Fernando Daniel. A estrela dos palcos continua a ser o Nando de Estarreja

Tirou as cordas da primeira guitarra para escrever as notas e voltou a colocá-las no sítio. Aprendeu tudo sozinho. A infância foi dura e a música salvou-o. A escola, a metalomecânica e o turismo, os jogos da bola, a banda e os bares, os concursos e a carreira (desfiar de memórias em Estarreja, onde cresceu). Tudo suado, nada dado. Tem um novo disco, o que explica o visual retro, com dois volumes (o primeiro é lançado dia 26 deste mês). Está a construir estúdios, salas de ensaio, uma escola de cariz social. O Nando de casa é o Fernando da televisão. Teimoso, genuíno, brincalhão.

Jogava à bola no recreio da escola da Póvoa de Cima, em Estarreja, nos intervalos das aulas, postes de basquetebol aproveitados para balizas, rapazes no futebol, meninas na macaca. As bolas rompiam-se ou perdiam-se num chuto mais longo, havia alternativa, garrafas de água com areia ou terra dos canteiros das flores. É como se fosse hoje. A garrafa vinha pelo ar, medo da tampa, desvio, cabeçada na trave. “A fugir de um galo, rachei a cabeça”, recorda Fernando Daniel nesse mesmo pátio. Sangue, hospital, dois pontos, pouco choro. Era miúdo e queria ser jogador de futebol.

Chegou a esta escola na terceira classe, tinha feito os dois primeiros anos da primária em Salreu, em Estarreja. A irmã Mónica levou-o no primeiro dia, adeus rápido, ele a vê-la a afastar-se pelo gradeamento sem se virar, ele com lágrimas presas por um fio. A professora com ele, era um novo aluno. Conhecia a escola, a família vivia ali perto em casa de uns tios emigrados em França. Bom aluno? Sim, era. “Tinha gosto de abrir os livros, de fazer os exercícios”, responde. Hoje esta escola é um restaurante pedagógico do curso de Cozinha e Pastelaria da Secundária de Estarreja, as salas estão ocupadas por associações locais, culturais e recreativas, a da terceira classe à esquerda no rés do chão, a da quarta no andar de cima à direita. À entrada, lembra-se, a mesa com os lanches preparados pelas contínuas, leite achocolatado para todos, sandes de manteiga, marmelada, queijo ou fiambre para quem não trazia nada, de 15 a 50 cêntimos. “Na altura, tudo parecia maior”, comenta. A escala muda à medida que se cresce. Fernando Daniel, 27 anos feitos quinta-feira, boné, polo, calças com cinto, estilo retro para condizer com o álbum que aí vem (já lá iremos), recua ao passado, visita sítios da infância e juventude, em Estarreja, onde viveu e cresceu. E nós fomos com ele.

Ao fundo, a pré-escola que frequentou, hoje um ATL onde está o sobrinho Simão

Ana Rodrigues, 15 anos, aluna do 10.º ano, está a lavar louça no restaurante pedagógico, vê Fernando Daniel passar pela janela, não quer acreditar, diz aos colegas, respondem-lhe que está maluca, a sonhar. Não está, é mesmo ele. Dali a pouco, a confirmação e a confraternização, conversa, provam-se queijadas feitas pelos alunos, tiram-se fotografias com a turma, alunos e os professores Rosa Correia e Jorge Silva. Ana não esconde a alegria misturada com nervosismo misturado com felicidade. Parece que ainda não acredita que ele está mesmo ali. “Gosto de o ver sempre, aos domingos. As músicas e as letras dele falam um bocadinho às pessoas”, refere.

No 10.º ano, o primeiro concerto no salão polivalente da Secundária de Estarreja, palco feito com mesas da cantina, folhas com as letras escritas, três músicas, Justin Bieber, Coldplay, Paulo Gonzo. Fernando Daniel canta de olhos colados ao chão. Muita vergonha. Corre bem. “A malta gostou e a nossa lista ganhou.” Venceu a associação de estudantes, ficou com o pelouro musical. Nesse polivalente, ali mais ao fundo, recorda, houve concurso de kiwis. Ganhava quem fizesse a maior montanha. Cortavam-se os kiwis ao meio, comiam-se à colher, casca sobre casca para o monte maior. Ganhou e andou com as tripas à volta, uma descarga de vesícula que nunca mais esqueceu.

A turma de Cozinha e Pastelaria no restaurante pedagógico da escola de Póvoa de Cima, onde fez os dois últimos anos da Primária

Quando volta à Secundária, há rebuliço. “Vais atuar, filho?”, pergunta-lhe uma funcionária. Glória Silva, professora de Inglês, está contente com a visita surpresa, recorda a música feita de propósito para um trabalho sobre ambiente, as letras que compunha, pedia-lhe para corrigir o inglês. “Já era um artista, envolvia-se muito. Quando o ouço na rádio, ainda me parece estranho”, confessa.

No 10.º ano, andava a fugir da Matemática, primeiro pela Metalomecânica, depois pelo Turismo. No pavilhão D, estão as oficinas, numa aula, a limar uma peça presa numa fresa, entrou-lhe uma limalha para o olho. Mudou para Turismo, setor em franco crescimento, queria ser hospedeiro de bordo. “Via a oportunidade de continuar a trabalhar no meu país numa área forte”, explica. A música era o plano A, ir para a universidade o B, sabia, sempre soube, que não havia possibilidades financeiras para tirar um curso. A família não tinha dinheiro, pai na construção civil, mãe cozinheira e doméstica, duas irmãs.

Nas oficinas de metalomecânica do 10.º ano, a fugir da Matemática

Na sala de professores, mais agitação, mais memórias, as vezes que foi expulso da biblioteca, mais de cinco, não se calava, fazia barulho. “Sempre fui muito brincalhão, era o palhaço da turma, mas não era o único”, garante. Maria dos Anjos, professora de Informação e Animação Turística, recorda a visita ao aeroporto do Porto. Fernando lembra-se, a turma esperava que a Teresa e a Soraia, as melhoras alunas, fizessem os trabalhos para depois todos copiarem, duas versões diferentes para não parecer tudo igual. Tudo combinado. “Aprendi a ter lata no curso de Turismo”, brinca. Mais beijos, mais abraços. Manuela Afonso, professora de Francês, pede uma foto. “O nosso Nandinho”, diz. “É como a pescada, já lhe chamava artista antes de o ser”, salienta Etelvina Bronze, professora de Português, não lhe deu aulas, os seus filhos andaram com ele na pré. Jorge Ventura, diretor da Secundária, sai do gabinete, fala de autoconfiança, de humildade, do homem que se fez, do pai que já é. “És um artista, tens uma canção muito bonita, lindíssima, dedicada ao teu avô. O exercício da arte diz muito de nós.” A canção é “Melodia da saudade” para o avô Aníbal, não de sangue, mas de carne e alma, de tudo e tanto, um pilar da sua vida, um porto de abrigo que já partiu. “A comunidade tem orgulho do Fernando”, sublinha o diretor.

A um canto da escola está o piano vertical de madeira castanha que pediu para usar num videoclipe. Era sábado, escola fechada, o pai e o tio levaram o piano para a carrinha, transporte difícil, um peso tremendo, muito suor, viagem até às dunas de São Jacinto, tapete na areia para o piano deslizar. Muita trabalheira, gravação feita, e o vídeo, revela, nunca chegou ao YouTube.

Na sala de professores da Secundária de Estarreja, recordam-se as expulsões da biblioteca, as cantorias

Pelo meio, o Ciclo Preparatório, do 5.º ao 9.º noutra escola, o primeiro namorico no 6.º ano com rapariga mais velha, do 9.º, deixava-lhe rosas no cacifo, era romântico, “romântico dramático”, corrige, mas nem um toque de lábios. O primeiro beijo acontece no 7.º ano com outro amor, uma outra menina.

As origens, a família, o amor

Bola no pé na rua, na escola, no clube da terra. No campeonato nacional, era do emblema que ganhava até àquele dia. O avô António oferece-lhe a camisola 10 do Deco, azul do Porto, no dia do seu décimo aniversário. Demasiada simbologia, nunca mais trocou de camisola, é do F. C. Porto até hoje.

Aos 10 anos, recebeu uma camisola azul e branca. Ficou adepto do F. C. Porto até hoje
(Foto: DR)

Jogou seis anos no Clube Desportivo de Estarreja, iniciados e juvenis, várias posições. Conhece os cantos à casa, ali havia umas bancadas de pedra, o campo de treinos está no mesmo lugar. Manuel Oliveira está no bar do clube, vizinho de casa, lembram-se do cunhado de Fernando a assar sardinhas, o toque que Fernando gravou para o telemóvel da mãe com uma música de Tony Carreira (e que o embaraçava em público quando tocava), as brincadeiras na rua, a bola, a bicicleta, o castigo de ir buscar a bilha de gás. “Já cantava bem”, realça Manuel Oliveira, confessando que a mulher, Amélia, chora sempre que o vê na televisão. Jorge Ferreira, o primeiro treinador, também ali está. “Dava muito pau”, conta.

