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Guimarães

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Quando era pequeno, ia a Guimarães junto do castelo como se fosse ver a Disney. O aparato da estátua de Afonso Henriques conferia ao lugar um aspecto fantasista, cinematográfico que me causava a impressão de viver uma aventura. Que aquele rei estivesse ali para sempre, a criar e a defender um país com ferocidade, era-me igualmente fascinante e assustador. Diante de uma fantasia assim, eu, como criança, media-me com a dimensão imaginária de um interlocutor daqueles. E se ele se movesse? Eu pensava. E se eu tivesse de me explicar, sem armas, diante de um homem que guerreou impiedosamente a própria mãe?

A minha família vivia, àquela época, numa aldeia de Guimarães, pelo que íamos ao centro mais raramente a passear entre os citadinos mais aperaltados e cheios de nove horas. O centro era uma espécie de granito à espera, não se sabia muito bem de quê. Talvez um pouco como por toda a parte as cidades portuguesas se punham. Envelhecidas, esvaziadas, erguidas pela força natural da pedra, mais nada.

Hoje, vamos a Guimarães e a Disney está cada vez mais polida. Arranjaram-se as ruas, ocupam-se mais e mais as casas, subitamente, já toda a gente quer estar no coração medieval do país, estendem-se as esplanadas, está lindo o Museu de Alberto Sampaio, a Igreja da Nossa Senhora da Oliveira, a Loja do Júlio parece que ainda tem livros melhores, os doces em toda a parte a fazer festa na gula, cintilam flores em canteiros, há o Centro de Artes do José de Guimarães e as valências culturais ali de Vila Flor. Guimarães esperou na pedra mas levantou-se nas pessoas. Está habitada com brio.

Passo pelas ruas e lembro de como esta e aquela casa estavam devolutas, sem ninguém. Como tenho uma alma toda de deitar raízes, sempre pensei em como poderia ser lindo viver aqui e viver ali. Cuidar de uma pequena casa, pendurar-lhe uns quadros, regar também umas flores, fazer o meu arroz manhoso e chamar amigos que comam. Há muitos anos escrevi um argumento para um filme e quis que se passasse ali, nas casas medievais, digo, com as personagens a viverem dentro das pedras. Era modo de sonhar um pouco com isso. Com ser um vimaranense dali, da Disney.

Quando o Rodrigo Areias filmou brilhantemente o meu argumento, num filme chamado “Surdina”, um pedaço de meus sonhos, feitos de fascínio e susto, habitaram, e julgo que habitarão para sempre, as casas antigas de Guimarães. Somos todos partes compostas de um mapa amplo. A minha família, paterna e materna, é toda das terras de Guimarães. Ainda que um certo acidente de regime me tenha feito ir nascer em Angola e depois viver em Paços de Ferreira e Vila do Conde, quando chego a Guimarães parece que vejo do que sou feito por todo o lado. As pessoas, afinal, tantas delas, assemelham-se a mim, têm os mesmos olhos, o mesmo semblante melancólico, o ar de quem também temeu que Afonso Henriques se movesse furioso com a nossa coragem de chegarmos perto do seu castelo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)