Fungos e bolor, perigos invisíveis dentro de casa

“As infeções são as doenças mais associadas aos fungos e variam desde infeções superficiais, até infeções generalizadas e invasivas”, reconhece José Laerte Boechat, imunoalergologista

Microrganismos reproduzem-se na humidade, criam colónias, instalam-se em tetos e paredes. Os pulmões sentem o cheiro a mofo e há doenças que surgem ou que se agravam. Asma, pneumonites, infeções, alergias.

A química é complexa e acontece a um nível microscópico, mas a lógica é fácil de entender. Quando a humidade, aquela quantidade de vapor de água que há no ar, é excessiva dentro de casa, mais de 60%, os fungos crescem à vontade e a olho nu naquelas manchas de bolor nas paredes, nos tetos, nos móveis, entre azulejos. O olfato ressente-se, absorve aquele cheiro a mofo quando se entra num quarto ou se abre um armário. Até pode ser que nada aconteça, mas nem sempre assim é. A humidade e o bolor são causas silenciosas de doenças.

Muita humidade, pouca ventilação em casa, baixa exposição solar, os fungos encontram o habitat perfeito e desenvolvem-se. José Laerte Boechat, imunoalergologista da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC), lembra que os fungos estão presentes em praticamente todos os ecossistemas, o contacto dá-se de várias formas, seja através da inalação de esporos em suspensão no ar, seja pela ingestão de pequenas quantidades presentes em alimentos. Por vezes, nada acontece nestas interações, outras vezes, há consequências. “Apesar de inofensivos para a maioria das pessoas, os fungos podem ser responsáveis por diversos problemas de saúde, principalmente infeções fúngicas e doenças alérgicas associadas a fungos”, adianta o imunoalergologista.

Há bolores em casa então há fungos em compartimentos onde se respira durante muitas horas, como o quarto, onde se dorme. António Morais, pneumologista do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, fala desse contacto e do que se inala. “O pulmão, através das vias aéreas, e a pele, são os nossos órgãos de contacto com o exterior – principalmente o pulmão. O que respiramos, o que vamos inalando, pode causar agressão.”

As colónias de fungos são bolores. Se há bolores, há probabilidade do organismo se manifestar, há perigos reais para a saúde, segundo David Barros Coelho, pneumologista do CHUSJ. “O ar que respiramos tem condições de temperatura e vapor de água e, em certas circunstâncias, torna-se propício ao crescimento e reprodução de microrganismos”, descreve. Há espécies que não são patogénicas, há espécies com potencial de toxicidade, neste caso, elas não facilitam. “Podem surgir vários tipos de problemas. Por um lado, podem causar doenças, infeções e pneumonia por fungos, em quem tem alguma debilidade no seu sistema imunológico (alguém que faz ou tenha feito quimioterapia), em doentes com HIV. Por outro lado, agravam doenças”, constata David Barros Coelho. Como a asma e outros problemas respiratórios. “Existem doenças ainda mais graves, como a pneumonite de hipersensibilidade, cuja inflamação pulmonar descontrolada pode evoluir para fibrose pulmonar”, acrescenta.

Em todo o Mundo, avança José Laerte Boechat, a quantidade de doenças causadas por fungos tem vindo a aumentar, há mais doenças autoimunes e crónicas, mais pacientes imunocomprometidos, com frágeis mecanismos de defesa, e mais transplantados. “As infeções são as doenças mais comummente associadas aos fungos e variam desde infeções superficiais (as conhecidas ‘micoses de pele’ ou dermatofitoses), até infeções generalizadas e invasivas.” Estas últimas, em doentes com fatores de risco, dão que fazer, terapia intensiva, imunodeficiências primárias, cateteres intravenosos.

“A exposição a fungos pode causar também diversas doenças alérgicas, entre as quais, a asma grave com sensibilização a fungos, a aspergilose broncopulmonar alérgica (que acomete indivíduos suscetíveis com asma ou fibrose quística), a rinossinusite fúngica alérgica e diversos tipos de pneumonites de hipersensibilidade associadas a exposições a fungos em contexto ocupacional, atividades recreativas ou sistemas de ventilação contaminados”, revela o imunoalergologista.

