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Estamos viciados no telemóvel. Porquê?

Fotos: Ilustração: Bárbara R.

Há uma linha vermelha para sabermos quando a utilização é excessiva?

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Parece impensável, no Mundo ocidental, viver sem aparelhos eletrónicos sempre à mão. Qual é a linha que define o que é ou não é convivência saudável com a tecnologia? Como funcionam as aplicações móveis para nos levar a ficar "viciados"? O teste, os sintomas e as consequências, para ficar a saber se o uso que faz do telemóvel é excessivo.

Por dia são, em média, duas horas e meia. O que significa que, numa semana, são quase 18 horas. Se fizermos as contas a um mês, são mais de 75 horas. Isto, em média. Há casos em que estes valores são ultrapassados. Em muito. Podíamos estar a falar do tempo que perde diariamente em deslocações, do tempo que passa com a família ou até quanto demora em atividades domésticas. Mas não. Trata-se dos valores padrão de utilização de um telemóvel. Vários estudos referem que, em média, pegamos no smartphone 150 vezes por dia. Provavelmente, na maioria das vezes sem nos darmos conta. Já entrou no nosso padrão de hábitos.

Por si só, falar do tempo que se passa agarrado ao telemóvel não quer dizer muito. O problema são as causas que levam a esse apego e as consequências que hão de vir. “Do ponto de vista emocional e comportamental verificamos que não se tratam de escolhas conscientes”, começa por explicar a psicóloga Marta Calado. “Somos reféns da forma como o telemóvel e a Internet funcionam.” Mas como é que nos tornamos reféns? Será que temos consciência disso?

Vamos por partes. Primeiro, questionámos a especialista em psicologia Marta Calado se a preocupação em estar a fazer um uso excessivo do telemóvel tem chegado às consultas por parte dos pacientes: “Sem dúvida.” Principalmente desde a pandemia. “O meu filho está sempre nas redes sociais ou no tablet.” “Toda a gente à minha volta está distraída a toda a hora.” “Não consigo conversar com o meu companheiro sem ele ter o telemóvel na mão.” O tema, confirma a profissional, tem estado na ordem do dia.

Telemóvel e sono

E não é só o comportamento diurno que tem sido afetado pelo uso do telemóvel. O psiquiatra Miguel Bajouco destaca que, em consultório, a queixa mais frequente associada a este fenómeno tecnológico é a perturbação do sono. “Fica-se a ver vídeos ou a jogar no telemóvel até adormecer; pega-se no telemóvel a meio da noite para ver as horas e acaba-se a ler uma qualquer notícia que apareceu nas notificações; acorda-se e a primeira coisa que se faz, ainda com o cérebro pouco desperto, é ver o que o telemóvel tem para nós.” Qualquer que seja o comportamento, um destes ou semelhantes, estamos a estimular o cérebro num momento do dia em que não se deve estar alerta.

O profissional do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra esclarece que a associação, por parte dos pacientes, ao uso do telemóvel não é, na maior parte das vezes, consciente, chegando ao consultório com queixas vagas sobre o sono. E mesmo que a ligação entre atitude e consequência ainda não seja compreendida por muitos, Miguel Bajouco afirma que há já “perturbações do sono que estão associadas à utilização exagerada ou inadequada do telemóvel”. E, segundo o profissional, esta é uma situação clínica subdiagnosticada.

Quer seja de dia ou de noite, resume-se a uma questão: “Dificuldade em controlar a utilização da tecnologia”. Então, vamos lá perceber o que leva a esta dificuldade.

“A adição à Internet e aos telemóveis é comportamental, ou seja, diferentes comportamentos produzem uma recompensa a curto prazo que pode levar à persistência do comportamento, apesar do conhecimento das consequências adversas que este pode ter.” Quem avança com esta primeira explicação é Alberto Crego, investigador no Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho.

Até ao momento, prossegue o especialista, “a única adição comportamental reconhecida pela Associação Americana de Psiquiatria (APA na sigla original) é a adição ao jogo de apostas, no entanto, existem outro tipo de comportamentos, como pode ser o sexo, o uso de videojogos ou da Internet”. E, recentemente, o uso dos smartphones, “nomeadamente das redes sociais”.

Considerado um vício?

