Fóruns: em direto, sem rede, mas com regras

Os fóruns das rádios dão voz a cidadãos anónimos, pessoas comuns. Quanto mais o tema mexe na vida de todos os dias, maior é a participação. Antena aberta, serviço público. O pulsar do país que não se acomoda. Opiniões e pensamentos, dúvidas e questões, críticas e elogios. Em direto, sem rede, com regras. Um formato que não cola nas televisões. São as limitações, são as novas tecnologias.

Nove da manhã, primeira segunda-feira de abril, o tema do “Fórum TSF” está lançado. Uma hora depois, abre-se o livro de reclamações (eventualmente de elogios) do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Os problemas crónicos do SNS estão a ser resolvidos?” É a questão. A falta de médicos de família, as condições dos centros de saúde, as demoradas listas de espera, as urgências sobrelotadas em debate no dia em que o Governo retoma a iniciativa “Saúde Aberta”, para escutar utentes, autarcas, profissionais, num périplo pelo país. A linha está aberta, os ouvintes da TSF podem participar. “Sem temas tabu nem verdades feitas.” Está escrito. O debate é livre.

O jornalista Manuel Acácio introduz o tema, modera o programa, lê os comentários que o ouvinte João Barbosa escreveu e que acha que “o investimento é escasso”. O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, entra em direto, comenta que não se resolvem problemas com pensos rápidos. Segue-se o ouvinte Alfredo Figueiredo, enfermeiro de Coimbra, que conta que não há condições para os profissionais e que o “SNS está disfuncional”. Ramiro Fernandes, professor, fala de Lisboa, esteve 24 horas nas urgências do Amadora-Sintra sem médicos entre a uma e as cinco da manhã, o problema é “uma pescadinha de rabo na boca”, parece-lhe. Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, entra como convidado, diz que devolver a autonomia aos hospitais é fundamental, a valorização dos profissionais é o que mais o preocupa.

A norte, na “Antena Aberta” da Antena 1, de segunda a sexta, entre as 11 e o meio-dia, a opinião dos ouvintes conta, o slogan resume a essência do programa. Logo após o noticiário das 11, o jornalista António Jorge entra em direto no estúdio 1, sala à direita, no corredor da rádio nas instalações da RTP no Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia. O programa “Mais Habitação” acabou de ser aprovado, o primeiro-ministro deu uma entrevista na noite anterior. O assunto está em todo o lado nessa sexta-feira, última de março, e não se fala noutra coisa. O tema foi anunciado às 8.30 horas e já há inscritos para entrar no ar.

António Jorge senta-se com duas folhas escritas, coloca-as na secretária, tem dois telemóveis, três computadores, três televisores ligados, mesa de comando com botões, caneta na mão. À sua frente, do lado de lá de uma janela, Mónica Mendes e Augusto Fernandes a postos. Um relógio digital marca as horas, os minutos e os segundos.

António Jorge, jornalista da Antena 1, em direto, de segunda a sexta, no programa “Antena Aberta” para espremer e debater o assunto do dia. Quanto mais o tema mexe com a vida das pessoas, mais ouvintes no ar, das 11 às 12 horas (Foto: André Rolo/Global Imagens)

As linhas estão abertas, o programa começa, o debate arranca. Pedro Ventura, vice-presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses, é o primeiro convidado, acusa o Estado de empurrar para as autarquias os problemas que não consegue resolver. António Pereira, de Lisboa, é o primeiro ouvinte, fala da lei que está em vigor, das condições de entrar numa casa devoluta, ameaçar pessoas e bens, falta de salubridade, “canos rotos, entrar chuva pela telha”, diz que o primeiro-ministro “escorregou, espalhou-se ao comprido”. José Antunes, de Amares, outro ouvinte, considera que as medidas “são muito tímidas”, a paisagem urbana está degradada, é preciso dar solução à falta de casas. Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal, é o segundo convidado, refere que “o Governo já escolheu o alvo a abater”, os alojamentos locais nas zonas urbanas, lamenta a falta de diálogo.

“Antena Aberta” foi para o ar no final da década de 1990, António Jorge está no programa há 15 anos. A atualidade é o principal motor e alimento do programa. “Os assuntos têm de ser interessantes e apelativos, mas sobretudo que tenham a ver com a vida diária das pessoas, que mexam com as suas vidas”, salienta. São esses que têm mais impacto, geram maior participação. Escavam-se várias perspetivas de um tema. “As pessoas gostam de sentir a temperatura do país, o programa permite dar uma visão de um coletivo pensante do país que temos”, realça António Jorge.

