Igreja Católica. Radiografia a dias de ser apresentado o relatório dos abusos sexuais

Perdoai-os e livrai-os do fogo do inferno.
Nestes tempos em que tudo se deslaça, a Igreja procura que o escândalo dos abusos sexuais, a falta de transparência, o fosso entre a instituição e a sociedade, o afastamento dos crentes não mine irremediavelmente dois mil anos de história. São tesouros transportados em vasos de barro.

Faltam 11 dias. A 16 de fevereiro, quando os relógios marcarem as 10 horas, rostos com nomes que já todos vimos, semblantes carregados, estarão na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Não é futurismo o que aqui se escreve. E é de passado que ali se vai falar. Vão com a missão de “dar voz ao silêncio”, pela mão de Pedro Strecht, que encabeça a Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, composta por seis especialistas de várias áreas e um conjunto de testemunhos de abusos ocorridos nos últimos 70 anos. O tema é o epicentro da violenta crise que abala a Igreja em Portugal e no Mundo.

Na última comunicação, a 11 de outubro, a Comissão já tinha recebido 424 relatos. A maior parte dos crimes prescreveu. Mas há mais, muitos mais, como alertou o coordenador: “O número mínimo de vítimas será muitíssimo maior do que as quatro centenas e os abusos compreendem todas as formas descritas na lei portuguesa”. Nesse dia, os meios de comunicação voltarão a agitar as águas. Perguntas. Muitas. Mas a derradeira é apenas uma. Pode uma instituição com dois mil anos e em declínio transformar-se a tempo de sobreviver a um abalo sem precedentes?

“Vivemos, de facto, uma crise. Mas uma crise tem duas faces, impugna uma situação e desperta uma evolução num melhor sentido. A escuta do divino nunca acabará, mas mudará de figura.” As palavras são de Jorge Teixeira da Cunha, teólogo, cónego e professor catedrático da Universidade Católica do Porto. No seu ponto de vista, as bases dessa crise são evidentes. “Por um lado, as lideranças, que são hoje menos eficientes. Os nossos bispos são escolhidos de um grupo pequeno, não tem havido forma de cativar gente com mais qualidade.” Exatamente como acontece na política, refere. Depois, “a Igreja não pode ter líderes que se associam a ela por interesse, pessoas sem carisma”.

Uma opinião partilhada por muitos. “Os abusos são reflexo de várias coisas. O clero constituiu-se como uma casta acima dos outros fiéis, considera ter poder ascendente sobre os demais. E esta casta acha que manda, que controla, que dirige. Uso a palavra casta propositadamente. Isto é o oposto do que deve ser a religião”, considera António Marujo, jornalista com mais de 35 anos de carreira, especializado em informação religiosa e atualmente diretor do jornal digital Sete Margens, dedicado à temática das religiões. “Podemos falar de questões como o dinheiro, como é o caso desta polémica à volta do altar da Jornada Mundial da Juventude (JMJ); padres que ficam com dinheiros; bispos que administram mal o poder. Tudo radica no poder”, reforça.

“Se o grão de trigo não morrer na terra é impossível que nasça fruto”

O verso consta do cancioneiro católico e é inspirado no Evangelho segundo São João, em que Jesus Cristo prega sobre o significado da sua própria morte, inevitavelmente ligado ao propósito da sua vida. O grão de trigo, lançado à terra para se transformar em planta, despe-se da sua casca, desnuda-se e ressurge com nova aparência, por dentro e por fora. Ao contrário da natureza, o homem tende a ser mais lento nas suas transformações. E a Igreja, uma instituição com dois mil anos, está cheia de vícios, sombras e escândalos. São muitas as pontas soltas que formam um nó difícil de desatar.
Abusos sexuais a menores.
Liberdade sexual e de género.
Falta de transparência.
Profunda hierarquização.
Comunhão dos recasados.
Ganância e poder. A palavra “crise” anda há muito ao peito da Igreja. Como uma cruz. Irónico. Até porque a ninguém pode ser apontado o dedo senão à própria, que sabe que tem muito por onde morrer se quiser renascer.

