A imersão no processo é tão completa que não se sente o tempo a passar. A satisfação é tão grande que, apesar de complexa, a tarefa é feita com facilidade. O foco é tão absoluto que se bloqueia qualquer voz crítica que exista dentro de nós. O flow - ou estado de fluxo - é uma das experiências mais recompensadoras que podemos ter e leva-nos a melhores resultados.
É sentada no sofá de sua casa, em Londres, com o computador no colo, que Gabriela Ruivo escreve. Foi ali, à noite, depois dos filhos adormecerem, que, palavra a palavra, ao longo de muito tempo, criou o romance “Uma outra voz”, vencedor do prémio LeYa, em 2013, e muitos dos títulos que se lhe seguiram, como “Aves migratórias” (2019), “Espécies protegidas” (2021) e “Uma mulher de palavra” (2022). “Sento-me à mesa quando estou a trabalhar noutros projetos ou a rever ou editar o que escrevi, mas – é curioso – sentada no sofá, o processo criativo é mais espontâneo, talvez porque me sinto mais relaxada”, explica a autora.
O seu ofício como escritora é encontrar as palavras certas, mas confessa que tem dificuldade em encontrá-las para descrever o que acontece quando fica imersa na escrita. “É uma experiência subjetiva muito difícil de definir”, admite. “Um mistério.” A fase inicial de criação literária, em que verte as suas ideias para o papel, sente-a “como entrar num quarto que existe na nossa cabeça onde está a história”, “estar noutro planeta” ou “passar para outra dimensão.” Nesses momentos, perde a noção do tempo. “Acho que não duram muito. Talvez uma hora? Duas? Não sei, é curioso porque realmente não tenho noção do tempo.”
O relato que Gabriela Ruivo faz do seu processo criativo corresponde à descrição clássica da experiência de fluxo ou flow. O termo foi desenvolvido por Mihaly Csikszentmihalyi, (1934 – 2021), um psicólogo de origem croata, que, durante mais de 40 anos, tentou perceber o que torna as pessoas felizes na vida de todos os dias. Através de milhares de entrevistas – de início sobretudo com escritores, pintores e compositores – observou que eles descreviam os momentos de criação como um estado de êxtase e de mergulho numa realidade alternativa. Mencionavam também sensações invulgares como distorções na perceção de tempo ou espaço e uma sensação de se esquecerem de si próprios, o que os levava a não sentir cansaço ou fome.
Csikszentmihalyi percebeu mais tarde que estas perceções alteradas acontecem quando estamos tão focados no que estamos a fazer, que não sobra capacidade de atenção para nos monitorizamos a nós próprios. Este estado de satisfação e imersão na tarefa é também frequentemente descrito como um fluir (flow) espontâneo e sem esforço – o que originou o seu nome.
O estado de fluxo não acontece só com artistas durante o seu processo criativo. Está ao alcance de todos, apesar das circunstâncias em que ocorre não serem iguais. “O flow pode acontecer enquanto pintamos, cozinhamos, escrevemos, caminhamos, conversamos, apresentamos, sendo absolutamente essencial à manutenção da motivação”, reflete Catarina Ferreira, psicóloga e coordenadora executiva do curso Mindfulness e Comunicação Consciente, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa. “Quando uma atividade motivada intrinsecamente é percecionada como ajustada ao nível de competência, num grau de desafio adequado, é provável que se converta numa experiência de flow.”
Objetivo: não pensar demasiado
É sábado e Pedro Almeida passou a manhã e parte da tarde a ver competições desportivas, umas em direto, outras em diferido. Não é só prazer, é trabalho: o docente do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida e psicólogo do desporto e da performance acompanha atletas, treinadores e dirigentes desportivos, intervindo no treino de competências psicológicas, monitorização de comportamentos, pensamentos e emoções, e também em situações de fragilidade. Fundou e dirigiu durante 25 anos (de 1994 a 2019) o departamento de psicologia do Sport Lisboa e Benfica e, agora, faz este trabalho individualmente, o que o leva a muitas horas de visionamento de competições, para observar a performance dos profissionais que acompanha.
