Há uma nova vida portuguesa em Silicon Valley

O norte da Califórnia sempre foi um local de fascínio para os portugueses: caçadores de baleias, garimpeiros e agricultores foram os primeiros a chegar. Os aventureiros modernos são empreendedores que deixam o país para tentar criar em Silicon Valley uma startup que transforme o Mundo. Entre o fracasso e o sucesso, entregam-se ao mercado mais competitivo e camaleónico.

Vasco Pedro, CEO da Unbabel, estava disposto a todos os sacrifícios para vingar em Silicon Valley (Vale do Silício), a região californiana que é a capital mundial da tecnologia. Quando, em 2014, a empresa que cofundou foi escolhida entre milhares para integrar o programa do Y Combinator (YC), líder planetário na aceleração de startups, recebeu como condição mudar-se com os seus parceiros para o norte da Califórnia: “Foi uma experiência impactante mas muito menos glamorosa do que se possa crer”, diz o empreendedor, de 45 anos. “Alugámos um pequeno apartamento e ficámos três no mesmo quarto, em beliches. A Sofia [Pessanha, cofundadora da Unbabel] estava noutro. Tínhamos só uma mesa na sala onde programávamos. Às terças-feiras, havia reunião do YC e um jantar em que outros empreendedores de sucesso partilhavam as suas histórias. Ao domingo, um passeio para desanuviar. O resto do tempo era passado a trabalhar ao computador, só parávamos para dormir”.

A Unbabel cresceu e é hoje apontada como o próximo “unicórnio” (empresa avaliada em mais de mil milhões de dólares) com ADN português – são já seis, cotados em conjunto em 38,5 mil milhões, 16% do PIB nacional. Tenta resolver o problema de linguagem que as empresas enfrentam quando se expandem para mercados novos e têm de prestar assistência em idiomas estrangeiros. “Fazemo-lo através de um sistema híbrido, que combina uma parte muito forte de Inteligência Artificial (IA) com uma componente humana, desempenhada pelos tradutores”, explica Vasco à “Notícias Magazine”. Emprega mais de 500 pessoas, já levantou 90 milhões de dólares em investimento e conta com clientes de peso como a Microsoft, Meta/Facebook, EA Sports ou a Booking.com. Em 2019, decidiu somar ao escritório em Nova Iorque uma nova casa nos Estados Unidos da América (EUA), desta feita em São Francisco, a grande metrópole 50 quilómetros a norte do Vale do Silício. “A nossa intenção era fazer dele a nossa sede nos EUA”, confessa o CEO. “Mas, entretanto, aconteceu a pandemia [de covid-19] e as empresas de tecnologia foram as que mais mudaram para o teletrabalho. Como São Francisco estava cheia de firmas tecnológicas, foi bastante afetada. Muitas pessoas mudaram-se para outros sítios e o bairro financeiro ainda está muito vazio.”

Nos últimos três anos, mais de 100 mil pessoas deixaram a região de Silicon Valley e da Baía de São Francisco. De acordo com a sondagem Silicon Valley 2022, conduzida pelo Instituto de Estudos Regionais de Silicon Valley e pela Joint Venture, 56% dos residentes na meca da inovação equacionam mudar de área de residência. Os principais motivos são o elevado custo da habitação, a diminuição da qualidade de vida e a possibilidade de trabalhar remotamente. “Muita gente mudou-se para o sul da Califórnia, Los Angeles ou San Diego, e para outros centros emergentes de inovação nos EUA, como Austin, no Texas, Miami, Nova Iorque ou Chicago, ou mesmo para a Europa”, comenta Teresa Fernandes, delegada da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) em São Francisco. “Essa alteração não matou Silicon Valley, mas aproximou-o de outros hubs. Antes, quaquer startup que quisesse ter dimensão tinha de estar aqui, mas hoje podem ser híbridas ou totalmente remotas. As empresas têm trabalhadores onde está o talento, e o talento está onde lhe apetece viver.”