Uma instituição bolorenta, profundamente hierarquizada, apodrecida por dentro, que definha. Com uma forte ala conservadora, que teima em agarrar-se a discursos que não se adequam à realidade dos dias. Estes são só alguns dos pontos sobre os quais o Papa Francisco chamou todos a refletir. Leigos, religiosos, sacerdotes, bispos e cardeais, todos os que participam de um importante processo que culminará em Roma, daqui a dois anos, com o Sínodo dos Bispos. “Encontrar, escutar, discernir” são as palavras de ordem.
Para o padre jesuíta Miguel Almeida, provincial da Companhia de Jesus em Portugal, o objetivo de Francisco é bastante claro. “O Papa está a pôr em prática o que foi sonhado pelo Concílio Vaticano II, uma Igreja em que o sucessor de Pedro deixa de ser o ápice piramidal e passa a ser o centro da comunidade, onde há uma certa horizontalidade. E, por isso, este tempo de sinodalidade está a exigir de nós uma atitude diferente, uma postura participativa como nunca antes aconteceu. O que é revolucionário. E já se notam diferenças, mas caminha-se devagarinho, porque isto requer uma autêntica mudança de mentalidades.” O provincial esclarece ainda que tem havido de facto mais debate, fóruns em que se participa, discute e levantam questões, mas há ainda muita gente que não aderiu, “há resistência, seja por inércia, por já haver vícios instalados, seja por em alguns casos e setores acharem que este não é o caminho e que a hierarquia deveria continuar a ser piramidal.” Miguel Almeida diz ser necessário tempo para essa mudança de mentalidade. Um tempo que virá com as novas gerações. Mas o relógio do Mundo não parou.

O resultado dessa espera tem números. Em 1991, os católicos representavam 95% da população, e em 2001 chegavam aos 93%. Na última década, diminuiu 8,1%, passando nos últimos dez anos de 88,3% para 80,2%. Os dados foram revelados nos Censos 2021, que indicam também que há mais 6,6% de pessoas sem religião. Importa considerar que a pergunta relativa às crenças era facultativa, mas obteve 97% de respostas.

Traduzindo para palavras: a taxa de católicos portugueses é uma das maiores da Europa. Mas o número esconde as transformações que o catolicismo português tem atravessado nas últimas décadas. Alfredo Teixeira, que desenvolve a sua atividade de docência e investigação na Universidade Católica Portuguesa, enquanto professor associado da Faculdade de Teologia, e que é diretor do Instituto de Estudos de Religião, explica o que não se vê nessa percentagem.

O catolicismo português permaneceu até tarde como prática religiosa, através do campesinato, da aldeia, do imaginário agrário, de uma certa pobreza e iliteracia. “A Igreja é talvez a instituição em Portugal que mais vezes se cruzou na vida das pessoas, mas ao mesmo tempo essa transformação da vida dos outros, que atravessa várias gerações, é hoje vivida com distanciamento.” As pessoas consideram-se católicas, mas a sua ligação à comunidade é pequena. “Vivem a religião numa dimensão mais interior, não tão participativa.”

Vatican Media Handout

Pela experiência de Alfredo Teixeira, há vários fenómenos objeto de análises. Um deles é que os católicos que estão vinculados a práticas comunitárias, ao religioso vivido, tendem a ter um discurso de minoria. “Julgo que até por isto atravessamos uma grande transformação no tecido católico.”

A esquisitice da fé

Joana Rigato é disso exemplo. Entusiasta dos encontros de jovens na comunidade ecuménica de Taizé e da espiritualidade inaciana, dedicou-se durante alguns anos à Educação para o Desenvolvimento (para o Banco Alimentar e para a Comissão Nacional Justiça e Paz, de que foi membro seis anos), bem como ao trabalho voluntário em Moçambique e na Argentina. É doutorada em Filosofia da Ciência pela Universidade de Lisboa, fez investigação em Filosofia das Ciências Cognitivas na Fundação Champalimaud e é atualmente professora de Filosofia no Colégio católico S. João de Brito. Casada, dois filhos e com 42 anos, diz ter permanentemente essa sensação de ser um bicho raro entre os seus pares. “Ao longo da minha juventude, era das poucas pessoas que tinha Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) na escola e participava em atividades da paróquia. Aos 12 anos dava catequese às escondidas, não queria contar a ninguém porque ia ser alvo de troça por parte dos amigos.” E o que hoje sente é que isso não melhorou.

