Guardiões da floresta no terreno e a postos

Sérgio Brazete, sapador florestal, anda a recuperar acessos na serra da Estrela. Antevê um verão duro. Maria de Fátima está no posto de vigia de São Macário, no alto de São Pedro do Sul, atenta a colunas de fumo. Sérgio Almeida trata das suas florestas autóctones, resistentes e cheias de biodiversidade, em Águeda. Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor, volta a alertar para o abandono do território. Pedro Correia, sargento da GNR, investiga as causas dos fogos e partilha o que sabe pelo distrito de Viseu. Francisco Fonseca é bombeiro em Carrazeda de Ansiães, Fernando Tomé em Castanheira de Pera. Têm marcas no corpo e estão preparados para o combate. Todos no terreno. Todos a postos.

Maria de Fátima Costa entrou às oito da manhã no posto de vigia da serra de São Macário, em São Pedro do Sul. Capela aos pés, vacas a pastar à vontade, tempo limpo, sem vento, montanhas a toda a volta. É o seu turno de zelar até onde a sua vista alcança. O cenário já foi mais verde e denso, agora é mais castanho e despido. Mais terra, menos árvores. “Esta parte era toda pinhal, não foi mais plantada”, observa. Está neste trabalho há 28 anos. Deixou a confeção por uma função de grande responsabilidade. Ela sabe disso.

O posto de vigia de São Macário é uma torre de pedra, espécie de farol com visão de 360 graus, binóculos ligados a uma roda de ferro que dá ângulos e coordenadas. O cruzamento de dados indica o ponto exato do fogo, acionam-se os meios quando necessário. Parece tudo rudimentar, mas tudo tem a sua função. “Numa queimada, o fumo é branco. Num incêndio pode começar branco, escurece para cinzento, passa para castanho-escuro, fica negro.” Se consegue ver a base, percebe se é queimada ou incêndio a despontar. É preciso ler os sinais. “Quando o fumo começa negro é mau sinal”, diz. Com nevoeiro, é mais complicado. Com aviários na zona é preciso perceber quando fazem queimadas. “Se houver vento, não se pára. O próprio incêndio cria ventos.” Aprende-se com a prática.

Maria de Fátima é operadora de posto de vigia há 28 anos. Está em São Macário, em São Pedro do Sul. Em 2016, teve um incêndio à porta de casa
(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

Nenhum fogo é igual a outro. “Todos os incêndios, mesmo que ocorram no mesmo sítio, são diferentes”, garante Sérgio Brazete, sapador florestal dos baldios de São Pedro, em Manteigas, bombeiro há 28 anos, sapador há 20 – neste momento, comandante em suplência dos Bombeiros de Manteigas por ser o profissional mais graduado. Faz um pouco de tudo, gestão de combustível, ações de sensibilização, manutenção da rede viária e pontos de água. Vigilância, combate, formação a sapadores. O que for necessário. Chegou a entrar para dentro de incêndios (aqui a redundância é necessária) para não morrer queimado, confessa. Deixar o fogo passar para não ser atingido.

Nos primeiros oito dias dos incêndios de agosto do ano passado na serra da Estrela, os piores de que há memória dos últimos 47 anos, 25 mil hectares consumidos (são duas Lisboas e meia), Sérgio Brazete dormiu oito horas apenas. “É a nossa terra, queremos protegê-la.” Na semana passada, andava a requalificar a rede viária afetada por esses fogos. Cinquenta quilómetros, mais coisa, menos coisa. Não anda sossegado. “Este ano vai ser muito complicado, como choveu até tarde, há mais combustível fino, as ervas cresceram, está tudo cheio de pasto, tudo disponível para arder”, avisa o sapador florestal. Os sinais da devastação persistem. “Está tudo igual, continua tudo igual. Um ano depois, o plano de recuperação para a serra da Estrela nem sequer saiu da gaveta. Quanto mais tempo perdemos, pior. O mato cresce e abafa as árvores. Não há intervenção, qualquer dia é tudo mato.” Sérgio Brazete não tem dúvidas: o que acontece ali tem impacto acolá. “Se não tivermos árvores na serra, a água vai escassear em Lisboa e vai ficar mais cara.” É a Natureza, é a humidade, é a água, são os solos, é a barragem. Está tudo interligado.

No verão, a equipa de cinco sapadores de São Pedro está a postos sete dias por semana, independentemente do tipo de alerta, em regime de chamada 24 horas por dia. Sempre ligados. Muitas vezes, são os primeiros a chegar e os últimos a sair. “Antes da época de verão, fazemos treinos operacionais para estarmos aptos. A nossa profissão é bastante exigente.”