Posto isto, a Unbabel pensa deslocar o seu quartel-general nos EUA para Nova Iorque. “A enorme diferença horária para São Francisco representa uma dificuldade e, se as pessoas não estão cá, ainda se torna menos crucial”, diz Vasco, que passa o tempo entre a Califórnia, Lisboa e Londres. “Já não tens de estar em Silicon Valley para levantar dinheiro. Com a dimensão que atingimos, os nossos investidores passaram a ser globais, portanto a localização deixou de ser tema.” Em 2021, a gigante dos carros elétricos Tesla mudou-se para o Texas, depois de movimentações semelhantes de empresas como a Oracle e a Hewlett-Packard.

A Unbabel, gerida por Vasco Pedro, já levantou 90 milhões de euros e é um dos candidatos a próximo “unicórnio” português. Pensou em ter a sede americana em Silicon Valley, mas a pandemia fez com que Nova Iorque fosse a cidade escolhida
(Foto: Vasco Pedro)

O Vale do Silício tornou-se num grande centro de inovação há quase um século, quando as Forças Armadas norte-americanas ali estabeleceram equipas de investigação. Ganhou a sua designação devido ao material utilizado pelas companhias tecnológicas no fabrico de microprocessadores e atingiu nas últimas décadas o estatuto de maior polo económico do Mundo: é sede de 30 das 100 maiores empresas existentes, tem o terceiro PIB per capita do Planeta (depois de Zurique e Oslo), movimenta um terço do capital de risco existente nos EUA e tem a maior percentagem de casas com um valor estimado em mais de um milhão de euros. Se a Califórnia fosse um país independente, seria a quinta maior economia mundial.

Porém, os recentes despedimentos em massa no Twitter, Google e Snapchat, a desvalorização em bolsa da Meta e da Apple, a subida das taxas de juro e a inflação galopante lançaram sinais de alerta. Estará a acabar a era dourada de Silicon Valley?

Inversão de tendências

Na hora de apostar no sonho americano, Francisco Lopes não optou pela Baía de São Francisco; o seu destino foi Los Angeles (LA), a imensa metrópole do cinema e do entretenimento. Para o lisboeta, de 30 anos, a escolha foi óbvia: “A ideia era lançar uma plataforma para criadores de conteúdo digital colaborarem entre si, atuando como um género de LinkedIn para influenciadores digitais”, detalha. “LA é a capital da criação de conteúdo e aqui estamos mais perto dos nossos utilizadores e consumidores.”

Apesar da juventude, Francisco já tinha bastante experiência quando, em 2019, fundou a Link com o amigo de infância Francisco Schmidberger. Terminou a licenciatura em Física com uma média de 20 valores e, ainda estudante, criou uma mediática aplicação de e-learning, o Portal da Sabedoria. Adquiriu o gosto pelo empreendedorismo enquanto mestrando da Universidade Stanford, precisamente em Silicon Valley, e, depois de três anos enquanto consultor, decidiu aventurar-se na “cidade dos anjos” como empresário e financiador. Começou bem: apostou na Firefly, uma empresa que a revista “Time” classificou como detentora da invenção do ano.

Francisco não se arrepende minimamente de ter preferido LA: “São Francisco é muito mais virada para a tecnologia, enquanto LA é diversa. Conheci médicos, empreendedores não-tecnológicos, atores, artistas, e isso agrada-me”, admite. “A qualidade de vida é maior, com as praias, o clima mais quente e incríveis espaços naturais por perto. Gosto de fazer caminhadas, tomar banho no mar mesmo quando a água está fria e andar de barco.”

Ainda que a arrancar em tempos de pandemia, a Link não perdeu muito tempo para se assumir como uma agência especializada na criação de conteúdos virais para a rede social TikTok, multipremiada e com números de meter respeito: acesso a mais de um milhão de influenciadores, três mil milhões de visualizações nos conteúdos produzidos e dois milhões de vídeos resultantes da interação com as suas campanhas. “Criámos, entre outras, uma campanha para a Charli D’Amelio, que na altura era a personalidade com mais seguidores no TikTok”, refere o físico português.