O “Fórum TSF” é o programa mais antigo neste formato, arrancou no início da década de 1990, evoluiu, fez escola. Manuel Acácio, um dos fundadores da TSF, está aos comandos do “Fórum” há 24 anos. É um projeto jornalístico, diz, o ouvinte tem um papel essencial, sublinha, os debates são feitos com frontalidade, imparcialidade, coerência, garante. O jornalista da TSF sabe qual é o seu papel. “Conseguir notícia, enriquecer a informação da TSF, reforçar o debate democrático. Dar voz a quem quer exercer o seu direito de cidadania, enriquecer a visão que temos do país.” A longevidade do “Fórum” não é difícil de explicar. “Cada vez faz mais sentido neste tempo que vivemos, de novas e velhas censuras, polarizações absurdas. É cada vez mais essencial fazer jornalismo sério. É cada vez mais essencial perguntar para não ficarmos com respostas ocas. É cada vez mais essencial tentar fazer um debate plural, sério, abrir janelas para diversos pontos de vista.” E combater a desinformação.

Temas quentes, momentos únicos

Manuel Acácio é um consumidor obsessivo de notícias, por gosto, por necessidade. Começou na Rádio Palma, em Palmela, com “um programa de música esquisita”, esteve no Rádio Clube de Setúbal, música esquisita, outra vez. Na morte de Zeca Afonso ofereceu-se para acompanhar o velório, sem nunca ter feito jornalismo. Estudou Filosofia, fez o curso da TSF, nunca mais saiu da rádio.

Às cinco da manhã, está na TSF. Acorda pelas 3.30 horas, vê os recados da equipa da noite da TSF, as capas dos jornais. Já na rádio, revista de imprensa, lê jornais, o que está a marcar o dia na TSF, por vezes, há temas óbvios, outras vezes nem por isso, vê se é possível ir mais longe, fazer o debate que ainda não foi feito. Tema escolhido, duas ou três perguntas, escreve para o online, pensa em quem convidar, notas à mão em papel reciclado. Durante o programa, o texto está no computador, folha à mão para escrever os nomes dos ouvintes e outras anotações. Sozinho no estúdio, três televisores em direto.

O dia de António Jorge também começa cedo e o seu percurso tem início numa rádio da escola, no 8.º ano, em Cinfães, depois rádio em Castelo de Paiva, entretanto, um tio fala-lhe num concurso para a Rádio Comercial Norte, entra, estuda Direito na faculdade, aos 22 anos está na Antena 1. Hoje, às seis e meia da manhã, ainda em casa, vê as primeiras páginas dos jornais, olha para o menu do dia da Antena 1, noticiário em streaming. Por volta das sete, o tema está escolhido. Distribui a pergunta-tema aos animadores, programadores, produtores, toda a equipa. É necessário encontrar alguns convidados para entrar no ar.

Quais os temas mais quentes? A inflação, a greve dos professores, a política pura e dura, o que vira a vida ao contrário. “No futebol, havia garantia de muitos telefonemas, agora não é assim, não é sinónimo de muita participação, só se houver uma coisa polémica dentro do futebol”, adianta António Jorge. Não há um padrão, diz Manuel Acácio. A violência doméstica é um tema difícil, poucos ouvintes em direto, o que não significa poucos ouvintes do lado de lá.

Há, nesta vida, momentos marcantes, histórias que não se esquecem. O programa em que Carlos Moedas, então candidato a presidente da Câmara de Lisboa, entra no “Fórum TSF” e agradece o convite, Manuel Acácio esclarece, de imediato, que não foi um convite, Moedas confirma com um “exatamente”. Esse momento tornou-se viral. O jornalista da TSF confessa que foi uma reação automática, o político não tinha sido convidado, ponto final. No tempo da pandemia, e Manuel Acácio arrepia-se ao lembrar essa chamada, um pai ligou a contar que o filho tinha morrido por não ter sido tratado a tempo, negligenciado numa altura em que os olhos estavam postos nesse maldito vírus. Também se emocionou quando leu o texto que Emídio Rangel escreveu, no nascimento da TSF, no aniversário da rádio. “Trinta e cinco anos depois, o essencial mantém-se.”

Os tempos da troika e da pandemia foram momentos pesados, recorda António Jorge. Relatos duros e intensos, emocionados, em antena aberta. Há uma história que jamais esquecerá. Uma senhora ligou, dois filhos, sem trabalho, muitas dificuldades. Rui Nabeiro ouviu, pediu à secretária para ligar para o programa a pedir o contacto da senhora, queria ajudar, pediu sigilo absoluto. Quando Nabeiro morreu, António Jorge contou essa história na rádio. E a senhora ouviu, ligou, confirmou a bondade de Nabeiro.

