Em terras de Santa Maria há toda uma nova vida

Uma Viagem Medieval, das maiores recriações históricas da Europa (que está prestes a começar), e muitos outros eventos na rua foram o motor para algo maior. Santa Maria da Feira reconstruiu-se à boleia da cultura, desenhou-se em torno de anfiteatros, de praças, de parques, do castelo, de um centro histórico inteiro criado para receber artistas e público. Quem a viu e quem a vê. Há 20 anos era mortiça, hoje enche-se de vida.

Anda pelo meio da terra, indiferente à poeira, vestido de calças beges e camisa, boné na cabeça, cheio de ideias. O arquiteto paisagista Sidónio Pardal, que concebeu o icónico Parque da Cidade do Porto e muitos outros parques verdes por esse país fora, está na cidade que daqui a dias, a 2 de agosto, será tomada por D. João I, Mestre de Avis. Que há de recuar na linha do tempo até Aljubarrota, a batalhas reais em espetáculos de grande formato, a uma era de expansão e de sentido português. E o paralelismo não podia fazer mais sentido aqui: Santa Maria da Feira cresceu, expandiu-se, fez-se maior do que o castelo que guarda no topo, ganhou identidade, e tornou-se na cidade que é hoje à boleia do seu evento maior, a Viagem Medieval, que tem lugar cativo nas maiores recriações históricas da Europa.

Na verdade, por estes dias, a cidade já cheira à era medieval, já se cobre de faixas coloridas a sobrevoar-nos as cabeças, de tabernas de madeira assentes no chão, do rebuliço das montagens. Mas deixemos a bolha do evento para lhe ir às entranhas. Há uns bons anos, o agora Parque Condes de Fijô, aos pés do centro histórico, zona verde por onde se estende hoje grande parte da Viagem Medieval, era um mato alienado, um silvado atravessado pelo rio Cáster, longe das vistas e onde poucos se arriscavam a entrar. Já não é assim, abriu-se para criar mais espaço, albergar praças de alimentação ou a granja dos animais no evento (e para usufruto das gentes no resto do ano também), encheu-se de caminhos, percursos, de uma ecovia recente e concorrida ao longo do vale, com a floresta das Guimbras que sobe até ao castelo em pano de fundo.

O arquiteto paisagista Sidónio Pardal está neste momento a trabalhar no projeto de expansão do Parque Condes Fijô, aos pés do centro histórico, para onde se estende grande parte da Viagem Medieval
(Maria João Gala / Global Imagens)

Chamado pelo Município, Sidónio Pardal, o arquiteto que bebe muito da escola paisagista inglesa, de nomes como Charles Bridgeman ou Lancelot Brown, tem ideias ainda maiores para um parque que se desenvolve ao longo do rio, um “river way” como lhe chama. “Este vale já começou a ser tratado para ser um parque e já é frequentado por muitas pessoas. Agora vamos fazer uma valorização, uma expansão. Se olharmos hoje para o vale não vemos o rio, vamos fazer com que a toalha de água fique mais exposta.” Alargar o leito, estabilizar as margens, uma intervenção que se estende por dois quilómetros, da zona escolar à zona histórica. Talvez no próximo ano o trabalho já seja visível. “O objetivo é fazer um parque para as pessoas. Se elas vierem e gostarem, é uma obra-prima, se não gostarem é porque o arquiteto falhou.”

Para já, nas traseiras das piscinas municipais, às portas do parque, há muros com pedras naturais a erguerem-se, plantações para criar uma cortina de árvores, espécie de separador entre a cidade e o espaço verde, e uma eira ampla feita de cubos de granito a ganhar forma, mesmo antes de se entrar no parque absoluto. “A ideia é assegurar a polivalência dos espaços. Quer-se fazer um parque agradável, mas também garantir que quando a Câmara necessitar de o ocupar para estes eventos eles possam acontecer aqui de forma funcional”, refere o arquiteto. É exatamente esse o propósito da eira: vai servir para pousar mesas e cadeiras durante a Viagem Medieval, uma praça de tabernas sem pó à mistura, e para tudo o que a população quiser que seja para lá desses 12 dias.

Também há de nascer um anfiteatro natural, enquadrado na Natureza, 1200 lugares a pensar nos espetáculos. E talvez esta seja a tradução perfeita de uma cidade que se reconstruiu (e continua a fazê-lo, o castelo, monumento nacional, está em reabilitação, o Mercado Municipal também) em torno dos eventos. A Viagem Medieval, que conta 25 anos, quase, quase 26, que começou pequenina e se agigantou, é o maior deles, mas também aqui acontece o festival de teatro de rua Imaginarius, o parque de Natal Perlim, a Festa das Fogaceiras, a Semana Santa. Tudo na rua, tudo ao ar livre, tradição feirense enraizada.

