Isabel Moreira: “As leis podem ser revistas, claro, mas não em cima do joelho de um caso”

Deputada socialista afirma que o Governo falhou ao não perceber que está sob grande escrutínio, e que há uma dimensão ética além das questões penais. Que os ministros devem explicar-se no Parlamento e o Executivo deve agir e comunicar com rapidez.

Recebe-nos no gabinete da Assembleia da República na tarde em que Fernando Medina se explica no Parlamento e jornais dão conta de que o secretário de Estado do Ambiente teria vendido um ateliê a um suposto sócio e familiar de acionistas de uma empresa de lixo e resíduos. “Isto é um disparate. Misturar disparates com casos verdadeiros só ajuda aos populistas. Nesse clima, lá está, quem é que quer arriscar servir a República?”. Ela. Jurista apaixonada pela Constituição, deputada socialista avessa a unanimidade, rosto de causas que marcaram a sociedade e lhe valeram o ódio de uma certa Direita – casamento entre pessoas do mesmo sexo, coadoção, adoção, PMA, autodeterminação das pessoas transgénero, eutanásia -, percebe-se que ali Isabel Moreira está em casa. Desde há dez anos. Uma conversa de duas horas, com atualização.

Foi apresentado o mecanismo destinado a escrutinar futuros convidados para o Governo, ideia de António Costa lançada em plena crise desencadeada pelo caso Alexandra Reis. Faz sentido refletir em soluções em cima dos acontecimentos?
A desconfiança demagógica sobre a classe política começou a ser ensaiada pelo CDS de Manuel Monteiro. Ainda me lembro da expressão “deputados sanguessugas”. Mas aquilo ainda foi mais ou menos contido, embora a sementinha ficasse instalada. Os casos, os casinhos e casões não ajudam a combater o horror à República, mas temos todos de fazer um esforço de não misturar tudo, o grave e o irrelevante, de explicar que não há, hoje, mais corrupção; há menos, simplesmente as leis e os meios são melhores e o Estado de direito funciona muito melhor. As exigências de transparência pensadas com tempo são essenciais e nós temos um quadro legal muito forte. A lei das incompatibilidades tem um âmbito vasto, com impedimentos, registo de interesses, intervenção do Tribunal Constitucional, não há vazio legal. Refletir é bom, sim, mas não gosto do questionário, embora perceba o que o motivou.

Acha que vai resolver o problema?
O problema de fundo é de falta de pessoas qualificadas dispostas a abraçar o serviço público ou o problema que se viveu nestes nove meses? É que não me interessa muito a espuma das coisas. Nestes nove meses acumularam-se casos de forma tal que o Governo sofreu um desgaste e há que seguir em frente e reforçar coordenação, diálogo com o partido e cuidado nas escolhas, sabendo que pode sempre ocorrer um erro. Mas não penso, francamente, que as 36 perguntas, que não são coisa pouca como já ouvi, antes envolvem direitos fundamentais desde logo de terceiros, sequer pretendam ser a resposta para uma crise de confiança que é funda. As 36 perguntas – que acrescem a tudo o que o titular do cargo depois terá de declarar – são uma resposta política, de gestão, para evitar casos sobre casos. Tenho pena, e medo, que tenhamos chegado aqui. Mas gostava de dizer que a Comunicação Social também deve contribuir para elevar a República. A mistura do disparate com o verdadeiro caso resulta na perceção amada pelos populistas segundo a qual “anda tudo a gamar” ou “eles, os parasitas” e “nós”. Nesse clima, lá está, quem é que quer arriscar servir a República?

Uma multa, e a impossibilidade de regressar por três anos ao Governo, é uma pena adequada e dissuasora? Veja-se o caso da secretária de Estado do Turismo.
Que acabou por desistir. Chamem-me ingénua, eu chamo a isto apego ao serviço público, mas é uma vergonha espetada na testa de qualquer pessoa a consequência de não poder chegar perto do Estado durante três anos. Acredito que isto seja suficientemente terrível para que a maioria das pessoas resista a violar a lei. As empresas não adoram contratar alguém exposto publicamente como pouco ético ao ponto de ser indecoroso, para o Estado, por três anos. As leis podem ser revistas, claro, mas não em cima do joelho de um caso, por favor.

