não é regulamentado, as mulheres correm riscos até hoje”, repara.

Começou a escrever “Salvar o fogo” quando começou a pandemia, ainda chegou às 40 páginas e, aos poucos, foi abandonando a escrita. “Era um momento tão perturbador, não sabíamos exatamente o que estava acontecendo, não era, para mim, um momento propício para a criação”, salienta. Não havia força emocional. Só retomou a história depois de tomar a primeira dose da vacina, ali viu, admite, uma luz no fim do túnel.

Os poderes sobrenaturais, o ambiente mágico, o que não é explicado pela ciência é creditado ao mundo mágico. Cresceu nesse ambiente que permanece e permanecerá. Os seus livros têm esses poderes colados às mulheres. “A história não cria uma hierarquia sobre o que é realmente válido ou não. Todos os saberes têm fundo de verdade. Saberes que fazem parte da vida das pessoas e que podem explicar muita coisa.” É o que acontece com a Luzia, as coisas que ela sente, as coisas que ela vê. A bruxa, a feiticeira. “Na minha ficção, não há uma separação muito nítida entre imaginação e leitura sociológica. No fundo, pela vida das personagens eu quero alcançar, não uma explicação, mas fazer um retrato mais profundo da sociedade. A partir das personagens individualmente chegar à explicação do que vivemos em coletivo”, pormenoriza.

Os seus livros falam da relação das mulheres e dos homens com a terra. A terra que nunca será de quem a cultiva. “Nenhum de nós prescinde de uma casa para viver, de um chão para pisar, da rua da nossa cidade para poder se mover. O direito mais elementar de qualquer ser humano é este, não por acaso muitos dos conflitos, que existem hoje no Mundo, têm como questão central, a questão territorial, a invasão da Ucrânia, a questão palestina, conflito de décadas. O direito à terra, o direito ao território, é uma das questões mais centrais da nossa condição humana.”

Depois, há os contrassensos, o que não bate certo. “O Brasil é um país que exporta commodities para o Mundo, principalmente grãos, alimentos, e tem uma significativa parcela da população vivendo em insegurança alimentar. Então, é uma coisa paradoxal. Como pode este território que produz alimento, 1,2 toneladas por habitante por ano, ter pessoas a passar fome?”, questiona. “Tudo isso mostra o caminho que o Brasil seguiu, esse caminho de desigualdade, de pouca equidade, é um país profundamente atravessado por traumas raciais que envolvem populações indígenas e os herdeiros da diáspora africana, aqueles que chegaram de uma forma violenta e que até hoje não se sentem acolhidos e integrados.” Mais uma questão que coloca.

Olhar a História de frente, debatê-la sem paixões

Aproveita o espaço que a literatura lhe dá, que os livros lhe abrem, tanto para o contacto mais imediato com o leitor, como para se posicionar em temas que lhe parecem relevantes. O seu lugar de fala. Não quer ter a obrigação de falar sobre tudo, avisa, mas sabe que há momentos que não pode ficar em silêncio. “Tivemos um problema crítico no Brasil que foi a defesa da democracia. Tínhamos um autocrata como presidente, o que exigiu que muitos de nós se declarassem, se manifestassem.” Participou ativamente na última campanha presidencial que elegeu Lula da Silva. “Era o candidato, pelo conhecimento, por tudo o que representou para o país, por representar também um pouco as classes populares, mais adequado para tirar o país dessa situação”, comenta. Mesmo assim, o escritor mantém a independência política, não é filiado em nenhum partido, quer ter liberdade para criticar quando achar que o deve fazer, como já aconteceu.

Não esconde a simpatia pela história do Partido dos Trabalhadores (PT). “É uma história complexa, o partido é frágil, é falho de inúmeras maneiras, mas a história da constituição do partido, para mim, pesa bastante”, diz. “O partido surgiu no período da ditadura militar, de uma participação ativa dos movimentos populares, dos movimentos de base. Espero que não se distancie mais da sociedade como se distanciou nos anos em que esteve no poder, porque, de facto, ainda é um partido que tem um olhar diferenciado para as questões e para os problemas do Brasil.”

A ascensão da extrema-direita preocupa-o, a II Guerra Mundial não foi assim há tanto tempo, o holocausto não se esquece. Sente que é preciso defender e preservar a democracia. “Vivendo 30 anos numa democracia, a gente acha que não é preciso fazer mais nada por ela. E esta crise no Mundo tem-nos mostrado o contrário, que a democracia é frágil e que vamos precisar de a defender, certamente até ao fim da vida.” A democracia não está consolidada, “está eternamente em construção e a gente precisa defendê-la para todo o sempre”, acrescenta.

Há vários assuntos, temas complexos que debate por onde passa, que estão nos seus livros. O machismo, o racismo, a colonização. “Esse habitat colonial que não nos deixou ainda porque é uma maneira de ver e explorar o Mundo que se impregnou. A gente só aprende a ocupar o Mundo, destruindo, estou falando da Amazónia, estou falando da Mata Atlântica, esse modo de viver foi pensado, imaginado, executado pelos homens.” Defende que é preciso olhar de frente para esta história, compreendê-la sem paixões, e sem apontar dedos. “Acho que todos nós somos vítimas dessa história. O Brasil é um país independente há 200 anos e não soube, durante esses 200 anos, aproveitar essa independência para romper com estruturas coloniais que permaneceram na sociedade. É um problema que é nosso, não é mais de Portugal.”

Nos seus livros, devolve os saberes ancestrais às mulheres subjugadas, submissas, vítimas de todo o tipo de violência. Hoje o Congresso Nacional do Brasil tem 513 deputados, apenas 15% são mulheres. No Supremo Tribunal Federal, de 11 ministros, duas são mulheres. “A mulher ainda ocupa um lugar pequeno nas instituições. Mas, em contrapartida, como eu vivi no campo, entre as pessoas mais vulneráveis, eu vi o contrário, as mulheres são mais escolarizadas no campo, mais do que no passado, e muitas vezes mais do que os homens porque elas não desistem muito cedo, mesmo precisando de trabalhar, dão o seu jeitinho para continuar estudando.” Apesar de tudo, falta muito e falta muita coisa.

Aquela vontade de criança concretizou-se. Itamar é escritor. “Escrever é estar vivo, escrever é estar cercado de personagens, é estar vivendo aquela história que está sendo narrada, experimentando, mesmo que nesse plano imaginário, uma outra vida”, explica. É viver várias vidas. É aproveitar as bênçãos da literatura. E, depois de tudo isso, de um livro terminar, vem a melancolia e a saudade das personagens, dos lugares.

Há nova obra a caminho. Gosta de escrever no seu quarto que também é escritório, lugar familiar, onde as histórias acontecem. Em sua casa, com um pequeno jardim com plantas que gosta de cuidar. Tem quatro gatas e dois cães.

“Com o coração apertado” é o título do conto de Natal que escreveu para a “Notícias Magazine”, em 2018, antes de “Torto arado” chegar às livrarias. A história de uma jovem, filha de uma empregada e de seu patrão. Guardou a revista. “Para lembrar desse texto que foi o primeiro publicado em Portugal”, conta. O que o faz realmente feliz? “Ainda me causa espanto a natureza humana, do que somos capazes”, responde. Capazes de tudo. Do que a ciência explica, do que a magia interpreta.