Margarida Rebelo Pinto

Espelhos partidos


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Os arquitetos vivem apaixonados por projetos, os financeiros por dinheiro e os escritores por frases. Desde que as redes sociais iniciaram o seu terrífico e irreversível boicote às bases das relações humanas, obrigando-nos a trocar a voz do outro por mensagens no WhatsApp e a presença física por conversas em videochamada, que venho escrevendo sobre aquela que considero a mais grave patologia do mundo ocidental: a solidão. Talvez eu saiba um bocadinho mais de solidão do que quem tem um trabalho no qual interage diariamente com várias pessoas. Escritores, faroleiros e pastores, todos aprendemos a suportá-la no nosso ofício, que em nada se assemelha à solidão escolhida de um velejador que decide fazer uma travessia, ou de um cidadão comum que parte para um destino longínquo, servindo o velho cliché de ir à procura de si mesmo, com o intuito de se encontrar. Pois eu encontro-me todos os dias com o meu silêncio, enfeitado apenas por uma lista do Spotify e um café com leite de aveia que não raro arrefece demasiado depressa. Quando me perguntam porque não viajo sozinha, como se tal proeza constituísse um ato de heroísmo passível de ser medalhado, encolho os ombros e já nem respondo. A solidão é como uma doença crónica, só quem dela padece, sabe como é.

Os melhores amigos dos escritores são os outros escritores, aqueles que nos fazem companhia com os seus livros, nos quais vamos buscar fios de pensamentos que atamos aos nossos fios. Por vezes basta apenas um conceito para nos abrir a janela da imaginação e encontrar um caminho qualquer para inventar uma história, criar um personagem, imaginar um lugar ou viajar no tempo. Outras vezes, com a sua simplicidade e clareza, dizem por outras palavras o mesmo que pensamos ou sentimos, e essa mera constatação faz com que a solidão seja atenuada. Julian Barnes escreveu, há dois tipos essenciais de solidão: a de não termos encontrado ninguém a quem amar e a de termos sido privados da pessoa que amávamos. A primeira é pior, remata o escritor inglês a quem gostam de chamar o mago do coração. Barnes é um colecionador de prémios literários, os quais, estou em crer, não diminuem em nada o seu sentido de solidão. Ele acredita que as memórias se vão alterando cada vez que as contamos, a ponto de se tornarem ficção. Para aliviar a solidão, gosta de imaginar que tem um leitor a seu lado enquanto está a escrever. E afirma que não usa o amor como matéria para a sua escrita, porque o amor já está presente em tudo e constitui a força mais complicada e fascinante que existe. O amor e a morte são os temas principais para um escritor, porque nunca desaparecem. Já John dos Passos afirmava o mesmo.

Como será então a vida das pessoas que nunca amaram verdadeiramente ninguém? Dos narcisistas que não conseguem sentir amor para lá da sua imagem refletida em rios que secam, espelhos que se partem com o tempo e ficam reduzidos a estilhaços da existência, tristes e escuras radiografias nas quais apenas se destacam as manchas de uma doença má? A minha querida Agustina também dizia que o pior é não amar ninguém. Ninguém quer um espelho partido em casa, nem sequer na arrecadação do prédio. Amar continua a ser o verbo-arma que melhor combate a solidão, seja de um escritor ou de alguém que trabalha todos os dias com outras pessoas.