Será possível que António Costa desconhecesse que Miguel Alves é arguido? Ou a situação da ex-secretária de Estado da Agricultura?
Eu tomo por verdadeiras as declarações do primeiro-ministro e dos ministros acerca de todos os casos que vieram a público.

Como interpreta a total ausência de autoescrutínio?
A ética tem de valer para todos. Um convidado para um cargo tem de fazer um autoescrutínio. Não é normal que alguém que negociou uma indemnização de 500 mil euros com a TAP, achando ainda por cima que tinha direito a um milhão e tal, e que seguiu depois para a NAV, não perceba que não tem condições para aceitar um cargo de secretária de Estado do Tesouro. De facto, há pessoas que não apanharam o autocarro da noção. É uma evidência que deviam ter sempre presente: não há nada mais protetor do que o anonimato.

Confrontado com estes casos, o primeiro-ministro afirma com frequência que não é o Ministério Público. Esta confusão premeditada entre o aspeto jurídico-penal e a questão ética contribui para adensar a crise de confiança nas instituições?
António Costa resolveu a crise bancária, devolveu rendimentos, subiu o salário mínimo, matou todos os diabos anunciados, conseguiu contas públicas certas, surpreendido por uma pandemia aguentou a tempestade. E ainda conseguiu uma maioria absoluta. António Costa sabe que as pessoas estão verdadeiramente preocupadas com as rendas das casas, com a eletricidade, com a inflação, com o efeito devastador da guerra, com a proteção do emprego, com a crise energética. É, portanto, uma pessoa altamente concentrada na política concreta. De tal maneira que talvez tenha sido purista de mais relativamente ao pressuposto de nomeação de membros do Governo. Faz bem enunciar a presunção da inocência, mas o Governo falhou (e depois emendou, e bem, a mão) em perceber que o escrutínio é muito grande, que estamos com maioria absoluta e que para além da dimensão jurídico-penal há uma dimensão ética. E aí houve um descuido. Temos agora de pôr ordem na casa e há tempo para isso.

O grupo parlamentar socialista “chumbou” os requerimentos da oposição para chamar a audições Pedro Nuno Santos, Fernando Medina, Alexandra Reis e os responsáveis da TAP. Os partidos tiveram de recorrer ao direito potestativo para forçar a audição de Fernando Medina. Como se justifica esta atitude do grupo parlamentar?
Embora compreenda o argumento – não haver ainda o relatório da Inspeção Geral das Finanças -, fez mal.

O relatório é autónomo.
Sim, sim, claro. Os ministros ganham em vir ao Parlamento. Também é para isso que serve. Os ministros devem explicar-se e o Governo deve agir e comunicar com rapidez.

Está esclarecida sobre o caso Alexandra Reis?
Do ponto de vista jurídico, o comunicado da TAP é uma trapalhada. É inexplicável a atribuição de uma indemnização de 500 mil euros, ainda mais tendo sido dito à tutela que o acordo era favorável à empresa porque a ex-secretária de Estado teria direito a muito mais. Não, não estou esclarecida. Do ponto de vista político, a partir do momento em que são pagos 500 mil euros de indemnização a alguém que teve as funções que teve na TAP, funções difíceis que implicaram cortes de salários e decisões muito complexas para a vida de trabalhadores, transitando de imediato para NAV, cria-se uma situação socialmente inultrapassável, de consequências previsíveis. Acredito em Pedro Nuno Santos quando diz que apenas foi informado da existência de um acordo favorável à empresa, mas a saída era inevitável. Foi uma saída honrada. O Governo perdeu um grande ministro.

Pelo que se sabe, é provável que tenha de devolver a indemnização, pelo menos em parte?
Diria que sim.

Ficou satisfeita com as declarações de Fernando Medina?
Agora que temos os factos parece tudo cristalino, não é? Parece que retrospetivamente era tudo evidente. Mas a vida não é assim.

“De facto, há pessoas que não apanharam o autocarro da noção” [sobre o caso Alexandra Reis], reconhece Isabel Moreira
Este desleixo vem com a maioria absoluta?
Pode ter sido uma conjugação de má assessoria com ausência de autoescrutínio dos convidados. Não sei. Mas sei que não pode continuar a acontecer. De modo que a política e os resultados inegáveis da ação governativa voltem a ocupar-nos. E que possamos discutir o que ainda falta fazer. Que é muito. Uma semana que fosse a falarmos de trabalho e habitação é o que precisamos.

O próprio partido pergunta-se como tem sido possível tal quantidade de casos.
Tem de haver ligação do Governo ao partido. A falta de escrutínio e o desleixo afetam a todos. Nós, deputados, e militantes em geral, sentimos frustração porque queríamos estar a discutir política, discussão que não seria muito contraditada já que a Direita não apresenta uma única solução. Em vez disso, deixamos cair-lhes no prato esta quantidade de casos. Claro que atirar pedras dá sempre mau resultado e Montenegro também não está numa situação fácil.

Estamos a passar por uma das maiores crises de confiança nos políticos e nas instituições?
O risco é esse. O risco desta aparente normalização de casos e casinhos leva ao fosso “nós e eles”. Este é o clima que a extrema-direita quer. O que devemos fazer, e temos tempo, é corrigir imediatamente a mão. A quantidade gera uma lógica de normalização.

O PS a alimentar o discurso de Ventura?
Neste momento quem está a dar mais espaço ao Chega não é o PS. Estes casos acabam por passar. Quem está continuamente a dar espaço de crescimento ao Chega é o PSD. É verdadeiramente impressionante que o PSD, em cada debate com o primeiro-ministro, não apresente uma ideia. O que tem vindo a dizer, desde que António Costa é primeiro-ministro, é que vem aí o diabo. Portanto, como não é alternativa, o partido que se torna vocal, dentro e fora do Parlamento, é o Chega. E isso preocupa-me.

Que futuro vê para a Direita democrática?
Temo por ele. Precisamos de uma Direita democrática forte, alternativa ao socialismo democrático. É um erro pensar-se que a Esquerda ganha com a polarização com a extrema-direita. É um ganho a prazo. Tem de se ver longe e longe essa polarização faz da Direita não democrática uma opção. Não tem sido o PS a criar este fosso errado, tem sido o PSD que teima em não se demarcar de uma vez por todas do Chega. O regime precisa do PSD. Enquanto o PSD viver da gestão dos casos, da não apresentação de opções políticas claras e da tal indefinição em relação ao Chega, não vejo nada de bom por ali. E isso não me alegra.

A democracia tem lidado bem com a extrema-direita?
António Costa fez uma declaração que ficou gravada: o PS não conta com o Chega para nada. O PSD não teve essa postura e está a pagar o preço. Aliás, de onde vem o André Ventura? De resto, são absolutamente inaceitáveis as tentativas de simetrias entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Extrema-esquerda que neste momento não existe. Existe uma Esquerda mais à esquerda do PS que está dentro do quadro constitucional e tem contribuído para a consolidação de direitos da democracia.

O presidente da Assembleia da República tem lidado bem com o Chega?
Sem dúvida. Na autocontenção, permitindo uma ampla liberdade de expressão no debate político, ainda que este seja, por vezes, desagradável, ofensivo, gritado. E na intervenção assertiva, quando esse discurso se aproxima de algo criminalmente relevante. Parece-me uma boa regra.

A ideia de que os deputados não conhecem o país é só populista ou encerra alguma verdade?
Os deputados são a representação do país. Não há frase que mais me repugne do que a que sai pela voz dos populistas aqui no Parlamento: “As pessoas, lá fora”. Foram muitos anos de luta por uma democracia representativa. Custou muito e, portanto, é muito insultuosa a ideia de que a democracia representativa é uma escolha de pessoas asséticas que não representam ninguém. Não. Esta é a casa do povo. Os deputados estão aqui não para delegarem as suas obrigações, mas para as assumirem. Por isso sou tão antirreferendária. Por isso gosto tanto do Parlamento.

A ascensão da extrema-direita na Europa e nos EUA terá a ver com o facto de a Esquerda ter trocado os trabalhadores pelos indivíduos, a luta de classes pela conquista dos direitos individuais?
Em Portugal, não. A prioridade de António Costa foi precisamente as chamadas preferências da Esquerda. Recuperação de rendimentos, devolução de pensões, aumento histórico do salário mínimo, acordo de concertação social, apoio dado em momentos de crise às pessoas mais vulneráveis. Não acho que o que aconteceu em França, por exemplo, possa aplicar-se a Portugal. A luta pela igualdade de oportunidades tem sido uma luta constante do PS. Se podia fazer mais, podia. Mas não acho que o facto do PS português ter uma agenda de igualdade de oportunidades não invalida que tenha um olhar progressista relativamente aos direitos individuais.

Não reconhece que, na Europa e nos EUA, a Esquerda tem colocado a liberdade à frente da igualdade?
Há uma expressão imperiosa para a Esquerda: liberdade igual. Liberdade e igualdade não são separáveis. A luta matricial da Esquerda é a da correção das desigualdades sociais. Essa matriz tem de estar sempre em evidência. Para nós, o tema fraturante é a pobreza. Isso não nos impede de sermos o rosto progressista das liberdades individuais.

A eutanásia é uma batalha pela qual deu a cara. Antevê uma decisão do Tribunal Constitucional?
Não penso ser curial, neste momento, dar palpites. Naturalmente, quem faz uma lei sobre um tema debatido há décadas, votado positivamente de forma ampla mais do que uma vez e, o que é bom, seguindo pistas deixadas pelo próprio Tribunal Constitucional e tendo também em conta o direito comparado e decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos está convicto de que a lei respeita a Constituição. Mas o presidente da República tem toda a legitimidade de voltar a pedir a fiscalização preventiva e agora é, de novo, o tempo do Tribunal Constitucional.

Um novo chumbo seria embaraçante?
O Tribunal Constitucional já deixou claro que a morte medicamente assistida não é inconstitucional em si mesma. Nas suas palavras, o direito à vida não se pode transformar num dever de viver em quaisquer circunstâncias. O que está em causa, portanto, é saber da adequação constitucional de conceitos operativos da lei, saber da sua determinabilidade. Se ela é suficiente. O trabalho foi feito com enorme cuidado e atenção. Aguardemos serenamente.

O presidente da República está a ser uma força de bloqueio?
O presidente exerceu um poder que lhe está constitucionalmente atribuído. Temos de respeitar a opção que tomou, concordando ou não com ela.

A Igreja Católica é o ponto sensível de Marcelo Rebelo de Sousa?
O presidente da República é um católico praticante, não o esconde. Fez, por vezes, declarações precipitadas. São declarações conhecidas, relativas a figuras da Igreja, quando se estava em plena elaboração do relatório da Comissão sobre os abusos sexuais praticados por membros da Igreja Católica. São questões difíceis para o presidente, mexem com questões pessoais fortes e isso condiciona, nem que seja inconscientemente, o exercício do mandato. Mas, no geral, não tenho dúvidas: temos um presidente que é um democrata e um defensor do Estado de direito.

Destes anos de Parlamento, consegue eleger o momento mais reconfortante?
O primeiro aconteceu quando o Tribunal Constitucional nos deu razão (falo dos 17 deputados do PS e dos do BE) na impugnação ao Orçamento do Estado de Passos Coelho. Se não tivéssemos tido a coragem de avançar, se não tivéssemos teimado em levar ao Tribunal Constitucional os cortes nos subsídios de férias e de Natal, essa opção passaria a estar para sempre na disponibilidade dos governos. Com a nossa iniciativa, essa opção, que sempre considerei inconstitucional, ficou arredada. A partir daí nunca mais vimos tentar compor as contas públicas recorrendo a essa violência desproporcional. Foi dos momentos mais emocionantes que vivi. Depois, há aqueles em que direitos individuais e garantias foram consagrados. Em todos eles senti uma alegria enorme. O processo legislativo obriga-nos a contactar com as pessoas que estão desesperadamente à espera dessas leis, a conhecer-lhes os rostos e isso faz muita diferença.

“O risco desta aparente normalização de casos e casinhos leva ao fosso “nós e eles”. Este é o clima que a extrema-direita quer”, afiança a deputada

Como lida pessoalmente com esses processos legislativos?
Sou uma pessoa clinicamente ansiosa e com angústia em doses clinicamente relevantes, problema crónico que pode ser paralisante. Sou também uma pessoa que teve uma educação e uma vivência familiar muito viradas para a empatia e para sentir o outro. Por isso, não sendo mais do que ninguém, não consigo desligar o botão. Não consigo chegar a casa e sossegar, não consigo dormir e não sonhar. Aprendi muito cedo que a política vale muito a pena porque consegue mudar alguma coisa na vida das pessoas. Mas a política também dói.