Nasceram restaurantes, hostels, vida

Há uma certeza, Santa Maria da Feira é hoje uma cidade-palco, qualquer espaço do centro histórico se transforma para receber arte de rua, artistas e público, sem estruturas artificiais, trabalho iniciado pelo urbanista já falecido Costa Lobo, que a imaginou exatamente assim, um gigantesco palco. E não é preciso muito para tomar o pulso ao impacto de uma cidade que se regenerou às mãos da cultura, basta percorrer as principais ruas para dar de caras com restaurantes, hostels, bares à fartazana. Miguel Bernardes abre as portas do Praceta, inaugurou o restaurante em 2008, precisamente por conta da Viagem Medieval, onde explorava um restaurante efémero. Nesse ano achou que havia mercado para um espaço permanente, ainda a cidade era mortiça. “Quando começámos, uma coisa curiosa foi o responsável de produto da Super Bock, que era nosso fornecedor, me ter avisado que a Feira não tinha nenhum restaurante que resultasse, só havia um restaurante mais antigo, dois ou três bares, não havia hábitos de consumo aqui.” Miguel provou-lhe que estava enganado. De lá para cá, uma autêntica revolução. “A cidade era velha e cresceu, cresceu com uma identidade, passou a ser um ponto de referência mesmo para lá dos eventos. E todos os negócios reconhecem que a grande alavanca foi a Viagem. Foi isso que nos fez a nós privados investir e foi isso que fez o Município olhar para o espaço urbano.”

A edição deste ano da Viagem Medieval acontece entre 2 e 13 de agosto. Vai abrir todos os dias ao meio-dia
(André Gouveia / Global Imagens)

E ele, que nasceu há 50 anos na Vila da Feira (foi elevada a cidade em 1985), assistiu a tudo na primeira fila. Há 15 anos “ninguém vinha à Feira para a conhecer”. “Hoje não. Sinto um orgulho tremendo. Temos uma cidade bonita, edifícios imponentes reabilitados, um castelo recuperado, parques verdes, quando era miúdo até tínhamos medo de entrar na mata (o agora Parque Condes Fijô), contavam-se histórias assustadoras e hoje vou lá passear com os meus filhos.”

É das lendas que também vive uma cidade. E das memórias de quem a habita. Nos anos 1950, 60 e 70 todas as fotografias de casamento tinham religiosamente o mesmo cenário, a Quinta do Castelo, o espaço que esconde uma gruta encantada e um lago, na encosta abaixo do ex-líbris de Santa Maria da Feira. Era lugar de namoricos de adolescência, dos primeiros beijos. “Lembro-me de ir para lá namorar para a gruta. Depois aquilo foi ficando ao abandono, cada vez em pior estado”, conta Miguel Bernardes. Até que a Câmara assumiu o espaço, que pertencia ao Ministério da Segurança Social, num contrato de cedência de mais de 50 anos. Virou palco de Perlim e de uma das zonas temáticas por excelência da Viagem Medieval, os Banhos de S. Jorge (há banhos pulverizados nas pernas, acompanhados de chá e concertos de harpa).

A Quinta do Castelo foi toda reabilitada em 2019 a pensar nos eventos
(Maria João Gala / Global Imagens)

“Começou-se a recuperar a quinta a pensar nos eventos culturais e em 2019 foi quando olhamos com mais atenção, fizemos uma requalificação integral, com plantação de novas espécies, arranjo dos caminhos, recuperação da gruta, do lago, criação de charcas, de novos espaços a pensar nos espetáculos, a clareira em forma de anfiteatro é exemplo disso, os pequenos anfiteatros em pedra também”, explica Amadeu Albergaria, vice-presidente da Autarquia e vereador das Obras Municipais. O espaço não é só lugar de eventos, foi devolvido à população, está aberto ao público durante todo o ano.

Amadeu Albergaria, vice-presidente da Câmara da Feira, num anfiteatro construído na Quinta do Castelo
(Maria João Gala / Global Imagens)

Das praças aos anfiteatros naturais

A história repete-se por todos os cantos e recantos da Feira. Na ponte de madeira que liga o Rossio à zona verde, construída para facilitar a circulação na Viagem Medieval – batizada de Ponte D. Dinis, por ter sido criada em 2008, ano em que era esse o reinado recriado. Na Praça Gaspar Moreira, junto aos bares, onde está um anfiteatro em pedra, conta quase 20 anos, que se enche de gente de copos na mão, que é ponto de encontro nas noites quentes. E em dias de jogos da seleção nacional, quando lá há um ecrã gigante. “Esta praça serve também de palco, nos eventos as pessoas já sabem que aqui há sempre espetáculos, é das que recebe mais espetáculos”, aponta o vereador. Até nos passeios pedonais, que no centro não têm desníveis para a estrada onde circulam os carros, nenhum, “está tudo ao mesmo patamar, o que facilita a acessibilidade e evita que nos eventos as pessoas tropecem”. E no cuidado com os materiais, quase sempre granito, não só pelos eventos, mas porque o centro histórico está em zona de salvaguarda do castelo.