O impacto do smartphone e das aplicações móveis na vida das pessoas tem tido um destaque tão grande que a própria APA está a considerar uma revisão ao manual de diagnóstico de perturbações, para que o uso das redes sociais possa vir a ser incluído na lista de risco de adição, conta Alberto Crego. O investigador acredita então que é “evidente que o telemóvel e as redes sociais podem ter um componente aditivo-viciante, e é cada vez mais frequente encontrar jovens com usos compulsivos e problemáticos”.

Mas ainda que não seja, para já, considerado no manual de diagnóstico, há já um nome para uma perturbação associada ao telemóvel (ou, neste caso, à sua ausência). Chama-se nomofobia, e é o medo de ficar sem o telemóvel. Este comportamento é assim retratado quando existe uma ansiedade generalizada com a ideia de ficar longe do aparelho eletrónico.

Marta Calado, psicóloga da Clínica da Mente, resume o “poder” do telemóvel sobre nós com a palavra “expectativa”. “Estamos sempre em constante expectativa do que vai aparecer, do que vamos ver, do que está a acontecer. Vemos isso, por isso, no design das aplicações que, ao carregar o conteúdo, apresentam-nos reticências ou traços de carregamento, uma técnica da psicologia do marketing para nos deixar agarrados àquela ânsia do que irá aparecer.” E não há mais uma escolha consciente.

Se no início da Internet os sites onde se podia publicar conteúdo serviam de mero repositório, hoje, as aplicações fazem escolhas de conteúdo por nós. Os algoritmos preveem os nossos gostos e o telemóvel apresenta-nos conteúdo de que, possivelmente, iremos gostar. Marta Calado descreve a situação atual como de “transe mental coletivo”, indicando que as nossas escolhas no telemóvel deixaram, em grande parte do tempo, de ser conscientes. “Estamos a ser marionetas pela forma como estas tecnologias foram pensadas e criadas.”

Quem é que nunca sentiu o telemóvel a vibrar no bolso ou ouviu o toque num som distante quando, afinal, nada aconteceu? Podemos ter-nos sentido a enlouquecer, mas é realmente esse o efeito do telemóvel: que sintamos a falta do seu uso e regressemos ao comportamento. Como?

O funcionamento

Alberto Crego, especialista em neurociência psicológica, lembra que “as substâncias como o álcool, a cocaína, entre outras, promovem a libertação de dopamina de forma artificial”. Dopamina que, “quando libertada em quantidades naturais e através de atividades como o sexo, a alimentação ou o exercício, é imprescindível à sobrevivência do ser humano, já que nos leva a repetir estas atividades”.

Mas, em quantidades elevadas e associada a comportamentos de risco, faz-nos querer repetir uma e outra vez. Recebemos uma vez dopamina, iremos querer mais vezes. E o cérebro associa que, naquela atividade, recebemos dopamina. “No caso do uso de telemóvel e redes sociais, essa libertação de dopamina acontece em doses baixas e por picos, o que nos deixa reféns da utilização contínua e incessante destes dispositivos.” Um vídeo fez-nos sentir bem. Acabamos a ver 20 ou mais.

A este mecanismo de libertação de dopamina, que nos leva a comportamentos repetidos, Miguel Bajouco, psiquiatra, acrescenta ainda que o telemóvel entrou no nosso “mecanismo de hábitos”. “Quando fazemos o mesmo caminho diariamente para o trabalho e, por algum motivo, noutro dia, queremos ir a um local diferente e, distraídos, acabamos no caminho usual. Acontece o mesmo com o telemóvel. Queremos apenas verificar as horas, por exemplo, mas, por hábito, acabamos a verificar as redes sociais ou a confirmar o email.”

O investigador da Universidade do Minho sublinha ainda o reforço social inerente à utilização do telemóvel que propicia, ainda mais, a nossa ligação a este elemento. “A aceitação e o reconhecimento social, que recebemos através dos likes, dos comentários, entre outros, são muito importantes biologicamente para a nossa vida, ainda mais na adolescência, quando a nossa personalidade ainda não está totalmente formada.”

Daí os comportamentos de risco, como as drogas, o álcool, o jogo de apostas, entre outros, sejam mais suscetíveis de levar a comportamentos de adição em idades precoces. E o uso do telemóvel não é exceção.