Na Assembleia da República encontrou o lugar certo?
Gosto muito da coisa pública, da dialética, da ideia de o meu trabalho ter a ver com a cidade. Pode ser no Parlamento, pode ser, amanhã, numa organização de direitos humanos, pode ser a advogar, não numa advocacia normativa, já não me vejo aí, mas na área da igualdade.

Pode ser no Governo?
Nunca se pode dizer que dessa água não beberei, mas sinto-me melhor parlamentar do que executiva.

O que já se disse ou escreveu sobre si que a tenha magoado?
As pessoas não sabem quem eu sou, por isso não me magoam. Mas já me assustaram. Algumas ameaças assustaram-me.

Pode falar dessas ameaças?
Nunca falei das mais graves, das mais paralisantes, porque estava em curso este ou aquele processo legislativo e não quis ser foco.

Afirma uma sociedade sexista. A Assembleia da República tem sido uma amostra exemplificativa dessa realidade?
Em todos os partidos, as mulheres sentem mais dificuldade em serem reconhecidas pelos seus próprios pares. Uma mulher é muito mais interrompida, muito mais atropelada, tem o acesso à palavra mais dificultado. As mulheres no Parlamento são permanentemente alvo de atitudes gesticulares misóginas, de interrupções, de gritaria, de vozearia, enfim, nada de equiparável quando um homem fala. Por outro lado, não basta as mulheres acederem ao lugar de deputadas. Têm de aceder ao microfone. E esse acesso continua a não ser igual.

Uma sociedade que recusa assumir-se racista.
Noto isso em todos os partidos do arco democrático. Não temos problemas em assumir que o país é profundamente machista porque ninguém vai interpretar a frase como acusação a todos os homens. Mas falar de racismo, só com pinças. Há uma falta de interiorização e, portanto, de vocalização de uma evidência. Um país que teve 48 anos de ditadura colonial e que fez uma guerra colonial em ditadura – e essa é uma especificidade portuguesa – só por milagre escaparia a um problema grave de racismo a vários níveis: interpessoal, sistémico, institucional. Há números quanto ao que se passa com a população PALOP, sobre o acesso ao Ensino Superior, a habitação, à diferenciação de sentenças conforme se trate ou não de pessoas racializadas, temos as queixas. Por isso, não tenho problemas em assumir que Portugal é um país racista. Devo dizer que, quando me apercebi de que tinha tiques racistas, homofóbicos e sexistas, fiz a minha desconstrução.

António Costa desiludiu-a quando foi ao Catar?
Quando o Governo entende ir ao Catar está a dizer a pessoas lésbicas, gays, pessoas que podem vir a ser recrutadas para um trabalho indigno, que não interessam. Porque se as pessoas interessam, interessam universalmente. E é isso que me magoa. Quando se trata de futebol, a viseira muda.

Isabel Moreira assegura: “O meu pai foi, é, o homem que mais amei e amo na minha vida. A saudade é insuportável”

É uma face reconhecida do politicamente correto. Como reage à política do cancelamento?
A liberdade de expressão é um valor essencial e a lógica de cancelamento é absurda. Mas para alguém poder dizer o que quer tem de estar preparado para ouvir as críticas. Acontece que muitas vezes, ao se importarem os termos do debate dos Estados Unidos, confunde-se crítica com cancelamento. É simples: se não quiser ver um programa de televisão, mudo de canal. Tenho o direito de considerar, enquanto cidadã, que um determinado programa está a prejudicar a luta pela igualdade. Mas isso não é cancelar programas. Na realidade portuguesa não vejo ninguém cancelado. Relativamente a movimentos com consequências penais, tenho um apego total ao Estado de direito e à presunção de inocência. O #MeToo teve a grande vantagem de criar empatia com as mulheres, deixá-las mais à vontade para se queixarem e falarem umas com as outras, sem vergonha. E alertou muitos homens para o que é ou não aceitável. Mas não admito que só porque alguém diz que A violou B, essa pessoa, até prova, sofra uma única consequência.