Uma semana por mês, o programa “Antena Aberta” sai do estúdio e anda pelo país, sobretudo por instituições de Ensino Superior, universidades, politécnicos. Convidados da região, vozes mais locais, telefones abertos à participação de toda a gente. É assim há ano e meio. “É importante ter vozes que saem do eixo Lisboa-Porto-Coimbra, vozes que têm conhecimento de causa.” Essa massa crítica interessa, importa.

A matéria-prima dos jornalistas

Tudo interessa, na verdade. “Aprendo e emociono-me com os outros”, conta Manuel Acácio, “um gajo” da rádio. “Sou o mesmo puto de 20 anos, stresso, zango-me, emociono-me.” Sente-se um médico de clínica geral, os ouvintes são os médicos das especialidades. Falam e são ouvidos. “Tão importante o que os ouvintes dizem, é a forma e o tom com que o dizem. A voz é sinceridade.” Não há lugar para insultos e palavrões em direto. António Jorge já ouviu alguns, sabe o que fazer, “aqui não há lugar para esse tipo de linguagem”, avisa.

As televisões não são tão permeáveis a este formato. Telespetadores em direto ao telefone a comentarem o assunto do dia não abundam nos ecrãs televisivos. O “Praça Pública”, na SIC Notícias, era assim, chegou a ter dois horários, um de manhã, outro à tarde, mas terminou. Os cidadãos comuns não têm espaço nas grelhas das televisões? Conceição Lino, jornalista da SIC, não concorda com essa visão. “Na SIC e na SIC Notícias, nas peças dos jornais e em diversos formatos de reportagem, são ouvidos muitos cidadãos a propósito dos mais variados temas”, refere.

Conceição Lino está ligada a programas televisivos que escutam os cidadãos. A jornalista da SIC refere que há peças nos telejornais, e em diversos formatos de reportagem, em que as pessoas são ouvidas a propósito dos mais variados temas (Foto: Lionel Balteiro)

No “Praça Pública”, a SIC ia para a rua, montava um programa de televisão, “com cadeiras de plástico, se não houvesse outras”, recorda, para ouvir convidados e pessoas que aparecessem. “No ‘E se fosse consigo?’ também fizemos experiências para perceber as reações perante determinada situação de abuso ou manifestação de preconceito e a maioria das pessoas colaboraram mesmo depois de saberem que estávamos a gravar com câmaras ocultas.” Quando começou com a rubrica “Nós por cá”, no “Jornal da Noite”, o uso do email generalizou-se. “O que motivou uma explosão de sugestões dos espectadores a propósito das mais variadas situações, já não tanto através do telefone, que estava constantemente a tocar na redação da SIC, mas por esta nova forma acessível e rápida que fez com que pessoas, que nunca escreviam uma linha, passassem a escrever longos textos a descrever situações que achavam que deviam ser divulgadas na SIC.” Conceição Lino, ouvinte e apreciadora dos fóruns da rádio, admite que a televisão tem limitações que a rádio não tem.

“É um formato áudio, não de vídeo. Ponto final”, resume Felisbela Lopes, investigadoras nas áreas do jornalismo televisivo, professora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, doutorada em Ciências da Comunicação. É um formato estruturado pela voz, não pela imagem. Ouvintes em direto funcionam na rádio, não funcionam na televisão. “É um problema aguentar só a imagem do pivô e as imagens que passam são sempre imagens com uma componente informativa muito reduzida. Para ser bem feito, este formato dá o seu trabalho”, observa.

Conceição Lino conhece os constrangimentos. “Se eu posso participar num fórum de rádio enquanto conduzo de casa para o trabalho, por exemplo, para participar num fórum de televisão é mais complicado porque me obriga a estar a seguir a emissão.” Filtrar chamadas, perceber intenções, comentários que não acrescentam valor ou desviam do assunto. O formato não será tão apelativo, o público será diferente. “De qualquer modo, parece-me que não é possível que as redações trabalhem sem a participação dos cidadãos, que são uma matéria-prima essencial para os jornalistas. Uma parte das notícias e dos assuntos que são abordados têm origem no contacto e nos alertas dos espectadores”, sublinha a jornalista da SIC.