Manuel Oliveira, vizinho de casa em Estarreja, no clube da terra

Treinos três vezes por semana, chegou a capitão da equipa. “Era o porta-voz do que o treinador pedia, gostava de comandar, puxava pela malta, levantava o moral.” Um dos melhores golos foi de livre direto, não estava a contar, por baixo da camisola tinha uma t-shirt com uma imagem da ecografia de Diego, o sobrinho ainda na barriga da irmã Cláudia. Golo, festejo, o pai a gravar o momento. Estava combinado, correu bem, o golo aconteceu.

Parece coincidência, demasiada coincidência. Fernando Mendoza, seu amigo do início dos inícios, agora elemento da sua banda, aparece aqui, no bar Saramago, centro de Estarreja, sem nada combinado. E mais recordações. Tocaram aqui algumas vezes, primeiro a três, depois a dois, pequenas plateias, covers. Os dois eram a banda “Saints of May”. “Bons velhos tempos, passa tudo muito rápido”, constata Mendoza. Tratavam de tudo, andavam com as coisas às costas. “Tivemos uma internacionalização, fomos a Coimbra”, ironiza Mendonza. Houve um concerto ainda mais longe, em Vila Nova de Milfontes, costa alentejana, oito horas de comboios para lá chegar. “Tínhamos hotel, já parecia uma cena do outro mundo”, diz Mendonza. “Na altura, era incrível”, acrescenta. Chegaram a ter dois concertos no mesmo dia, um no multiusos de Estarreja, outro num bar em Vale de Cambra. Era como se podia, a improvisar, a cantar com microfones de entrevistas pousados em mesas altas, a mesa de som ao lado da arca dos gelados. Ainda fizeram o programa “Saints radio show” na rádio da Murtosa.

Fernando e Mendoza, amigos de sempre, tiveram uma banda, atuaram em bares, hoje continuam a tocar juntos

Não muito longe daqui, no bar da Tomázia, conheceu Sara, sua namorada. Levanta a mão, sorri, pisca-lhe o olho. Vê mal ao longe, pensa que ela é uma colega, ela fica confusa, quem é aquele miúdo, não há conversa, só que é o começo de alguma coisa. Ele pede-lhe amizade nas redes, ela aceita, palavra puxa palavra, conversas à distância pela madrugada dentro. O amor. Pede-a em namoro no teleférico de Lisboa, decorado com pétalas de rosas, ajoelha-se. Tudo como deve ser.

Vestiu a camisola do Clube Desportivo de Estarreja, nos iniciados e nos juvenis

O sobrinho Simão está no ATL da Póvoa de Baixo, agora Pestes e Pestinhas, antes Joaninha, a pré de Fernando Daniel. Por fora, tudo praticamente igual, por dentro tudo diferente. Simão tem nove anos, gosta de jogar futebol, em várias posições, mais recuado, mais avançado, ora mais ao ataque, ora mais à defesa. Depois da escola, mais um dia no ATL situado numa zona tranquila, parque à volta. O tio vai ganhar o “The Voice Kids”? “Não sei”, responde. Mónica, a mãe, irmã mais velha de Fernando, vem buscá-lo. É uma irmã babada do irmão caçula, também com jeito para a voz, chegou a ter uma banda de música popular, era a vocalista. Gaba a resiliência e a teimosia, o profissionalismo, o empenho e a dedicação do irmão. “Tem objetivos bem definidos, é bastante teimoso, ouve um não e não se deixa ficar, e isso revela muito a personalidade dele”, adianta. Pede opiniões, escuta, mas segue o seu caminho. Ele confirma daqui a pouco. “Acabo por levar sempre a minha.” É uma casa cheia, onde está, há alegria, paródia. “Tem muito sentido de humor, é muito cómico, muito brincalhão”, refere Mónica. Desde o primeiro “The Voice”, o Nando de casa é o Fernando que vê na televisão. “Aquilo que mostra no programa é ele. Estou a ver o Nando que vejo em casa, é genuíno, e fico muito orgulhosa”, confessa. As raízes estão lá. “Independentemente do percurso, sabe para onde quer ir e não se esquece de onde veio.”

A infância foi pesada. Aos 10 anos, o pai tem um acidente de mota, um AVC enquanto conduzia, ficou em coma, demorou a recuperar. A notícia cai de forma violenta no seu corpo de criança. Aos 12, a separação dos pais, a mãe vai para o Luxemburgo com outro homem, promete vir buscá-lo, não vem. A espera e a desilusão na sua cabeça de criança. Aos 13, uma depressão, medicação durante meio ano. É a música que o salva. “Era um escape, sentia que me dava uma certa paz, um certo ânimo, esquecia os problemas.” Aprende sozinho, muita Internet e muito YouTube, não há dinheiro para uma escola de música. A irmã Cláudia oferece-lhe a primeira guitarra e Fernando, com aquela relíquia nas mãos, tira as cordas, escreve as notas a branco, volta a colocar as cordas.

O sobrinho Simão e a irmã Mónica, que tanto orgulho tem no caçula

A música, sempre a música. “Sentia que não era só eu que estava a investir na música, a música também estava a investir em mim.” E se ela falasse, sabia exatamente o que ouviria: “Investe um pouco mais em mim que vai valer a pena”. Tem valido. “A música salvou-me, mas há mazelas que ficam”, admite. Feridas guardadas numa gaveta que, por vezes, abre e remexe. Perdoa, mas não esquece.

Antes de terminar o liceu, dois concursos, duas edições seguidas do “Factor X” em 2013 e 2014. Não ganha, mas não corre mal, conquista uma certa visibilidade ali à volta, alguns concertos pelos bares da zona. Acaba o secundário, não há dinheiro para continuar a estudar, arranja trabalho numa fábrica de arcas e frigoríficos, na parte de armazém e logística, cargas e descargas, entretanto procura algo mais estável, consegue emprego numa loja de rações e utensílios para animais no shopping de Ovar. Decide ir ao casting do “The Voice” de 2016, dinheiro contado para ir de comboio de madrugada, era mais barato, almoçar, voltar. Vira as quatro cadeiras com a canção “When we were young” de Adele. O vídeo vai para o YouTube, atinge um milhão de visualizações em poucos dias, o momento torna-se viral, comenta-se numa rádio do Japão, na imprensa inglesa, o “El Mundo”, em Espanha, escreve que está encontrado o próximo artista a encher estádios, está aqui, no país ao lado. O vídeo vai por ali acima, está agora nas 118 milhões visualizações, o recorde de todas as provas cegas de todos os programas “The Voice” em todo o lado. Tem 20 anos, todos os sonhos do Mundo. “Era só um miúdo que fazia uns poemas musicados”, rebobina. Não cruzou os braços. “Depois do programa, tive de escavar novamente.” Vida de artista.

A família: o pai, Fernando, a mãe, Maria do Céu, e as irmãs, Cláudia e Mónica
(Foto: DR)

Na primeira digressão, com o álbum “Salto”, deu cerca de 150 concertos em dois anos. Aos 21 anos, é o artista mais ouvido na rádio. Venceu, duas vezes, o prémio para melhor artista português da MTV. No ano passado, o recorde de sempre com 40 mil pessoas na Fatacil, no Algarve, destronando Tony Carreira. E outro recorde de 22 mil espectadores na maior enchente na Agrival em Penafiel, em 2022. Os êxitos, a agenda cheia, o convite para um concerto intimista e reservado para Cristiano Ronaldo. Apesar de tudo, um reconhecimento que não chega, um percurso que não sente valorizado pelo meio. “Não sinto esse respeito por parte da indústria”, confessa. Como se passasse à margem.

As canções e suas histórias

Tem um novo álbum, o quarto, “V.H.S – Vol.1”, imagem retro e vintage, cores esbatidas, capa-retrato com uma handycam, cabelo pintado de louro. Construiu um boneco, não quer ser sempre igual, daí o novo visual. Mas V.H.S não é Vídeo Home System como se poderia supor, é uma frase em latim, daí os pontos a separar as letras, que será revelada no concerto do Altice Arena a 14 de outubro, dia de apresentação do novo trabalho.