Em Portugal, os que alegam sempre liberdade de expressão lidam mal com a crítica?
Devo dizer que nunca gostei do termo politicamente correto, dá logo vontade de ser contra. O que digo é que precisamos de correção política. É evidente que palavras não são ações. Dar uma bofetada a Will Smith não é a mesma coisa que dizer uma piada sobre a mulher de Will Smith, mas a palavra tem uma dimensão de ação. Negar isso é não perceber o que aconteceu no Capitólio. O que aconteceu no Capitólio começou com palavras. As palavras podem perpetuar estereótipos e discriminação e eu sinto que não faço nada de mal, antes pelo contrário, quando tenho cuidado a dirigir-me ao próximo. Trata-se de um autopoliciamento ligado à tal correção política, que tanta falta tem feito aqui no plenário.

É uma constitucionalista. Há em Portugal a cultura da liberdade?
Não há a cultura da liberdade individual. Portugal tem muita consciência de liberdade política, mas quando se trata da liberdade de movimentação e do nosso corpo, da liberdade negativa – posso fazer tudo desde que não interfira na liberdade de terceiros – não damos importância. É pouco cultivada.

O PS tem um projeto de revisão constitucional. Neste capítulo qual seria o seu maior sonho?
A minha tese de mestrado foi centrada na ideia de que é errada a doutrina que permanece de que há uma supremacia dos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos económicos sociais e culturais. O maior sonho seria que acabasse essa dicotomia e tivéssemos o regime unitário.

Nasceu no dia, mês e ano da Constituição.
É uma coincidência feliz, de que só me apercebi depois de me apaixonar pelo Direito Constitucional, mal entrei na faculdade. O Direito Constitucional moldou toda a minha vida adulta. Moldou-me politicamente. Ou seja, fui-me moldando enquanto pessoa de esquerda através do Direito Constitucional. Comecei a acordar para a minha pessoa política de esquerda com a Filosofia, no liceu, depois o Direito Constitucional levou-me definitivamente para a esquerda.

O PS tem uma ala esquerda. Estará desse lado numa futura escolha de líder?
Neste momento, estou 100% com o Governo. Agora, se quiserem cortar o PS em fatias, é evidente que vou para o lado esquerdo. Devo dizer que tenho uma admiração profunda por Pedro Nuno Santos. Tem qualidades que admiro muito. Em primeiro lugar, tem emoção, faz as coisas com emoção e isso é algo que aprecio muito num homem e numa mulher. Em segundo lugar, tem um perfil ideológico claro. E eu sou uma pessoa que gosta de perfis ideológicos. Em terceiro lugar, é um homem corajoso, foi sempre um governante corajoso, quer no tempo da geringonça quer como ministro das Infraestruturas. É, portanto, uma pessoa por quem tenho uma profunda admiração. Mas isso não me impede de dizer que neste momento o debate entre “nunistas”, “costistas”, “catarinistas”, “medinistas”, etc., não faz sentido.

Como interpreta a decisão de abandonar também o secretariado nacional? Estará a posicionar-se para correr por fora?
Fazer cenários tendo por base uma lógica de quem será o sucessor de António Costa, ao fim de nove meses de maioria absoluta, parece-me um pouco novelesco. Não entro nessa novela. António Costa tem uma legitimidade recentíssima, muito reforçada, é um ótimo primeiro-ministro, é um excelente político, tem demonstrado conseguir estar presente em momentos favoráveis e ultra desfavoráveis. É novelesco estar a pensar na sucessão.

A questão é interna. Não é uma invenção exterior.
Acho saudável que haja quem, dentro do Partido Socialista, tenha a ambição de ser, um dia, secretário-geral. E quando, daqui a muitos anos, abrir essa corrida não penso que os nomes sejam apenas os de Pedro Nuno Santos e Fernando Medina. Mas isso se verá.

Casamento entre pessoas do mesmo sexo, coadoção, adoção, PMA, autodeterminação dos trans, eutanásia. Como acha que os portugueses olham para si?
Dedico-me a temas que dividem muito as pessoas, e até as famílias, a temas sensíveis e a direitos fundamentais, e isso leva a que não provoque indiferença. As reações são muito fortes: ódio ou amor. Eu sinto isso: grande adesão ou grande repulsa. Mas também sinto que o ódio inicial – e quem é contra é muito mais ativista do que quem é a favor – com o tempo vai-se dissipando. Já não vejo ninguém a falar do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou da adoção com ódio.

A imagem que os portugueses têm de si foi mudando?
Há um grupo, muito conservador e misógino, que me olha sempre com muito ódio. Porque sou tudo o que acha que eu não poderia ser. Porque sou alguém que deveria estar do lado de lá, geneticamente deveria estar noutro sítio. Olham-me como a uma traidora de uma determinada classe, numa lógica biológica tão arreigada em determinados setores da sociedade portuguesa. E também porque sou mulher. E porque os conheço. Conheço-os por dentro, venho de lá (não exatamente de lá, porque a minha família não é tão conservadora). Conheço a Direita conservadora por dentro. É uma arma muito forte. A outros, podem dizer “não nos conhecem, não estão nos nossos circuitos, não sabem quem nós somos”. A mim não podem dizer isso. Conheço aquelas pessoas, conheço aqueles circuitos, sei quem são. Sei como pensam e porque é que têm aqueles automatismos. Sinto que há um setor específico que olha para mim com um ódio que não dedica a outra pessoa que esteja a dizer exatamente o mesmo. Falo de uma direita que não está só no Chega.

Está de luto.
Um luto muito, muito, difícil. O que nos aconteceu em menos de dois anos foi muito violento. Perdi o meu irmão e o meu pai. Mortes diferentes e não se medem dores. Tenho aprendido com a terapia que o luto tem ondas. Em relação a meu pai, continuo a dizer que perdi o teto. O meu pai é a referência masculina mais forte e estável da minha vida. Mais implacavelmente a meu lado, mais instigadora do que eu quisesse ser, das posições que eu quisesse tomar. Foi, é, o homem que mais amei e amo na minha vida. A saudade é insuportável e não venham dizer-me que o meu pai tinha 100 anos. É irrelevante. Continua a ser muito difícil acordar e acreditar que não vou ter o cheiro, o colo, as conversas, o apoio, a validação. Os almoços à quinta-feira. O meu pai era a minha validação diária. As pessoas que dizem que não precisam de validação estão a mentir. Ainda mais no meu caso, alguém que rompeu, que furou, que voou, que escolheu um caminho tão diferente do resto da família. Ter na pessoa do meu pai a principal e primeira pessoa a validar-me é qualquer coisa que nem consigo transmitir. Era um amor total, incondicional, recíproco até ao último momento. Não tenho outra eternidade que não os meus pais.

“Não gosto do questionário, embora perceba o que o motivou” , reitera a socialista

Como pai tardio falava-lhe da morte?
O meu pai falou-me da morte toda a vida. Mas achei sempre que o meu pai não iria morrer. Tinha uma saúde tão absurda para a idade. Trabalhou sem parar até aos 95. O meu pai foi a pessoa mais generosa que conheci. Não tinha qualquer noção de propriedade. Tudo o que fazia era para ficarmos bem, para a nossa mãe ficar bem. Tinha uma força de vida e uma fúria de viver impressionantes, demonstrada até ao momento em que nos despedimos.

Herdou essa força?
Sei que tenho algumas características dele e também tenho características maravilhosas da minha mãe – a vocação para a alegria, a empatia, a paixão pelo mar. Sempre fomos uma família matriarcal e o meu pai sempre gostou disso. Essa é outra coisa maravilhosa: ter assistido a pais apaixonados até ao fim. 54 anos de casamento, olhar para os dois e dizer isto é verdade.

2022 sai e 2023 entra com a guerra na Ucrânia e a luta das mulheres no Irão e no Afeganistão.
Um ano marcado pela coragem das mulheres. Se o que temos visto no Irão e no Afeganistão não é a definição de coragem, não sei o que é coragem. Lamento que não estejamos a dar àquela luta a atenção devida. Mulheres que vão para a rua, que protestam, que morrem em nome da liberdade, no que parece ser o início de uma revolução feminista. Nunca vi nada assim na minha vida. É igualmente comovente ver homens a morrer de maneira inominável. Tenho de ser esperançosa porque tanta coragem junta não pode ser em vão. Que seja um rastilho imparável. Aquelas mulheres merecem muito. E nós podíamos e devíamos fazer mais. Tanto quanto estamos a fazer, e bem, pela Ucrânia.