A “Antena Aberta” continua no ar nessa sexta-feira. António Jorge vai ouvindo, perguntando, acrescentando dados, apontamentos. Carlos Lopes, do Porto, entra em direto, outro ouvinte, fala da baixa taxa de execução do PRR, menos de 40%. Nesse momento, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa estão em direto na RTP3, na Universidade de Aveiro, num périplo precisamente para perceber o alcance do PRR, António Jorge faz referência a esse momento. Carlos Xavier, de Viseu, é o ouvinte que se segue, uma renda na sua cidade está pela hora da morte, critica o Governo, “o melhor é marcar eleições, que venha outro Governo”. Raul Santos fala do Funchal, tudo em cima do Estado, “agora o Governo é que tem de acudir a tudo”. Silvestre Lopes é da Amadora, avisa que o Interior precisa de ser repovoado. Joaquim Rafael, da Costa da Caparica, manda recado: “O senhor Costa, quando achar que deve descobrir o Interior, isto muda tudo”. Manuel Guerreiro, de Castro Verde, não tem papas na língua: “O arrendamento coercivo é mais uma treta, as câmaras não podem mandar cantar um cego”. Andreia Macedo, do Porto, comenta que “continuamos a ter um Portugal desigual” e “preços desajustados na capital”.

Um tema, muitas perspetivas

O “Fórum TSF” segue, com regras, há um tema, não é permitido linguagem insultuosa ou ofensiva, não há margem para apelos à violência. Manuel Acácio continua no ar, faz perguntas, lança mais questões à volta do tema, relembra o número de telefone. Hélder Sousa Silva, presidente dos Autarcas Social-Democratas, frisa que “o SNS está nos cuidados intensivos ligado às máquinas”. O senhor Mendonça, reformado, de Lisboa, revela que tinha febre, tosse, uma quebra de tensão, desmaiou na rua, 20 minutos para chegar a ambulância, Hospital Santa Maria, urgência cheia, e o desabafo: “Há pessoas que podem morrer sem serem vistas”. André Biscaia, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, defende cuidados de saúde acessíveis sem qualquer tipo de constrangimentos. José Navarro, de Palmela, lança a questão: “Mas alguém acredita nesta gente que está há 50 anos no poder?”, a mesma retórica, o mesmo país pobre, centros de saúde sem médicos, uma enfermeira a fazer consultas, um primeiro-ministro a “tapar janelas podres sem vidros com panos”.

Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, pede mais recursos e condições físicas, desabafa: “Há pouco respeito pelo nosso trabalho”. Luísa Amaro, música e compositora, fala de Alcochete, não trocaria Santa Maria por nada, não aceita que se arrase com o SNS. Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, afirma que o acesso, o financiamento e os recursos humanos são os três maiores problemas, diagnosticados há muito tempo. Vítor Proença, presidente da Câmara de Alcácer do Sal, repara no esforço notável dos profissionais de saúde, mas não há investimento, “a manta é curta”. Paulo Dias, técnico de moldes, da Marinha Grande, é a primeira vez que liga, fala na desorganização nos hospitais, falta de articulação dos serviços, “é inadmissível esperar por uma consulta três ou quatro meses”.

As redes sociais mudaram a realidade, as opções dos media, prioridades, formatos. “Os fóruns das rádios começaram quando não havia redes sociais. Agora toda a gente pode dizer tudo ao mesmo tempo em todo o lado”, assinala Joaquim Fidalgo, professor de Jornalismo na Universidade do Minho, doutorado em Ciências da Comunicação. E isso, em seu entender, retirou alguma importância a esses programas que eram muito populares. “Davam voz numa altura em que havia pouca voz.” Um dos perigos, alerta, de ontem e de hoje, é a instrumentalização dos partidos políticos, ouvintes mobilizados e orquestrados com segundas intenções. O que retira prestígio. De resto, Joaquim Fidalgo concorda que o formato é mais radiofónico do que televisivo. “A televisão precisa de imagem.”

A opinião é sempre bem-vinda e necessária. “É fundamental para uma cidadania que se quer altamente desenvolvida, viva, dinâmica”, refere Felisbela Lopes. “Os fóruns não funcionam em televisão, mas é urgente e vital as televisões encontrarem formas de integrar o cidadão.” Ou então serão sempre os mesmos a ocupar o espaço dos media de natureza informativa. “Sempre os mesmos seres pensantes que podem não corresponder ao país que somos”, observa.

Conceição Lino reconhece que hoje há mais formas, mais ágeis e fáceis, para contactar jornalistas e que os cidadãos estão mais próximos dos media. “Assim haja vontade de os ouvir e de lhes dar atenção.”