“Quem tem fé é visto como alguém esquisito. E mesmo os católicos com um certo nível de educação acabam por se afastar.” Motivos não faltam. Joana Rigato enumera alguns: “A Igreja tem um discurso um bocado anacrónico. É uma instituição que não tem sabido perceber que está em decadência, compreender essas causas e alterar o que há a alterar.

Que são questões fundamentais, como é o discurso à volta da sexualidade. A relação da Igreja com a sexualidade é desatualizada, absurda. E quando se agarra a questões que não fazem sentido e critica quem é diferente – como se a intimidade das pessoas fosse algo sobre a qual valesse a pena discutir – perde credibilidade, principalmente junto das gerações mais novas que pensam: se a Igreja diz disparates sobre a sexualidade, dirá disparates sobre outras coisas importantes”. É também por tudo isto que Joana se sente uma outsider. “Para os meus amigos, eu ser cristã e identificar-me parcialmente com a Igreja e não desertar depois de tantas polémicas é um mistério total. Para eles a Igreja é uma coisa medieval.”Um sentimento que se estende a vários assuntos, recorda o cónego Jorge Teixeira da Cunha. “Como os recasados. A possibilidade jurídica do divórcio foi benéfica para a qualidade da vida matrimonial, sobretudo da mulher, para a qualidade da relação, para a recomposição. Ninguém se quer divorciar, é sempre um fracasso, mas se um processo não deu vamos recompor a vida.”

Alfredo Teixeira tem explicação para esse afastamento das recentes gerações. Uma parte reside nos filhos e netos dos primeiros que saíram do Interior, das aldeias, dos que se urbanizaram, que foram procurar oportunidades nos grandes centros. “Essa dimensão de substituição geracional tem, e vai continuar a ter, efeitos no número de católicos no país.” Comparando com outros estudos internacionais, “Portugal está sempre entre os três, quatro países com indicadores de religiosidade mais elevados”. Mas se dividirmos a amostra observada pelos que nasceram nas décadas de 30, 40, 50 do século passado, “observamos uma crista decrescente contínua, o que quer dizer que este limiar de 80% católicos na sociedade portuguesa se explica pelo peso do envelhecimento da população”.

O que quer dizer também que, “à medida que conhecemos uma certa substituição geracional, esta paisagem religiosa pode sofrer grandes alterações”. O catolicismo em Portugal “representa um substrato importante de referência para a população e podemos estar a viver uma mudança.” Por esse motivo, o especialista não vê eventos como a JMJ a ter um impacto durável, apesar da aparente adesão. “Não é seguro que este acontecimento, que obviamente vai marcar a vida de muitos jovens, tenha reflexos no tecido católico da sociedade portuguesa.”

A jornada, que vai decorrer em Portugal entre 1 e 6 de agosto, tem, para já, números de adesão que se situam “dentro da fasquia dos 300 mil”, de acordo com o bispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar, coordenador geral da JMJ. Que faz questão de alertar para a “montanha russa” previsível no evoluir de inscritos. Aliás, a “incerteza é a palavra” que marca a organização deste encontro dos jovens com o Papa desde a primeira hora: no início estava previsto para 2022, mas devido à pandemia acabou remarcado para 2023.

