Joel Neto

Faremos canadas


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Um dia, com as pantufas calçadas e um chá de tília na mão, hei-de pôr um ar saudoso e contar aos netos: “Comprei a minha primeira pick-up ia fazer 49 anos…” Mas, por ora, só quero despachar este texto, almoçar de uma dentada e saltar para cima do “camião” – os americanos chamam-lhe “camião”, e é ainda mais másculo – para ir às compras ao supermercado.

Certo, não vou à caça com os amigos nem recuperar um cavalo fugido: vou só comprar água termal e creme cicatrizante para o rabinho do bebé. Mas, já agora, aproveito e trago canjica e feijão, que quero fazer uma catchupa para os primos (com carne de porco e chouriços). E a ver se, no regresso, ainda passo no Luís Estofador, que ele já deve ter acabado a cobertura para a jaula dos cães. Chega de virilidade?

De resto, ainda ontem transportei oito sacas de cimento, dez de areia e dois bidões de pedras do mar, tudo de uma vez. A pick-up encheu o peito, olhou em frente e lá seguiu, direitinha como um fuso, Canada da Luz acima. No fim, na ladeira mais empinada, ainda havia um reboque a atrelar o carro de uma senhora aflita – engatei uma segunda, fiz um aceno com o chapéu e contornámo-los com bonomia.

É uma Ford Ranger cinzento-metalizada, de linhas clássicas e sólidas, com uma cabina que nos acomoda a nós e ao ovo do Artur. Não tarda perfará a bonita idade de 18 anos. Somos dois velhotes, talvez. Mas olho-a estacionada aqui em frente, repousando de mais duras batalhas, e pergunto-me: como é que esperaste até aos 49 para comprar uma pick-up? Como é que viveste uma década na ilha sem uma pick-up?

Uma pick-up é um instrumento tão fundamental para quem vive no campo como um conjunto de pinças de churrasco e uma lavadora de alta pressão. Desde que tenho uma pick-up, ainda não parei de transportar coisas de um lado para o outro. Enquanto não a tive, passei a vida a cravar ajuda aos amigos com pick-ups, a pedir emprestada a pick-up da Junta, até a contratar fretes a vizinhos desempregados com pick-ups estacionadas à porta.

Vem o fim-de-semana, a Marta põe-se a carregar coisas no automóvel e, quando dá por si, já eu tenho a pick-up pronta. Chega-se o fim da tarde, hora de ir passear os cães ao Monte Brasil, e os próprios bichos saltam para a caixa da pick-up – onde agora até têm de viajar presos, porque ao segundo dia a Colette atirou-se lá de cima, em andamento, e a Marta só não teve ali o bebé porque este já tinha nascido.

Mal posso esperar por ele já estar crescido o suficiente para irmos fazer canadas. Oh, como o meu filho vai adorar fazer canadas na nossa pick-up… Mas, para já, o momento alto são as terças-feiras, em que tenho de ir gravar um programa à Praia da Vitória. Até vou devagar, para prolongar a viagem.

No rádio ecoa um podcast do “The New York Times”, ou talvez do “The Guardian”. À direita, a Serra do Cume contempla placidamente o pôr-do-sol nas minhas costas. Caem os primeiros pingos de uma chuvinha que tanto pode parar já como prolongar-se durante uma semana – e eu ali vou, muito sério e nostálgico, na minha pick-up como numa pequena fortaleza.

E agora aqui estou, aborrecido, a escrever esta crónica e a pensar que podia ter deixado ao menos as pedras do mar para hoje. Escuta, Marta, eu não tinha de ir não sei onde antes do almoço?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)