Aos 30 anos, Francisco Lopes tem uma agência especializada na criação de conteúdos virais para o TikTok. Instalou-se em Los Angeles, e não em Silicon Valley, para estar mais próximo do principal mercado de entretenimento
(Foto: Francisco Lopes)

Porém, o lisboeta diz-se agora motivado a enveredar por outro projeto, cujos contornos ainda está a arquitetar. Não é alheio a isso o seu crescente interesse pelos desenvolvimentos na área da IA ao serviço da produção de conteúdos de texto e imagem; numa indústria dada a modas e tendências, os investidores viraram as costas às criptomoedas e à Blockchain para colocarem as fichas no ChatGPT e no seu potencial para revolucionar o conteúdo digital.

A ferramenta permite a criação de textos automáticos mediante descrição do tema e a elaboração de imagens a la carte, aumentando simultaneamente a apreensão quanto à desinformação online. Consegue inclusivamente fazer programação informática de forma autónoma. A Microsoft celebrou recentemente um acordo de parceria multibilionária com a Open AI, a empresa líder nesta área, para fazer chegar a IA em força aos pc’s, internet, telemóveis e serviços de cloud. “Já estamos a usar algumas destas tecnologias para realização de copy, construir em cima de modelos do GPT e geração de imagens”, revela Francisco. “Mas, atenção, não prescinde ainda da contribuição humana para ajustar outputs e modelos.”

Sentado na praça central de Hayes Valley, no centro de São Francisco, junto a um grupo de jovens que ensaia manobras de skate e a um ginásio que se mudou para a rua em resposta às medidas de contenção da pandemia, Micael Oliveira, 36 anos, também não perde pitada dos frenéticos avanços da alta tecnologia.

Os irmãos João e Luís Batalha e Mica Oliveira foram para São Francisco à procura do sonho de lançarem uma startup, a Amplemarket. Os portugueses têm outro projeto, que é seguido por Elon Musk. Nos primeiros tempos, dormiram no chão da casa de uma amiga. A mobília era uma mesa para os computadores e colchões
(Foto: Micael Oliveira)

A startup que fundou em sociedade com os irmãos João e Luís Batalha, a Amplemarket – destinada a otimizar as vendas das empresas – também recorre a técnicas de IA. Como? Se uma empresa X pretende fazer negócio com uma empresa Y, a Amplemarket oferece um software que permite à primeira definir o tipo de cliente que pretende contactar e, graças à IA, produzir uma lista de potenciais contactos e a melhor abordagem comercial em poucos segundos. “Pode vir a ser a empresa que muda a forma como as empresas crescem. Um dos maiores desafios para qualquer empresa é angariar clientes. O que nós queremos é que de cada vez que estejam prontos a crescer venham ter connosco”, frisa à “Notícias Magazine” o luso-luxemburguês, que aos nove anos trocou a Tocha, Coimbra, pelo Grão-ducado. Com as novas gerações do ChatGPT, a empresa de Micael pode usar a IA para partir para a análise de emoções num contexto de vendas, permitindo recolher a informação fulcral presente nos silêncios ou nas inflexões de voz de uma pessoa quando fala com a outra.

(Foto: Micael Oliveira)

Tal como a Unbabel, a semente do que viria a ser a Amplemarket aterrou em Silicon Valley através do programa Y Combinator – as duas empresas foram, aliás, as primeiras portuguesas aceites no acelerador de elite. Micael e os seus parceiros passaram pelas mesmas privações e desafios descritos por Vasco Pedro: dormiram no chão de casa de amigos, depois num apartamento com colchões estendidos no solo e com dinheiro contado para as despesas básicas. O conimbricense acabou por se deixar encantar pelas particularidades da cidade das mil colinas: “Em São Francisco, quase não se veem idosos. A cidade está cheia de jovens que acreditam poder mudar o Mundo”, afirma. “Podes ir com os teus filhos ao parque infantil e conhecer outro pai que é um bilionário que já fez algo incrível, vanguardista. Até podes sair de lá com um cheque na mão se qualquer investidor acreditar no teu projeto. Isso só acontece aqui.”