A inalação diária, constante, de antigénios ambientais causa sintomas de tosse, cansaço, falta de ar. Dentro de casa, atenção. “O mofo, esse cheiro, decorre de fungos numa determinada área”, diz António Morais. O pneumologista alerta para o agravamento de doenças crónicas, como a asma ou a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), uma das principais causas de morte no nosso país, com a consequente intensificação da terapêutica. “Os fungos são uma causa de instabilidade dessas doenças, de mais sintomas, de mais crises”, repara. Esses fungos que se reproduzem em bolores lançam cheiro, e andam no ar podem provocar alterações estruturais irreversíveis.

Por tudo isso, e muito mais, é preciso falar do assunto. “A primeira coisa a sublinhar é que quando as pessoas falam de poluição ambiental, devem saber que a poluição indoor também é muito importante e pode ser a causa de doenças e do agravamento de doenças. Em segundo lugar, têm de estar atentas e ter noção de que podem prevenir a doença.”

Ventilar, abrir armários, não secar roupa na sala

É no inverno que há mais humidade dentro de casa, mais fungos, mais bolores, mais cheiro a mofo, mais problemas de saúde. Há uma doença que está a captar a atenção da comunidade médica: a pneumonite de hipersensibilidade, doença grave, rara, a causa mais comum de fibrose pulmonar, a patologia mais referenciada para transplante pulmonar. É uma inflamação das vias respiratórias, uma resposta imunológica exagerada à inalação de fungos.

Os pneumologistas António Morais, também coordenador da consulta de fibrose pulmonar do CHUSJ, e David Barros Coelho lideram uma investigação que estuda a exposição ambiental dos doentes seguidos na unidade hospitalar e identifica os fungos recolhidos diretamente nas suas habitações. “É difícil nomear a causa desta doença. Neste estudo, avaliamos se estes fungos são a principal causa da doença e uma causa do seu agravamento, uma vez que essas causas fazem parte do nosso ambiente domiciliário”, assinala António Morais. São as manchas esverdeadas e negras nas paredes e nos tetos, o cheiro a mofo em arrecadações e garagens. São chamadas “causas silenciosas”, tantas vezes desvalorizadas. “São inimigos invisíveis que estão dentro de casa”, sublinha David Barros Coelho.

O pneumologista dá nota dos resultados preliminares do estudo: cerca de 75% dos doentes com pneumonite de hipersensibilidade estão expostos a níveis tóxicos de fungos dentro de casa. Em 37% dos casos foi encontrada exposição a fungos na habitação, apesar de não ter sido reportada em consulta – por vezes, não se fala dessas manchas dentro da casa, temendo a associação à falta de higiene, quando a questão está na própria construção e estrutura das casas. E há mais uma circunstância de relevo. Em debates e conferências pelo Mundo, Portugal é um dos países que apresentam uma das mais altas taxas de prevalência desta pneumonite que tem um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes.

A investigação do CHUSJ vai mais além da análise ao ambiente interno, da recolha de uma amostra de ar, debruça-se também sobre as características do edifício e do mobiliário. Os dados obtidos neste projeto serão valiosos para o tratamento da doença e travar a necessidade, a longo prazo, de um transplante pulmonar, a última linha de resposta.

Ter algumas cautelas dentro de casa é meio caminho andado para acautelar problemas de saúde. Arejar a casa, não ter roupa a secar na sala ou na cozinha, ligar desumidificadores em espaços húmidos e sem janelas (como é o caso de casas de banho dos apartamentos). José Laerte Boechat deixa algumas dicas para aplicar em casa e no trabalho, se possível. “Manter os ambientes bem ventilados, com boa exposição solar (se possível), evitando-se assim o excesso de humidade. Observar o estado de roupas guardadas em armários por longos períodos (por exemplo, casacos e roupas de inverno), procedendo à higienização das mesmas antes do uso, se necessário.” Não acumular material orgânico, restos de alimentos, poeiras, uma vez que favorecem o crescimento de fungos e outros microrganismos, como os ácaros.

Há outros cuidados a ter individualmente, segundo o imunoalergologista da SPAIC. Pacientes com doenças crónicas, asma, DPOC, HIV, imunodeficiências primárias ou secundárias, devem manter o acompanhamento médico. “Em caso de lesões na pele sugestivas de micose, procurar atendimento médico apropriado”, aconselha. Evitar qualquer automedicação, sobretudo com antibióticos e corticoides orais. Falar com quem sabe, portanto.