O videoclipe é divulgado a 25 de maio nas redes sociais e no seu canal de YouTube. O novo álbum, já em pré-venda, é lançado a 26 de maio – dia em que tem concerto nas Festas do Senhor de Matosinhos, a 3 de junho está nas Festas da Cidade da Marinha Grande e 7 de junho na Feira de Artesanato & Gastronomia da Mealhada, a 11 de novembro, mais uma apresentação do álbum no Super Bock Arena, no Porto. São dez canções que contam muito de si, a música como casa, o amor, uma canção para os fãs, e “Rama, ó que linda rama”, a cantiga que a filha ouve para adormecer. É um álbum com dois volumes, o segundo sairá no fim de novembro ou início de dezembro.

Capa do album “V.H.S – Vol.1”. Mas V.H.S não é Vídeo Home System, é uma frase em latim que só será revelada no concerto do Altice Arena, a 14 de outubro

No processo criativo não tem uma fórmula, um método, primeiro a melodia, depois a letra, é como acontecer, há vezes em que escreve à mão, outras em que toma notas no telemóvel. Fernando Daniel, cantor, músico, compositor, não quer ser mais um artista a contar histórias com outra imaginação. “Pego nas minhas histórias e dou-lhes um cunho mais geral”, partilha.

Está prestes a voltar à estrada, serão 18 pessoas, mais coisa menos coisa na equipa, uma segunda família, são todos iguais, não faz distinção. Antes de entrar em palco, o ritual de sempre, todos juntos, a palestra sobre a importância daquele momento. “Música é, primeiro, sentimento, o meu trabalho é conquistar pessoas.”

Fernando Daniel está a construir os seus estúdios e uma escola de música com cariz social no Furadouro, Ovar, onde mora, nas antigas instalações da discoteca Pildrinha. Comprou o edifício, desenhou a planta, a obra está em andamento, quer tudo pronto em novembro.

Comprou o edifício de uma antiga discoteca que está a transformar em estúdios e numa escola de música com cariz social

Uma escola para crianças e adultos para ensinar voz, piano, bateria, guitarra e baixo, paga-se o que se puder, os escalões escolares serão uma triagem. “O propósito da escola é servir.” Criar talento, trabalhar para a região. “Não me importo de ser esse empurrãozinho”, diz.

Entra e explica como tudo ficará, planeou a divisão dos espaços ao milímetro, há material amontoado à espera de ser colocado no sítio, logo que a parte da eletricidade esteja pronta. À entrada, do lado direito, ficará uma cozinha com mesas, uma zona de lazer com bilhar, mesa de pingue-pongue, ginásio à esquerda. No compartimento seguinte, uma espécie de montra de instrumentos e um lounge com sofás e televisão. Uma porta e os estúdios, sala grande e ampla para permitir gravação de orquestras, sala de produção, sala de realização de vídeo, sala de captação para dobragens e spots publicitários, salas de ensaios para alugar, a escola de música, lavandaria, casas de banho, um corredor que será um museu com os prémios e um mural para o avô Aníbal, um espaço que ainda não sabe bem o que será, ou a casa do caseiro que cuide de tudo ou um lugar para músicos e técnicos pernoitarem. O exterior será branco para depois ser pintado por artistas urbanos.

É um eterno insatisfeito, sempre a escavar, cantar em inglês não está fora dos seus planos, sonha com uma digressão internacional. “Sempre a trabalhar, sempre insatisfeito, quero sempre mais”, assinala “Tenho tempo para descansar quando morrer. Gosto tanto de viver, aproveitar é agora, quero aproveitar para fazer tudo o que posso e deixar o meu legado.”

Sara Vidal, namorada-mulher, mãe da sua filha, Matilde
(Foto: DR)

“Sou muito exigente para mim mesmo e esqueço-me que não temos de ser todos iguais”, reconhece. O que o deixa feliz? “Ver as minhas pessoas felizes.” O que o incomoda? A falta de brio. Admite que perde a paciência no trânsito. E gosta de cozinhar, não com regularidade. “Por isso é que digo que os meus cozinhados são exclusivos”, atira. Cozinha a olho, arrisca, filho de mãe cozinheira, tem jeito, garante, para massada de peixe, frango com manga e caril, arroz com frutos secos. É bom garfo, gosta de massada de peixe, sushi, picanha, comida indiana, tacos mexicanos. Tudo menos fígado, iscas nem pensar.

E como se movimenta na política? Algum posicionamento partidário? Não, nem por isso. Concorda com umas ideias da Esquerda, com outras da Direita, não vai aos extremos, não dá muito crédito à classe, considera que não há um rumo, um programa, ainda assim, mantém a esperança que alguma coisa mude, parece-lhe difícil, tem votado em branco nas eleições. “A política é cada vez mais para os políticos e cada vez menos para o povo.” Daqui para o tratamento dado à cultura é um pulinho, pouco investimento no que é de cá, muita aposta no que vem de fora. “Não se valoriza o que há cá dentro, não por falta de talento, mas pela facilidade com que se vai buscar lá fora”, afirma.