No desporto, o estado de flow é também muito referenciado e, segundo o psicólogo, “acontece quando a tarefa está aprendida – o que representa muitas horas de treinos – e é possível um grau de automatismo na execução tão elevado que o atleta está a deixar-se guiar por imagens, sem pensar no que está a fazer”. Relata dois casos recentes: uma surfista que acompanha que continuou a ‘fazer ondas’ até muito depois de terminada – e ganha – a prova; e um nadador que, da competição em que esmagou o seu recorde pessoal, praticamente só se recorda do momento em que saltou para dentro de água. “Quando perguntamos aos atletas como é que se sentiram durante a prova, há uma dificuldade imensa de recordarem o que quer que seja. Porque a experiência de flow, de facto, pelo seu elevado grau de imersão, apresenta-se quase como um estado alterado de consciência”, resume Pedro Almeida.
Para alcançar este estado de fluxo, defende o psicólogo, é necessário, em primeiro lugar, que “o atleta compreenda as suas próprias mecânicas mentais, nomeadamente, pensamentos que estão a mais e bloqueiam o processo”. Por outro lado, o que mais frequentemente impede o flow de acontecer são os mecanismos de análise, como dissecar um erro cometido ou uma comparação com um adversário. “Se o atleta começa a analisar o seu desempenho durante a prova, isso funciona como um travão: é como ir a acelerar numa autoestrada e, de repente, ser encostado para uma operação stop. Isso interrompe a imersão e estanca o automatismo. A regra de ouro é: durante a performance, não se analisa a performance. Isso é para depois.”
Esta é uma regra que Gabriela Ruivo segue intuitivamente: durante a escrita, não analisa a escrita. Isso vem depois. Quando se senta para escrever tem uma ideia, mas, durante o processo criativo surgem outras em catadupa que, muitas vezes, fazem a história ganhar uma vida própria. Para isso acontecer, precisa de estar sozinha e em silêncio e precisa de desligar alguns pensamentos, sobretudo os da voz crítica interior. “É preciso entrar num estado em que não se quer saber de pormenores. Não interessa se a frase está certa ou se o sujeito está a bater com o verbo. É preciso desligar disso, deixar só passar para o papel o turbilhão de ideias. Às vezes, há uma parte de mim que diz ‘isto não está muito bem’. Mas é preciso responder-lhe: ‘Agora segue, deixa estar assim: isso é para outra fase, a da revisão e edição’.”
Flow para todos
“Nunca sei se vou conseguir escrever o livro que tenho na minha cabeça, se vai resultar”, reconhece Gabriela Ruivo. Mas quando está a escrever não pensa nisso. “E apesar de ter muitas ideias, sei que tentar fazer tudo de uma vez não resulta: hoje trato de um bocadinho, amanhã de outro. Como se estivesse a fazer um puzzle.” Estas são duas condições essenciais para entrar em flow: um foco no processo, não no resultado final, e metas claras dentro da tarefa que está a ser feita.
E pode este estado ser cultivado? Pode. Implica, em primeiro lugar, descobrirmos quais são as atividades que sentimos como intrinsecamente gratificantes, ou seja: as que não vemos apenas como um meio para atingir um fim, mas como um processo que valorizamos em si próprio. E pode ser quase tudo: jardinar, ler, pintar, escrever, praticar desporto, tocar um instrumento musical. Cozinhar, por exemplo, pode ser entediante para quem o vê como uma forma de ter uma refeição para comer, mas pode gerar um estado de flow para quem gosta de cozinhar e se foca no que está a fazer.
Depois, além da tarefa estar ajustada às nossas características e preferências pessoais, deve estar ajustada às nossas capacidades. “Se sentimos que o desafio é demasiado alto para o nosso nível de competência, é provável que desenvolvamos receio ou stresse; se o desafio é percecionado como demasiado baixo para o nosso nível de competência, é provável que sintamos aborrecimento ou descontentamento”, sintetiza a psicóloga Catarina Ferreira. “É no cruzamento perfeito entre uma tarefa com um nível de desafio adequadamente elevado e um nível de competência adequado, numa experiência que aparentemente coloca em uso as nossas forças e virtudes, que há uma alocação ótima da atenção, portanto uma total absorção, que explica a motivação e sustenta o sucesso.” Por outro lado, a atenção – uma variável essencial ao estado de flow – é uma competência treinável, nomeadamente através da prática de mindfulness.
“A nossa vida é – ou deveria ser – uma busca constante pelo que, para cada um de nós, se traduz em flow”, considera a psicóloga. “É nessa experiência solene da vivência humana que estamos realmente presentes, absortos no momento, a usar o que temos e sabemos de melhor, numa atividade suficientemente estimulante para nós. O estado de flow medeia a relação entre nós e o nosso sucesso.” E também entre nós e a nossa felicidade.