A norte, mais para o Interior, também não há descanso. Francisco Fonseca é bombeiro há 40 anos, funcionário da corporação de Carrazeda de Ansiães há 26, chefe de equipa, faz de tudo um pouco, combate, telefonista, só não conduz. No ano passado, o fogo não deu tréguas naquelas bandas, começou em Marzagão, durou vários dias e noites, o perímetro de incêndio chegou aos 52 quilómetros, arderam mais de 2700 hectares. A zona era agreste, o combate foi puxado. “Foi bastante aterrador, terrível, os acessos são muito difíceis, vertentes viradas para o Douro, muito calor, foi dos anos mais difíceis”, recorda. O que vê pela floresta não o deixa nada tranquilo. Lixeiras a céu aberto. Agricultura abandonada. Pouca pastorícia. Combustível morto, uma manta altamente explosiva e perigosa. “Antigamente, toda a gente usava lenha para o lume, para aquecer, para cozinhar.” Agora não. Antecipa fogos cada vez mais duros e violentos.

Mais no centro do país, Sérgio Almeida, “pequeno proprietário florestal”, como se apresenta, conduz a carrinha para o seu bosque autóctone denso e repleto de biodiversidade espraiado em 14 hectares em Valongo do Vouga, Águeda. Antes de lá chegar, no caminho de terra batida, veem-se terrenos com eucaliptos bem altos que cresceram em seis anos, devidamente autorizados. A teoria não bate certo com a prática. Observa e segue caminho.

Francisco Fonseca, bombeiro da corporação de Carrazeda de Ansiães, fala do que vê na floresta: muito lixo, pouca agricultura, uma manta de combustível que pode arder
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

O seu bosque é completamente diferente do que vimos. Tem carvalhos, castanheiros, medronheiros, sobreiros, azevinho, cogumelos, freixos, bétulas, amieiros, heras, bolotas. Ouve-se a passarada, há ali pica-paus, melros, guarda-rios, perdizes, a pequena câmara que tem agarrada a um tronco já filmou javalis, texugos, raposas. Na ribeira que ali passa, há peixes, enguias, trutas, ruivacos. “Não tenho monocultura, tenho biodiversidade.” A Natureza tal como ela é. Ao todo, tem 41 hectares espalhados por aqueles montes. “A floresta pode dar cogumelos, medronho, bolota, castanhas, filtra as nascentes e preserva a água da ribeira, sequestra o carbono.” Plantas e árvores germinam de forma espontânea. Não usa herbicidas, não faz intervenção com maquinaria pesada, vai retirando os eucaliptos progressivamente, vai removendo o que está a mais, vende o excedente de madeira sem intermediários.

O antes e o depois de Pedrógão

Há um antes e um depois do dia 17 de junho de 2017 em Pedrógão Grande. A ferida continua aberta, rasgada na memória: 66 mortos, 253 feridos, 500 casas destruídas, mais de 24 mil hectares consumidos pelas chamas. Nesse dia, Fernando Tomé, da corporação de Bombeiros de Castanheira de Pera, saiu do quartel para um fogo em Figueiró dos Vinhos, mudou de direção, desviou para Pedrógão. Nas comunicações via rádio, percebia-se que a situação era complexa. A viatura que conduzia, com quatro mil litros de água, foi abalroada por um outro veículo desmandado, sem salvação. A ideia era passar o fogo para o lado queimado, com o embate, os cinco bombeiros ficaram na linha do fogo. Um morreu, os outros quatro conseguiram fugir até um cruzamento, um deles seu filho, então com 22 anos. O calor queimou-os. “Nós pensamos que comemos o fogo, veio o fogo e ia-nos comendo a nós”, desabafa.

Ninguém conseguia parar um fogo como aquele. Fernando Tomé, na altura com 47 anos, 30 como bombeiro, só acordou em agosto, dois meses em coma no Santa Maria, em Lisboa, mais de três meses internado, um ano em tratamento, vias respiratórias afetadas, queimaduras na cara, cabeça, mãos, atrás das pernas. Várias cirurgias. Voltou à corporação em 2019. Os psicólogos admiraram-se com a sua força, essa vontade de regressar. “Mas já não é como era. Depois desse dia 17 dá para pensar em muita coisa. Somos humanos, as coisas doem. Ficámos com uma nódoa negra, perdemos um colega.” Há um antes e um depois, de facto. “Temos as marcas no corpo, passava naquele local várias vezes ao dia, é uma coisa que não se esquece mais na vida.”

Fernando Tomé, bombeiro de Castanheira de Pera, esteve no incêndio de Pedrógão. Teve um acidente, ficou em coma, um ano em tratamentos. Voltou à corporação em 2019 (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Francisco Fonseca também não esquece. Em agosto de 1994, ficou ferido num acidente. Ele e os colegas tinham estado a combater durante a noite, a missão estendeu-se para a manhã, tudo controlado, pararam para almoçar, foram alertados para um incêndio urbano. Voltaram à estrada. A viatura despistou-se, uma curva, um muro de dois metros e meio, projetados para um pomar. Eram cinco. O veículo ficou de pernas para o ar, não sabem o que terá acontecido, a velocidade não era assim tão excessiva, a hipótese de ter rebentado um pneu ficou a pairar no ar. Fraturou o cotovelo direito, abriu o fato-macaco para ver se era grave, foi verificar como estavam os colegas, puxou os que ainda estavam dentro do carro dos bombeiros. Um susto. Noutra ocasião, 11 incêndios nascentes num só dia, cinco bombeiros dentro da viatura e uma pergunta básica. “O cansaço era tanto que não sabíamos que dia era.” “A gente não é de ferro, tem de descansar.”

Francisco Fonseca tem 60 anos. Tem uma medalha de prata por serviços distintos da sua corporação, e medalhas de bronze, prata e ouro da Liga dos Bombeiros pelos anos de serviço. Como profissão de alto desgaste, defende a reforma mais cedo. “Andamos até aos 65 anos a combater com uma bengala”, repara. Seja como for, dedicação máxima à missão. “Tentamos sempre fazer o melhor.” Um trabalho ingrato? “Alguém tem de o fazer”, responde. Mesmo com alguma perda de mobilidade no braço, nunca desistiu.

Pedro Correia, sargento da GNR de Viseu, coordena os cinco chefes do núcleo de proteção ambiental do distrito de Viseu. Militar desde 1996, especializou-se no Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente (SEPNA) em 2010. Grande fatia do trabalho é dedicada aos incêndios florestais. É um homem do terreno, atento, vigilante.

Pedro Correia, sargento da GNR, coordena equipas de proteção ambiental, investiga causas de incêndios, analisa o que se passa a nível nacional
(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

O dia a dia é incerto, nunca se sabe o que pode aparecer, onde e quando. É preciso investigar as causas, se há ou não negligência, se há ou não dolo. “Tentar perceber o fenómeno em causa.” Ir à origem, voltar à zona ardida as vezes necessárias. “Tentamos resolver situações que aparecem, tentando priorizar em função do que é mais importante.” É como uma bola de neve, fala-se com as pessoas, tenta-se perceber para onde ir, onde procurar. “A experiência permite-me estar mais confiante no terreno, mas todos os anos são diferentes, vamos aprendendo sempre mais coisas e renovando o que já sabíamos.” Já ficou encurralado com as suas equipas em áreas que ardiam. “Muitas vezes, ficámos com as populações fechados nas aldeias”, conta. Em 2010, num incêndio em São Pedro do Sul, um carro de bombeiros virou, estava de mota, passou pelo fogo para ir buscar material de socorro.

O sargento da GNR lembra-se bem desse fatídico 2017, estava em São Pedro do Sul, a fazer o que podia. “Não havia fardas, éramos todos iguais.” Sentia que o que estava a acontecer não era igual ao que já tinha visto, e as terríveis notícias de Pedrógão ainda não tinham chegado. “Dentro da normalidade, era o caos e foi isso que mais me assustou, condições extremas, chamas a aparecer em todo o lado.” 2017 foi, de facto, um ano negro. “Fomos atingidos, toda a gente se mobilizou, ficámos sem transmissões, sem comunicações, sem telemóveis.”

Paulo Pimenta de Castro é engenheiro silvicultor, presidente da Iris – Associação Nacional de Ambiente, foi técnico superior na Confederação dos Agricultores de Portugal e secretário-geral da Federação dos Produtores Florestais de Portugal, é consultor, presidente da Acréscimo – Associação de Promoção ao Investimento Florestal. É coautor, com João Camargo, engenheiro zootécnico, do livro “Portugal em chamas – como resgatar as florestas”, lançado no início de 2018, depois do negro ano de 2017. “O problema da floresta diz respeito à ocupação do território, sobretudo rural. Durante décadas, não conseguimos parar o êxodo rural”, sublinha. Tanto na ditadura como no regime democrático. “Não temos tido políticas para parar o despovoamento.” Resultado: território abandonado e em transformação devido à desertificação, às alterações climáticas, às opções humanas, às decisões políticas. Paulo Pimenta de Castro defende uma visão holística do problema. Desenvolver a agricultura e a pastorícia é fundamental. “A floresta vai encontrando os seus equilíbrios, o problema é se esses equilíbrios nos comportam ou não, podendo criar um território que nos seja hostil, que já é hostil. Se o abandonamos, corremos o risco de se virar contra nós”, alerta.

Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicultor, lembra que há planos de desenvolvimento rural e florestal metidos na gaveta e que não há vontade de os executar
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

O eucalipto é um problema, não a espécie em si, mas a forma como é usado, 2/3 do eucaliptal ou está ao abandono ou está a ser mal gerido, diz o engenheiro silvicultor. “Na prática, são achas para a grande fogueira.” Não ardem com facilidade, voltam a brotar com facilidade, projetam material perigoso em fogos, como cascas, entre três e seis quilómetros. Por um lado, esta cultura não pode ser abandonada, por outro, é preciso perceber como funcionam os mercados. Mas o eucaliptal não é o único problema, as acácias, essa planta invasora de flores amarelas, têm proliferado. “A faixa de gestão de combustível é uma medida desastrosa. Quando decapitam o solo para nos sentirmos mais seguros, as acácias germinam. Tiram tudo e deixam limpinho, o que dá azo a que as acácias proliferem (e elas até nos agradecem por isso).” Limpar, sim, mas colocar lá alguma coisa.

Território mal gerido, ao abandono

Há um passado que corre nas veias de Sérgio Almeida. Em 1971, tudo ali ardeu, o seu avô António perdeu tudo e recomeçou do zero, enquanto nas montanhas esventradas à sua volta eram plantados eucaliptos, ele deixava a Natureza brotar e ela mostrou-lhe o que fazer. O proprietário florestal entende essa herança e coloca-a em prática. Houve, porém, momentos duros. As datas estão na sua cabeça. A 2 de setembro de 2012, um incêndio consumiu tudo naquelas serras. A 8 de agosto de 2016, outro fogo, tudo novamente queimado. “Voltei à estaca zero.”

Sérgio Almeida, com duas licenciaturas de Gestão Pública e Autárquica, Documentação e Arquivo, algumas formações ligadas à floresta, sócio da Quercus, assegura que aprende todos os dias no meio do seu habitat. Dedica-lhe tempo e atenção, ainda há dias encontrou escaravelhos vaca-loura que irá referenciar no site dedicado ao assunto. Explica como as acácias morrem lentamente com o tronco descascado e não com químicos que a matam de repente, mas deixam raízes a crescer debaixo da terra. “E se um incêndio entra no bosque, perde força.” Nem todos sabem disso. “O fogo é um negócio de milhões”, comenta.

Cuidar da floresta é ingrato por vários ângulos. “São trabalhos árduos e muito mal pagos. Um sapador florestal ganha o ordenado mínimo, os nossos bombeiros recebem uma ninharia, na sua maioria são voluntários, para salvaguardar vidas humanas. Temos um território mal gerido, grande parte ao abandono, grande parte de produção lenhosa”, refere Paulo Pimenta de Castro. Como se não bastasse, as alterações climáticas não ajudam e as mudanças estão à vista. Aquecimento global, períodos de seca mais frequentes e mais prolongados, ventos cada vez mais fortes, ventos continentais mais secos.

Portugal tem feito parte do pódio do mau ranking como um dos países do Mundo que mais ardem em termos de área absoluta. Em 2022, surge em terceiro lugar, pelas piores razões, a seguir a Espanha e Roménia. “Para nós ardermos forte e feio não é preciso muito, o que é uma insensatez”, assinala. “Temos um problema no combate, os reacendimentos, descuramos no rescaldo, o fogo reaparece na área ardida e reaparece com maior violência”, acrescenta.

A ficar tudo na mesma, Paulo Pimenta de Castro fala num colapso territorial, económico, social. “Não é só o problema da chama em si, o problema é que o fumo também mata localmente e a longas distâncias. Hoje os fogos não são fenómenos meramente locais.” Os fumos dos incêndios no Canadá, no mês passado, deram a volta ao Mundo e chegaram cá há dias. A intervenção do território parece-lhe uma terra de ninguém, não há interesse político, há planos de desenvolvimento rural na gaveta, por executar ano após ano. “Temos um território que não pode ser abandonado, não temos da parte dos nossos políticos vontade.”

Sérgio Almeida não acredita num Planeta B. “Só temos combate e não temos prevenção”, diz o proprietário florestal. “Temos de pensar a longo prazo, nos últimos 70, 80 anos andou tudo à deriva, esta abordagem com a Natureza é fundamental, o Planeta é uma gaiola, se não cuidamos dela, não temos hipótese.” Defende florestas mais resilientes para que o país não ande constantemente com o coração nas mãos.

Sérgio Almeida cuida das suas florestas autóctones em Valongo do Vouga, Águeda. Uma diversidade sem-fim, a Natureza a fazer o seu trabalho
(Foto: Tony Dias/Global Imagens)

Em 2016, Maria de Fátima teve o coração nas mãos, um incêndio à porta de casa, pouco mais abaixo de São Macário, em Macieira, os bombeiros chegaram a avisá-la: prepare-se que a sua casa vai arder. Ficou, ajudou a apagar o fogo, a casa não ardeu. Eternamente grata aos bombeiros, a toda a operação de combate. “Os bombeiros apagaram o fogo debaixo das chamas, debaixo delas”, destaca. Nesse dia, tinha estado no posto de vigia, o incêndio começou em Arouca e veio por ali fora. “Não havia meios, deixaram-no fugir, e não conseguiram segurá-lo mais.” Viu-o entrar em São Pedro do Sul ao início da tarde e deu o alerta. Na manhã seguinte tinha-o à sua porta. “Não consigo ver nada a arder”, confessa.

Os militares estão no terreno, as equipas do SEPNA não têm mãos a medir. Pedro Correia olha para o que se passa ao seu redor e mais além, também analisa os incêndios a nível nacional. Não esconde a paixão pela investigação. Estava na equipa que identificou os autores do incêndio do Caramulo em 2013, três ignições, em três locais distintos, três incêndios que acabaram por se juntar. O maior fogo desse ano, ativo mais de dez dias, quase dez mil hectares ardidos em quatro concelhos dos distritos de Viseu e de Aveiro. Mais de 15 mil bombeiros de todo o país no combate. Morreram quatro bombeiros. Os dois incendiários foram condenados a 18 e a 12 anos de prisão efetiva. Sentença exemplar. Sente que a partir daí, estes casos passaram a ser olhados de outra forma.

Fernando Tomé tem agora 53 anos, 35 de bombeiro, continua no ativo, chefe de equipa, sempre pronto para o combate, sempre precavido. “Os fogos estão cada vez piores, mais agressivos. Isto vai piorar de ano para ano e temos de ter cuidado”, avisa. O que vê em Pedrógão assusta-o, a falta de limpeza na borda das estradas e das casas, matos ao abandono. “Alguns sítios estão piores do que estavam, o que ardeu há seis anos está quase tudo no chão, acácias, eucaliptos, está lá pólvora para arder. Cresceu tudo rapidamente, a qualquer momento, podemos ter outro fogo, a floresta não está cuidada.” Alguém o ouve?

Quando anda pelas florestas, Paulo Pimenta de Castro vê várias camadas, cenários diversos, um misto de sensações. “Há bons exemplos no terreno, gente a tentar fazer diferente, normalmente casos isolados, seria importante interligá-los.” Gente a restaurar plantas autóctones, a reconstruir áreas de vegetação, a recuperar ensinamentos antigos, a adaptá-los, não a copiá-los. Esses são motivos de alegria. Há tristeza também. “Muita gente não percebe o que está à sua volta, tem o seu cantinho bem guardado e está rodeada de monoculturas, é o que está a acontecer em Pedrógão Grande”, constata. Quando lá vai, fica angustiado, sente que está tudo pior, pedaços de terra abandonados, menos gente, muitas acácias e eucaliptos, além da história da recuperação das casas. “Como cidadão português, sinto vergonha do que se passa em Pedrógão Grande, a sensação com que fico é que os corpos arrefeceram”, admite.

Nesse mesmo Pedrógão ferido e magoado onde, terça-feira passada, o primeiro-ministro não disse o que todos queriam ouvir. Pelo contrário. “Este memorial representa um alerta de que o passado corre sempre o risco de se repetir”, afirmou António Costa, seis anos e dez dias depois de tão violenta tragédia. Nessa terça-feira, 27 de junho de 2023, o bombeiro Fernando Tomé esteve na inauguração oficial do memorial às vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande. E não foi fardado.