Por isso, ninguém se arrisca a antecipar cenários, nomeadamente quanto à adesão de participantes. Mas o bispo está confiante. “A minha leitura é que os jovens estão despertos, estão aí e estão na perspetiva de acolher o que a JMJ pode significar para eles e para a Igreja. E esta é a primeira JMJ em que a idade nos coloca a todos na geografia do digital e nos posiciona, mais uma vez, na necessidade de refletirmos naquilo que significa comunicar de forma diferente.” Reforçando que há uma “feliz oportunidade de nos convertemos a esta juventude que tem sede, vontade e está disponível”, o bispo, um dos mais jovens do país, apelidado de “comunicador nato”, “fazedor” e tido como muito próximo da ala mais revolucionária da Igreja, assume que nem sempre tem sido fácil o entendimento entre gerações. “Às vezes, parece que nem nós entendemos os mais jovens, nem eles nos entendem a nós. Por isso, é muito importante seguir as palavras do Papa Francisco. A expressão que ele usa é ‘hacer lio’. Os jovens têm de fazer barraca, barulho, temos de ouvir o que lhes vai nos corações. E eles têm de sentir que a Igreja encarna e ouve os seus problemas e dificuldades. É preciso proporcionar-lhes essa coragem de lutar. E vamos fazer caminho juntos. Esta é a experiência que tenho tido ao percorrer o país de Norte a Sul.”

“Adesão epidérmica”

Em discordância, António Marujo toma precisamente a JMJ como referência para falar da relação da Igreja com os jovens. Que, no seu entender, também tem graves lacunas. “Eu diria que ainda há jovens que se mobilizam, isso é evidente, nomeadamente nesta JMJ. Mas há cada vez menos na Europa. E os que se mantêm são os que têm menos conhecimento da doutrina social da Igreja das últimas décadas, mais concretamente do Concílio Vaticano II e do pensamento dos diferentes papas, João XXIII, João Paulo II, Papa Francisco.” E, por conhecerem mal o pensamento destes pontífices, “aderem substancialmente a uma Igreja que não é a mais correta”, na opinião do jornalista.

“Aderem apenas a uma perspetiva da doutrina deles, que é sobretudo a questão da moral individual, aborto, eutanásia, bioética, não aderem depois a uma série de propostas que dizem respeito à prioridade das pessoas sobre o capital, o bem comum em relação ao uso da propriedade, a perspetiva da construção da paz, do armamento, da reforma da terra. Estas gerações nada conhecem destes pontos. Assim, é natural que as gerações mais novas adiram às experiências como a JMJ, mas depois é uma adesão epidérmica, sem muita consistência e é normal que mais tarde se afastem.” O diretor do jornal Sete Margens vai mais longe. “Por exemplo, em relação à preparação da jornada, ainda não se percebeu uma ideia sobre o que os jovens andam a refletir e a debater nos temas que se referem à sua vida, à guerra e paz, à educação, à saúde mental, à habitação. O que vai ser destes jovens daqui a 20 anos quando forem eles a decidir?”

Uma transformação imposta há muito

José Manuel Pureza, professor universitário em Coimbra, dirigente do Bloco de Esquerda, ex-vice-presidente da Assembleia da República, o bloquista católico português mais reconhecido, recorda precisamente a importância do Concílio Vaticano II. “Este processo de conversão de que hoje tanto ouvimos falar, porque é disso que se trata, não nasceu agora.

A Igreja como comunidade mundial impôs-se a si própria essa transformação há já muito tempo. O problema é que as pistas renovadoras enunciadas nesse Concílio têm sido deliberadamente ignoradas por esse mecanismo de autoridade que tem travado o processo.” Como praticante, o político cuja identidade como católico tem como centro absoluto a referência do testemunho da vida de Jesus Cristo, diz que resiste como crente porque a sua fé vai “para lá daquilo que são as vicissitudes, oscilações e fragilidades que a Igreja vai tendo”. E conhece muitas outras pessoas que procuram justamente viver dessa forma, mais próxima do que Cristo pregou. “Isto não está tudo mal, mas há uma tensão que está à vista de toda a gente.”

Uma tensão entre a Igreja, uma estrutura de poder masculina, uma estrutura de poder envelhecida e que zela por uma doutrina e não por um estilo de vida, que é absolutista, com uma ortodoxia que em muitos casos não tem muito ou nada a ver com o primado da pobreza, da simplicidade e do amor. Tem a ver com os outros valores e esquemas. E isso tem vários nomes, um deles é clericalismo. O Papa Francisco tem denunciado de forma fortíssima o clericalismo, ou seja, uma estrutura de poder que se legitima a si própria. Essa estrutura não tem tanto o primado do serviço, mas faz distinção entre povo e hierarquia. É no fundo um grande pecado da Igreja contemporânea.” José Manuel Pureza chama à cena a recente polémica do preço do palco-altar.