A equipa da Amplemarket é, como a maioria em Silicon Valley, completamente remota. Para estreitar laços, os trabalhadores da startup encontraram-se recentemente nas Canárias, Espanha
(Foto: Micael Oliveira)

A Amplemarket não é o único projeto conjunto entre Micael e os irmãos Batalha. Criaram a Fermat’s Library, uma plataforma para anotar e partilhar artigos científicos, que conta com mais de 850 mil seguidores no Twitter. Um deles é bastante poderoso: Elon Musk, o patrão da Tesla, SpaceX e Twitter, que segue pouco mais de 170 contas na rede social que administra. A dos portugueses é uma delas. “Ainda ontem trocámos umas mensagens privadas”, conta Mica, mostrando o chat com o homem mais rico do Mundo. O conteúdo por eles ali partilhado conta já com mais de 20 milhões de visualizações todos os meses.

Lisboa do Pacífico

Os portugueses descobriram a região da Baía de São Francisco em meados do século XIX. Os primeiros foram açorianos que, para escaparem à fome e à pobreza, embarcavam nos baleeiros americanos Havia, inclusive, um mote nas embarcações do novo mundo que atracavam no arquipélago – “Roubar portugueses”, pois aqueles jovens tinham reputação de trabalhadores incansáveis. Foram seguidos por aventureiros na senda da febre do ouro na Califórnia e outros que, seduzidos pelas promessas de vastas terras aráveis, procuraram instalar-se como agricultores. Os censos de 1890 mostravam que as seis localidades com mais portugueses em toda a Califórnia estavam todas concentradas na Baía, onde mais tarde brotaria a disruptora indústria de Silicon Valley.

Essa presença é bem patente em San Jose, no coração do Vale, que conta com a segunda maior comunidade de luso-americanos nos EUA: cerca de 125 mil pessoas. A Igreja Nacional Portuguesa das Cinco Chagas, fundada em 1914, está no epicentro do bairro de Little Portugal (Pequeno Portugal), onde instituições como o Museu Histórico Português, a Sociedade Filarmónica União Popular e a Casa do Benfica atuam na vizinhança dos centros nevrálgicos da Google e do Facebook.

Desde 2016, Little Portugal passou a ter uma nova coqueluche. O restaurante Adega, impulsionado pelo chef David Costa, conseguiu o feito de obter uma estrela Michelin dez meses após a abertura. O santareno tornou-se no primeiro chef português nos EUA, a trabalhar a gastronomia nacional, a conseguir a distinção, que é simultaneamente única na cidade de San Jose. “O último restaurante português na cidade, o Sousas, estava a fechar depois de 40 anos em funcionamento”, diz David, que se formou na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e passou pelas cozinhas do Ritz e do Assinatura. “Arriscámos, conscientes de que era um tiro no escuro. Fizemos obras, redecorámos e abrimos com o objetivo de elevar e reinterpretar as receitas portuguesas, combatendo a ideia de que a nossa comida se baseia na travessa cheia.”

Além de outros negócios, David Costa tem uma padaria na Califórnia
(Foto: David Costa)

Com o inesperado selo da Michelin, a clientela do Adega mudou, atraindo vários empreendedores de Silicon Valley que convidam clientes e investidores para experimentar o menu de degustação formado por sete pratos de inspiração lusitana ou a garrafeira com mais de 600 vinhos nacionais: “Vários negócios das maiores firmas mundiais de tecnologia são fechados nas nossas mesas”, salienta, orgulhoso, o chef ribatejano, de 36 anos. David Costa sublinha a informalidade dos maiores empresários do setor: “Temos um cliente habitual que é bilionário e anda sempre com os mesmos ténis, já velhos e gastos. Aqui ninguém julga pelas aparências. Há quem venha de calções e chinelos mas, cheios de milhões na conta, gaste uns 300 ou 400 dólares só em vinho. E isso é bom, porque na Europa ainda prevalece uma mentalidade mais formal”.

O sucesso do Adega fez com que David Costa e os seus parceiros de negócio apostassem na abertura de outros negócios gastronómicos no coração do Vale do Silício. Inaugurou o Petiscos, um espaço para petiscos e pratos típicos, como arroz de pato, polvo à lagareiro ou bacalhau com natas, e uma pastelaria típica, a San Jose, para dar resposta “aos inúmeros clientes que vinham ao Adega comprar pão português ou pastéis de nata”.

Ao longo dos últimos sete anos, o chef notou que os norte-americanos passaram a conhecer muito melhor a cultura e a gastronomia portuguesa. “Alguns nem sabiam onde ficava. Agora há cada vez mais americanos que já foram a Portugal e que até estão a pensar mudar-se para lá”, sustenta.

A intensificação das relações entre Portugal e a Califórnia manifesta-se em números: as exportações para os EUA aumentaram no ano transato 71,4% face a 2021 e as encomendas de cortiça e de azeite para o “Estado dourado” cresceram no mesmo período 7% e 83%, respetivamente. Ao mesmo tempo, muitos foram os residentes na Califórnia que optaram pela tranquilidade de Portugal durante os conturbados anos de alarme pandémico. “A perceção de Portugal é cada vez mais favorável, muito devido ao aumento do número de turistas que se deslocam por via do voo direto Lisboa-São Francisco da TAP e da campanha que o Turismo de Portugal realizou na região antes da pandemia”, destaca Teresa Fernandes, da AICEP, no espaço de cowork em que o organismo opera na zona de Embarcadero, no centro de São Francisco. A delegada realça ainda o aumento da visibilidade de Portugal nas áreas tecnológicas, incluindo as startups portuguesas e o Websummit, bem com a mudança de grandes firmas como a Cloudfare de Silicon Valley para Lisboa. “Em 2020 e 2021, com a intensificação do trabalho remoto, muitas empresas da região intensificaram a contratação remota de talento em Portugal e muitos californianos mudaram-se para lá, beneficiando da fantástica qualidade de vida a custos mais acessíveis”, diz Teresa.

David Costa chegou à Califórnia há sete anos para abrir o Adega no espaço do último restaurante português em Little Portugal, o bairro lusitano de San Jose, no coração de Silicon Valley. Dez meses depois ganhou uma estrela Michelin. Entretanto, abriu uma padaria, um restaurante de petiscos e uma discoteca
(Foto: David Costa)

A responsável pela agência pública portuguesa de investimento na Califórnia destaca ainda o grande debate existente em Silicon Valley sobre a regulação das poderosas empresas tecnológicas, num momento em que Washington percebeu que estava praticamente refém de bilionários, como Elon Musk, em vertentes estratégicas como a indústria espacial ou os carros elétricos, e em que o fantasma da desinformação continua a assombrar empresas como a Meta ou o Twitter. “A polarização política no país fez com que até agora ainda não se tenham chegado a acordos sobre a regulação destas empresas. São elas próprias que se autorregulam com base no mercado, ou seja, através dos danos reputacionais que vão sofrendo.” A União Europeia abriu no passado mês de setembro uma delegação em São Francisco para abrir diálogo com as plataformas tecnológicas.

Demasiado grande para cair

Nuno Gonçalves Pedro, de 45 anos, tem um percurso empresarial de sucesso: formado em Engenharia Informática, começou a trabalhar aos 19 anos e passou por empresas como a Altran e a Deloitte até, aos 26, ter começado a brilhar na londrina GSM Association, levando a associação de comércio global de operadores móveis a saltar de cinco para 250 milhões de euros em receitas anuais. Em 2006, começou a trabalhar com startups. “Ajudei uma empresa israelita a crescer até se vender a uma firma cotada no Nasdaq”, revela o lisboeta. “Foi aí que percebi que gostava de startups com acelerações rápidas, daquelas que vão dos zero aos 100 num ápice.”

Depois de três anos como senior expert da Mckinsey na Ásia, estabeleceu-se numa vila de origens portuguesas perto do vale, onde começou o seu percurso como investidor de risco (venture capitalist, ou VC). “Com o meu primeiro fundo, investi em empresas como a Draft Kings, Robin Hood ou Virtual Health. Tive quatro decacórnios [startups avaliadas em dez mil milhões de euros]. Unicórnios deixei de contar.”

É hoje fundador e sócio da Chamaeleon, investidora em mais de 25 startups mundiais, 60% delas nos EUA e 25 a 30% na Europa. Incide nas fases embrionárias das companhias, num máximo de dez milhões de euros ao longo do processo de investimento. Além disso, o português quer ser pioneiro no uso de tecnologia de ponta ao serviço de fundos de capital de risco. “Usamos plataformas tecnológicas desenvolvidas internamente que nos aumentam a eficácia na gestão de portefólio, aferição de risco e análise de investimentos”, assinala o VC, no café do campo de golfe da Universidade Stanford. “Somos os únicos a fazer isto em ‘early stage’. Entre outras coisas, conseguimos entender, através de dados, qual a melhor altura para fazer a venda de uma startup e qual o valor mais apropriado.”

Nuno Gonçalves Pedro, investidor e gestor do fundo Chamaeleon, acredita que Silicon Valley vai permanecer como a capital da tecnologia mundial, apesar das recentes mudanças
(Foto: Tiago Carrasco)

Vivem-se tempos de incerteza no Vale do Silício. A conjuntura económica promete refrear os investimentos e especialistas como Tom Loverro, apontado pela revista “Forbes” como um dos 100 maiores investidores de risco do Mundo, preveem “um acontecimento de extinção em massa para empresas em fase inicial e intermédia no final de 2023 ou início de 2024”. Nuno Gonçalves Pedro não é tão drástico, até porque, sublinha, muitos fundos têm ainda obrigatoriamente de alocar o abundante capital recentemente angariado. “Espera-se, sim, que se invertam as regras do jogo, pois antes o poder de negociação estava do lado dos empreendedores e agora, com a redução de riscos, vai ficar do lado dos investidores”, observa. “Mas isso sempre foi um fenómeno cíclico.”

O pessimismo generalizado não parece afetar, para já, os empreendedores portugueses com presença na Califórnia. Micael Oliveira acredita mesmo que a Amplemarket está desenhada como “uma máquina antirrecessão”. “A Sequoia, a maior empresa de capital de risco, publicou há pouco tempo uma apresentação em que elencava o que as empresas deviam fazer em tempos de crise. Primeiro, reduzir riscos; depois, investir em ferramentas que ajudem a consolidar custos; e, finalmente, investir em ferramentas que ajudem a aumentar receitas. Ora, as duas últimas são o núcleo da nossa missão. Nós ajudamos a consolidar custos oferecendo vários produtos em simultâneo e tudo o que fazemos é ajudar os clientes a aumentarem as suas receitas.”

Teresa Fernandes encara os despedimentos em massa registados no setor como uma inevitabilidade face à euforia desmedida que se estava a viver: “São períodos que têm de ser aproveitados para produzir eficiência e eliminar gorduras”.

A diretora da AICEP em São Francisco, Teresa Fernandes, destaca o aumento das ligações entre Portugal e a Califórnia
(Foto: Tiago Carrasco)

No mesmo tom, Vasco Pedro constata que o mercado está agora inundado de talento que vai procurar criar os seus próprios projetos. “Basta olhar para as várias pessoas que saíram da Unbabel e que fundaram startups muito bem-sucedidas, como a Remote, um unicórnio criado por Marcelo Lebre, um ex-engenheiro da Unbabel”, exemplifica. Mais do que se tornar também um unicórnio, Vasco Pedro julga mais importante assegurar o estatuto de “centauro”, ou seja, uma firma geradora de 100 milhões de euros em receitas anuais. A Unbabel vive um momento de expansão. Após ter adquirido a Lingo24, em 2021, a startup de tradução comprou em janeiro deste ano a alemã EVS, especializada nas áreas financeira e legal, ao mesmo tempo que lançou uma versão self-service do seu produto: “Estamos a transformar o mercado de tradução e este vai ser um ano de bons desafios”, vinca.

Em San Jose, David Costa somou uma discoteca, a Noite, ao conjunto de espaços de lazer com identidade portuguesa. “Os clientes são sobretudo americanos e asiáticos, indianos e chineses, que podem beber cocktails batizados com o nome de discotecas portuguesas, como Plateau ou a Kapital.” Todos eles convergem numa opinião: Silicon Valley é demasiado grande para cair.