Margarida Rebelo Pinto

Falta de noção


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Não foi com espanto que dei pela existência de uma nova profissão, os “leitores de sensibilidade”, assim denominados pela língua inglesa, com tradução literal para o português. O seu trabalho consiste em encontrar palavras ou expressões ofensivas, passagens equívocas ou implausíveis, eliminando-as ou substituindo-as por outras, mais politicamente corretas, como se uma obra literária fosse um móvel de sala que é possível expurgar para matar o bicho da madeira. O tema não é novo e alastra para os mais variados campos artísticos, numa tentativa de “corrigir” o passado, como quem branqueia uma fronha de mofo mergulhando-a em lixívia. E deste modo se alteram textos originais, se derrubam estátuas e se violam os direitos básicos da liberdade de expressão.

Depois de várias semanas a matutar no tema, não me ocorreu nenhuma ideia mais estúpida e inútil do que a de tentar mudar o passado. Felizmente, escrevo num meio de comunicação que respeita a liberdade de expressão dos seus cronistas, no qual posso usar palavras aparentemente ofensivas como estúpido. O meu editor irá acrescentar ou retirar vírgulas à minha prosa, ou alertar-me caso exista uma repetição de vocábulos, para que eu faça as alterações. O fantasma do lápis azul da censura paira como um erro que ninguém quer voltar a cometer. Pelo menos na imprensa, porque na literatura, não estamos muito longe das atrocidades cometidas nos séculos da Inquisição.

A tentativa de alterar obras de ficção é profundamente grave e é também sinónimo de uma sociedade doente. A ficção é o país dos escritores. Citando o José Eduardo Agualusa, a realidade é o que acontece na ficção quando acreditamos nela. A imaginação é uma ferramenta fundamental para a literatura, a música, a pintura, ou a escultura. Por mais horrendos que os quadros de Bosch sejam, têm o propósito de nos alertar para o Mundo como ele o via, sendo também reflexo dos tempos em que viveu. Nunca esquecerei os pesadelos em criança, depois da primeira visita de estudo ao Museu de Arte Antiga, perante o caos em “As tentações de Santo Antão”, o tríptico que descreve a mais recorrente temática do pintor que é a luta do homem contra o mal. É sinistro, mas dá que pensar, e é com a sombra da condição humana que podemos aprender. Editar o passado é tão estúpido e ingénuo como acreditar que podemos entrar na máquina do tempo e mudar o futuro mexendo no que já aconteceu.

Mundo estranho este em que estamos a permitir que a Inteligência Artificial se infiltre na nossa existência, descurando as consequências inimagináveis da sua utilização para fins errados ou maléficos. O ChatGPT é apenas uma entre milhares de ferramentas de Inteligência Artificial que cria todo o tipo de conteúdos de texto e de imagem. Para quem quiser saber o que aí vem, basta consultar o diretório com todas as ferramentas de IA lançadas diariamente, o futuropedia.io.

É nesta vertigem de um futuro que se desenha de forma imprevisível e assustadora que alguns andam preocupados em alterar o passado. O mal existe, sempre existiu, nos quadros de Bosch, nas perseguições da Inquisição, nas guerras e nos conflitos, no tráfico de mulheres e de crianças, é um traço inerente ao ser humano. Tentar branquear o passado é só mais uma forma de o perpetuar. Só o presente está nas nossas mãos. Ainda.