“Muita gente crente e não crente veio dizer que ofendia o primado da humildade e o pensamento e testemunho do Papa, um homem que tem tido a coragem de recentrar a Igreja nos pobres. Há aqui um descasamento, uma dessintonia entre uma comunidade de povo que segue Jesus Cristo e uma prática muito feita de poder, de autoridade, de ortodoxia.” E o que se pode fazer? “Denunciar com coragem este vício, esta situação, esta supremacia de uma estrutura sobre outra e convocar à fraternidade. O ponto seguinte é dar importância à vida comunitária, de pequenos grupos e comunidades de pessoas que se conhecem, em vez das grandes massas e manifestações e de efervescência e espetacularidade, o testemunho de vida, a centralidade da vida concreta, com pessoas com os seus problemas, fragilidades e capacidades de criar laços.”

Joana Rigato toca o mesmo ponto. Ou não fosse ela testemunho real de quem necessitou de procurar respostas fora das estruturas hierárquicas estabelecidas. “A Igreja tem mundos dentro dela. Há comunidades que são extremamente desempoeiradas, o verdadeiro oxigénio dentro da religião.” Certa vez, conta, sentia-se “perdida”, mas Deus, acredita, pôs-lhe no caminho Conceição Moita – ativista na luta contra a ditadura do Estado Novo, católica e progressista. “Foi quem me falou de um grupo, o GRAAL – Associação de Caráter Social e Cultural, um movimento cristão ecuménico”, a que pertenceu Maria de Lurdes Pintassilgo, uma das suas principais dinamizadoras. Na altura, foi a resposta de que precisava. “Integrei-me assim numa comunidade interessantíssima, não controlada pela hierarquia da Igreja, de pessoas cheias de dúvidas, revoltadas, que viviam a fé de uma forma prática.” Com a pandemia, o grupo desagregou-se, mas Joana e o marido encontraram outra comunidade de oração, A Casa Velha, onde fazem muitas iniciativas que ligam ecologia e espiritualidade.

“Tenho encontrado estes oásis no meio do deserto. Eu não abandono a Igreja porque ela ainda me dá muito. Mas, a meu ver, a Igreja, neste momento, vive nessas comunidades quase autónomas e com outra abertura, que pensam de maneira diferente, que têm imensa liberdade em relação ao que diz a hierarquia. Porque a hierarquia está a morrer, tem pouquíssimo impacto, é alvo de pouquíssimo respeito. A Igreja enquanto instituição está sem voz. E o pobre do Papa Francisco tem um mono gigante que não quer mudar, que quer resistir.”

Chegados aqui, é inevitável falar da pluralidade. As palavras de Joana Rigato coincidem com as do cónego Jorge Teixeira da Cunha: “A palavra do padre já não é única palavra de Deus. O padre hoje tem de ter uma autoridade inata. Se não tiver, as pessoas não lhe ligam. A cátedra de Moisés não tem efeito automático. Se não se preparar e não tiver vocação, esse padre e esse bispo estão condenados a definhar.” O cónego vai mais longe. “A Igreja e todos os melhoramentos têm encontrado uma oposição intensa e um confronto quase letal. Mas hoje a Igreja é uma comunidade plural, com muitas vozes.”

O tempo, esse devorador de almas

O mesmo partilha o padre jesuíta Miguel Almeida. “A sociedade hoje, não só pela Internet, é muito mais acessível a toda a gente, é muito mais plural. Atualmente, todas as vozes surgem quase ao mesmo nível. A Igreja estava habituada, especialmente na nossa cultura portuguesa, a ter uma palavra credível e única. Mas, agora, a palavra da Igreja é uma entre muitas. E nem sequer é considerada a mais credível e autêntica. A Igreja também tem de aprender a fazer esse caminho, a saber conviver num mundo plural. A saber escutar as outras vozes e a dialogar sem se impor, sem abdicar do que tem para oferecer, sem perder a sua identidade, princípios e valores. E isso mexe com a forma como comunicamos e não comunicamos.” Essa é visivelmente uma das lacunas, muito visível em todo este processo dos escândalos mais acesos da Igreja. A debilidade no mundo da comunicação.