Segundo Instituto Nacional de Estatística português a população que mais utiliza o telemóvel está entre os 16 e 24 anos de idade. “Por isso, logicamente, nesta faixa etária, é onde ocorre a maior incidência da dependência do telemóvel.” Mas não é uma questão meramente estatística ou probabilística, frisa Alberto Crego, já que “as mudanças neuroestruturais e neurofuncionais, que acontecem no nosso cérebro em idades precoces, predispõem os jovens e os adolescentes à procura de novas experiências, a uma maior impulsividade, a um menor pensamento planeado e controlo das suas atitudes, o qual os faz mais vulneráveis aos comportamentos de risco”.

Os sinais

Há uma linha vermelha para sabermos quando a utilização é excessiva? Miguel Bajouco, psiquiatra, explica que a diferença entre uso excessivo e adição ao telemóvel é ténue, mas há situações que devem servir de alerta. “Utilizar o telemóvel em detrimento de rotinas saudáveis, como, por exemplo, passar a ter uma má alimentação ou alimentarmo-nos em excesso porque estamos a olhar para o telemóvel, não termos uma vida social ativa e saudável, cara a cara, ou não praticarmos desporto, ficando, ao invés, sentados a fazer ‘scroll’. Tudo isto são atitudes que devem alertar para uma utilização errada do telemóvel e que, a longo prazo, além de consequências psicológicas, levam a padrões de vida que predispõem a doenças físicas.”

No caso das crianças, o panorama é ainda mais grave. Miguel Bajouco aponta o crescente diagnóstico de perturbações de hiperatividade. “Ainda que não haja, ainda, uma comprovação direta, é indiscutível que este aumento acontece na geração que tem, desde bebé, acesso ao telemóvel, numa idade em que o estímulo contínuo, como o da tecnologia, é prejudicial para o desenvolvimento saudável da criança.”

Já Marta Calado considera que o telemóvel, pela sua panóplia de funções, acaba “por substituir o nosso raciocínio, a nossa memória, e, muitas vezes, por ser considerado a nossa única companhia”. Quando algum destes factos é pressentido pelo próprio, devem repensar-se comportamentos. A psicóloga acrescenta ainda a questão da obsessão com a doença, um problema a que chama “Dr. Google”. O fácil acesso a informação pode levar-nos a ser, descreve “cibercondríacos”, ou seja, ansiosos com a nossa saúde por excesso de estímulos de informação.

O futuro e as estratégias

E é possível, em plena era da tecnologia, e com um futuro inevitavelmente ligado ao telemóvel e a outros aparelhos eletrónicos que surjam, ter uma convivência saudável com estes elementos? Miguel Bajouco acredita que é um caminho difícil. “Atualmente as pessoas começam a ter noção dos malefícios deste uso excessivo, mas não é por estarmos na posse da informação que tomamos uma ação.” Quantas pessoas não têm aplicações ou ferramentas de medição do tempo ligado ao telemóvel e, ainda assim, perante um número elevado, nada fazem? O psiquiatra realça que a mudança de hábitos é demorada e trabalhosa. Mas possível, principalmente com acompanhamento profissional.

Marta Calado, por sua vez, crê ser possível “recuar àquilo que era a nossa vida antes de os telemóveis ocuparem os tempos mortos”. É possível e necessário, já que “precisamos de tempo para a regeneração do cérebro”. “Estamos numa sociedade constantemente cansada e em stresse porque não conseguimos atualmente parar sem fazer nada, estando apenas presentes, e o estimulo constante do telemóvel impede que o nosso cérebro descanse e se regenere, para que esteja apto para as atividades essenciais.” Para fazer este recuo referido, a profissional de psicologia clínica indica algumas regras a implementar no dia a dia (ver caixa), que vão desde a higiene do sono ao convívio social presente.

“O que queremos no futuro é que as pessoas coloquem em prática a informação que têm e que nem cheguem a ter necessidade de ter uma consulta de psicologia ou psiquiatria por causa do uso excessivo do telemóvel”, resume Marta Calado, que identifica os telemóveis como “bombas de dopamina portáteis”.

Se depois de ler este artigo ficou com dúvidas acerca da utilização que faz do telemóvel ou se quer perceber melhor qual o impacto que este tem na sua vida, a psicóloga da Clínica da Mente aconselha a que faça o Teste da Dependência da Internet, um questionário de 20 perguntas que procurará dar-lhe uma escala de dependência, com base nas respostas que der. Está disponível em português no site, por exemplo, da SeguraNet (seguranet.pt/recursos/teste-de-dependencia-da-internet).

Como diminuir o tempo ao telemóvel: