Valter Hugo Mãe

Ginguba


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Em Luanda, as pessoas dos prédios melhores trazem em seu redor uma nuvem de meninos pedindo e oferecendo o serviço de escovar sapatos. Quase sempre pessoas brancas, com seus empregos estáveis e suas vidas no centro mais bonito da cidade, têm maior facilidade em pagar algo, ainda que a multidão milionária de outrora tenha acabado. Os meninos precipitam-se sobre quem sai dos prédios com suas súplicas e seria necessário ser um banco suíço para acudir a tanta declaração de fome.

Não vejo meninas. Talvez as meninas fiquem mais perto de suas casas, a medo de tudo, que o mundo dos homens é um horror para elas, talvez possam estar nas escolas. Os meninos trazem suas caixinhas de madeira e seus rostos aflitos, e mais aflitos se mostram quando descemos com nossas roupas claras e o perfume dos repelentes de insectos. Alguns meninos julgam que assim é o odor dos frascos da Chanel. As pessoas francesas devem andar por Paris todas a cheirar assim.

Ajudar estas crianças é um exercício de escolhas rápidas. Tenho muito a convicção de que não mudarei Angola mas também me sentiria um bicho se não fosse sensível a um ou outro pedido, ao corpo débil de alguns meninos que aparecem de olhos turvos. Talvez sejam os que começam apenas a sofrer. Os outros podem já ter sofrido tanto que não saibam chorar. Não vou sabê-lo com facilidade. Nada se faz fácil aqui.

Levo algumas notas soltas e não quero nada com sapatos. Caminho à pressa para que fiquem só aqueles que não podem desistir. E depois vou escutando o que dizem e, normalmente, uns corrigem os outros, acusam-se, procuram abater o adversário com argumentos até deselegantes. O certo é que não quero premiar os agressores, quero saber dos que parecem ter maiores responsabilidades. Algumas destas crianças, afinal, têm onze ou doze anos, e são pais. Quando discutem entre eles, falam dos filhos, de como os seus filhos estão doentes.

A vida destes meninos é toda à deriva. Luanda atrai milhões de pessoas na esperança de uma sobrevivência mais digna mas, à falta de tudo, na aridez da cidade, sobretudo as pessoas dos bons prédios são a árvore de onde pode cair o fruto. As matas férteis foram trocadas pelo casco da cidade onde a generosidade que resta é a colheita que pode acontecer.

Um menino disse que quem vem sempre tem os sapatos empoeirados. Quase todas as ruas são de terra batida e não é bonito entrar nas empresas com os pés sujos. Depois, explicou, poderiam vender ginguba, porque é muito barata e algumas pessoas enganam a fome de um almoço só com aquilo. No entanto, é melhor limpar sapatos. Porque isso mantém o emprego. A fome, de qualquer jeito, não vai acabar. Podem sempre comer amanhã.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)