“O tempo que demora a reagir ainda é muito lento. A Igreja ainda torna tudo muito pesado e acho que também aqui há uma aprendizagem a fazer: a maneira como comunicamos, escutamos e falamos com os outros”, aponta. O provincial volta aos abusos. “Porque é o tema.” Assumindo que, neste momento, “é muito doloroso para as próprias vítimas e aí há que se centrar nesse ponto, o que podemos fazer para minorar o sofrimento, repor alguma justiça, fazer todo o possível e reconhecer que não estivemos bem. Só fazendo assim sabemos e mostramos que estamos a fazer caminho.” Há mais. “Esse caminho de verdade é exigente. É uma luta contra o encobrimento. Nesse ponto já se fez muito, mas ainda temos de aprender com os muitos erros conhecidos.” Porque só reconhecer não chega.

“Como é óbvio, e com razão, todo este processo tem retirado credibilidade à Igreja. Afinal, a instituição que se apresentava como referência moral, quase imaculada, também tem telhados de vidro e pés de barro. Aceitar a nossa condição e não nos fecharmos em trincheiras é fundamental. E não achar, como acontece em alguns setores da Igreja, que as notícias são um ataque e uma perseguição.” E neste ponto Miguel Almeida pede “um contributo mais eficaz” à comunicação social. “Por vezes, dão a entender que no fundo éramos todos um conjunto de encobridores, ou que não quisemos ver o que se estava a passar. E não é verdade. Não sabíamos mesmo. Estamos também nós a aprender a lidar com isto. Esses que encobriram também eram pessoas em quem confiávamos, mas afinal eram abusadores.” Além disso pede que se protejam as vítimas. “

Claro que descobrir quem encobriu é importantíssimo, mas o que está a acontecer, quem está perto de vítimas, e estou perto de alguns casos, é que a comunicação social usa histórias de vítimas que ficam à vista de todos, desveladas, para chegar a saber se o processo foi bem conduzido. É preciso cuidado para que as vítimas não se sintam novamente traídas na sua intimidade.”

Mas voltemos à pluralidade da Igreja, sobre a qual Alfredo Teixeira também tem algo a dizer. “Este projeto do Papa Francisco, esse caminho sinodal, tem no fundo um objetivo reformista, não é sequer consensual dentro do tecido católico. Há mais pessoas e grupos que vivem e querem viver um outro modelo de Igreja.” Regressamos ao significado do Concílio. “Este pontificado quer recuperar coisas que não foram bem recebidas nos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. O projeto deste Papa lida com uma máquina institucional antiga, viciada. Portanto, nesse sentido, o que se está a viver é, até do ponto vista do estudo das organizações, interessante.” Como é que uma organização tão complexa adota recursos para a sua modernização?

“Eu diria que o Papa Francisco adotou este projeto do sínodo, com uma vasta auscultação das bases católicas, como instrumento de reforma mais importante. Elege este projeto sinodal como instrumento de reforma interna. E ninguém tem bem noção do impacto que pode ter. Mas há claramente a ideia de que as pessoas sabem que se vive um momento de crise: a consciência clara de que algumas coisas como existiam não podem subsistir e de que há oportunidade de criar outras.” Particularmente sobre Portugal, o investigador é perentório. “É preciso compreender que muito daquilo que definia o catolicismo pode estar a desmoronar-se. Estamos no epicentro de uma transformação importante que terá impacto na forma como a Igreja católica se inscreve na sociedade portuguesa.”