O talento, a estrelinha de artista

Fernando Daniel é mentor do “The Voice Kids” em exibição na RTP1 aos domingos à noite. Ganhou duas edições, rumo ao tri, quem sabe, as galas começam a 4 de junho. Mais um dia de ensaio com os seus 15 concorrentes nos estúdios de Alcochete. Tem os minutos contados (chega às 19 horas do Coliseu de Lisboa para onde terá de voltar para cantar nos prémios Play, da música portuguesa), mas não se nota, enquanto ali está, ali está de corpo e alma, atento a tudo, melodias e harmonias, vocalizações e refrães, quem começa e quem acaba, quem sobe e quem desce um ou mais tons, o que for necessário.

Mais um ensaio com os concorrentes do “The Voice Kids”, ajustes e combinações

As suas mãos acompanham o crescendo das músicas, o seu pé direito bate o ritmo. Raramente se senta na sua cadeira, ouve cada atuação, cada concorrente, a solo e em conjunto, dá indicações e orientações, volta e meia pede à banda para repetir uma parte. Os miúdos chegam em grupos de três, ocupam o palco, já estão com a roupa da batalha. Canta-se, repete-se, ouvem-se recomendações, fazem-se ajustes. “Se te sentires desconfortável, fazes a harmonia normal.” “Respira bem antes.” “Não façam nada que não está combinado.” “Não é para fazer igual ao original.” “Treinem juntos para estarem o mais ligados possível.”

A banda acompanha, a coreógrafa estuda passos e olhares, mais juntos no refrão, mais afastados a solo, Fernando Daniel repete a tática do microfone. “O microfone sempre perto da boca, a um dedo de distância da boca quando cantam sozinhos.” Nada de dedos a tapar o microfone e exemplifica para que percebam a diferença. E mais indicações. “Sentes a falta de um acorde conclusivo para não ficar no ar?” “Têm de estar sempre juntos, começam juntos, acabam juntos, tem de ser uma cena.”

Uma nova revisão na véspera da gravação de novo programa nos estúdios em Alcochete

O dedo para cima é para subir, o polegar em riste é um OK. Pelo meio, arranja o laço de um concorrente, nivela o banco do piano de outro candidato, responde a perguntas sobre os próximos concertos, dá autógrafos e tira selfies. Ensaio terminado, menos de duas horas depois estará nos prémios Play, no dia seguinte volta a Alcochete para rever, pela última vez, cada atuação antes da gravação.

São crianças, miúdos, há sonhos, há expetativas para gerir. “Mesmo que seja para errar, para desafinar, precisam de saber que estão a tentar.” É o que lhes diz. É preciso autenticidade, é preciso sentimento. A voz treina-se, a alma de artista é outra coisa. “Não se cria um artista, já se nasce artista, com aquela estrelinha de artista.”

Matilde, a filha, faz hoje um ano e cinco meses. A paternidade tornou-o mais sensível, mais afetuoso. Quer transmitir à filha que nada cai do céu, que é preciso suar para dar valor ao que se conquista. “Nada do que tenho foi dado, foi tudo suado e é merecido.”

O corpo tatuado, cada desenho com o seu peso, a sua simbologia

Quando era miúdo, e tentava acertar na passarada com as fisgas, perguntava aos avôs por que não se matavam as andorinhas. “As andorinhas são pássaros de Deus”, diziam-lhe. Tatuou andorinhas na mão. Tem o corpo tatuado, mãos, braços, ombros. Um M de Matilde, um coração desenhado tal como é dentro do peito, as duas irmãs Cláudia e Mónica, o deus da música Apolo, a hora de nascimento da filha, a cruz de Caravaca com uma santa em homenagem ao avô Aníbal, uma espada, uma carpa que significa prosperidade, três estrelas que são três avós, uma casa chinesa símbolo de prosperidade no lar, um microfone, uma âncora, um mapa-múndi, uma pena que representa o sonho, o signo leão da mãe, o olho azul do pai, uma borboleta porque gosta de borboletas, um lobo, animal que reúne uma alcateia. Na pele, tantas histórias cravadas, tantas vidas sentidas.