A sociologia da religião tem estudado a fundo essa mudança. Hoje, como já foi referido, as pessoas têm mais meios para projetar a sua vida e para o fazerem a partir das suas escolhas pessoais, o que reduz a importância de instituições como a Igreja nas suas vidas. Alfredo Teixeira explica. “Esse tem sido o fenómeno mais significativo em Portugal, pessoas que não tendo religião estão abertas ao religioso e ao espiritual. Os que mais crescem são os crentes sem religião, uma espécie de última periferia de católicos. Não são ateus, nem agnósticos. Até podem fazer escolhas educativas para os seus filhos que incluem colégios e universidades católicas, mas sem sentimento de pertença.” Em Portugal, estes fenómenos de individualização têm vincado a erosão e a desvinculação da religião.

“A meu ver, a sociedade portuguesa vai enfrentar este fenómeno de amplo crescimento. De pessoas sem religião. O que não nos deve fazer esquecer que esta modernidade complexa que vivemos tem sinais contrários. Por um lado, vemos o crescimento de não crentes e de pessoas sem religião, mas também encontramos o fenómeno da diversificação, também a sociedade portuguesa deixará de ser monoliticamente constituída por uma entidade religiosa, haverá pluralidade, ofertas de sentido, propostas diversas, e essa diversidade vai causar erosão nessa sociedade que viveu durante muito tempo numa espécie de monopólio religioso”, conclui o investigador.

“Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro”

Desta forma, as questões ditas mais fraturantes, de género, de orientação sexual, estão a surgir muito mais fortes e com muito mais liberdade para serem conversadas, “puxando por uma reflexão mais profunda dentro da teologia e da pastoral para a Igreja, para que sejam dadas respostas mais concretas aos cristãos que vivem estas questões na pele”, refere o provincial jesuíta. No entanto, Miguel Almeida reclama por mais. “Tenho a sensação de que a discussão se limita muito a essas questões fraturantes e ainda estamos longe de ser o modo normal de ser Igreja e que isto se aplique a tudo. À liturgia, à maneira como se faz catequese, que haja coragem e disponibilidade para pôr tudo em questão, que se estenda a discussão à formação dos padres e religiosos. Os seminários têm 500 anos. Será que continuam a responder às necessidades de hoje? A formação do clero, o modo como os leigos podem participar, vai acontecendo em alguns fóruns de discussão. Mas vai demorar. E vai requerer de facto uma nova atitude de ser Igreja. Saibamos nós aproveitar para nos pormos em questão, para voltarmos ao essencial, para vermos o que na estrutura faz sentido, para haver maior transparência dentro e fora. Acho que este tempo, se soubermos aproveitar e não jogarmos à defesa, pode ser um momento de conversão e purificação.”

Até porque, como refere o padre jesuíta, é evidente o papel primordial que a Igreja tem tido na construção da sociedade. “Há toda uma face que continua a fazer bem a muita gente, como instituições sociais, apoio a refugiados, a migrantes, a todos os carenciados, que continua a operar para lá da grande instituição na igreja que comete erros. Há zonas do Mundo onde nada funciona a não ser a instituição, a humana e humilde Igreja.” E depois há toda a parte espiritual. “Estamos a chegar a um ponto em que as pessoas buscam respostas espirituais e não tão religiosas, de busca de interioridade, de encontrar sentido para vida e há muita gente na Igreja a fazer esse serviço, a acompanhar vidas, a orientar”, conclui Miguel Almeida.

O bispo Américo Aguiar segue essa linha. Evidenciando que, em todo o caso, “podemos fazer sempre melhor, em cada tempo, em cada circunstância, em cada desafio em que estamos envolvidos”. O Papa Francisco, timoneiro da Igreja, convidou o rebanho de Deus a caminhar junto. “Pede-nos para nos escrutinarmos, ajudarmos e depois sermos capazes de fazer caminho juntos. O que não significa sermos todos iguais, mas descobrirmos a riqueza da diversidade. E no que aos bispos e pastores diz respeito, termos a agilidade de irmos à frente a puxar. De irmos atrás a acompanhar os últimos. E de estarmos no meio a ajudar quem não quer desistir.”

Como diz José Manuel Pureza. “Seja o que Deus quiser. Mas o homem e a mulher também têm que querer.”