A Praça Gaspar Moreira, com bancadas de pedra, que é ponto de encontro e palco de muitos espetáculos
(Maria João Gala / Global Imagens)

O conceito de uma cidade-palco era quase inevitável para um lugar onde tudo acontece na rua. A aposta em grandes eventos culturais arrancou em 1997, a vontade de fazer acontecer era muita, não existia uma grande sala de espetáculos, então programava-se com o que havia, a rua. E em 2000 deu-se o boom. “Foi aí que houve o maior incremento, quando se realizou no Europarque o Conselho da Europa, Portugal estava a presidir à Comissão Europeia. A partir daí começou a forte aposta na reabilitação do espaço público”, lembra Amadeu Albergaria. A reboque, chegou um sem-fim de questões logísticas levantadas por eventos cada vez maiores e mais concorridos, “e a cultura acabou por ser o motor, a impulsionadora da regeneração urbana e do sentimento de pertença”. Que promete não parar, já há planos para construir uma nova praça junto à Igreja da Misericórdia.

Poucos metros abaixo, na ruela mais central, está o Feira Hostel, onde as suites têm nomes dos principais pontos turísticos da cidade, e onde no piso térreo mora o restaurante Os Vinte – é o número da porta e também uma homenagem à cidade, o feriado municipal celebra-se a 20 de janeiro e ali perto acontece a Feira dos Vinte todos os meses. Carla Marques, a dona, já está de volta da carta medieval, “este ano é a dinastia de Avis, século XIV”, estudou tudo ao milímetro, até foi a Avis. Durante os 12 dias, vai servir um repasto real, com pratos que eram reservados ao clero e à nobreza, a vaca, o borrego, a doçaria conventual. “O porco deixamos mais para as tabernas”, diz ela. É fã assumida do evento, já tem os trajes preparados. “Hoje, quando dizemos que somos da Feira já toda a gente reconhece como a cidade da Viagem Medieval. Até em Espanha. Antes ninguém conhecia.” E os feirenses embrulhavam-se em explicações, diziam ser uma cidade a 30 quilómetros do Porto, ali perto de Espinho. Aos 51 anos, Carla conheceu o antes e o depois. Muito mudou. “A cidade evoluiu a todos os níveis. Lembro-me de uma Feira pequenina, em que vínhamos ao chafariz junto à Câmara e pouco mais. De não ter quase restaurantes nem animação noturna. Agora é porta sim, porta sim. Isto veio tudo à boleia da Viagem. E não é só. Aquela zona do parque está lindíssima, a minha mãe já vem fazer caminhadas junto ao rio, na ecovia. E a Quinta do Castelo, tudo espaços públicos de excelência que não tínhamos.”

Carla tinha acabado de receber uns turistas franceses, em périplo pela Europa, que não vão conseguir “vir à Viagem Medieval, mas que queriam vir conhecer a cidade e o castelo onde ela acontece”, e isso é demonstrativo. Abriu as portas do hostel e do restaurante em 2017, sabendo que um negócio não se segura só com 12 dias, mas com a certeza de que ia dar certo. “Sinto que a cidade agora não está só preocupada com a quantidade de visitantes, mas com a qualidade do espaço público e do que se oferece. E isso é muito importante para o resto dos dias do ano.”

Uma Viagem, 700 mil pessoas, o futuro

Só em 2022, o evento recebeu cerca de 700 mil pessoas. Este ano, diz Paulo Sérgio Pais, que está à frente da empresa municipal Feira Viva, organizadora da Viagem Medieval e de outros eventos como o Perlim, o objetivo não é receber mais gente, “é ter mais gente feliz e mais gente a usufruir dos conteúdos”. E o recinto, a porta de entrada para a Idade Média, não pára de crescer. Já conta 40 hectares, mais seis do que em 2022.

O castelo, ícone da Feira, está a ser reabilitado. Mesmo assim, vai receber um espetáculo de videomapping na muralha nesta edição do evento
(André Gouveia / Global Imagens)

Paulo Sérgio bem sabe que os jovens que cresceram já com a Viagem Medieval não têm memória da Feira antes de tudo. “Para eles, a Viagem já faz parte da Feira, é intrínseco. E enchem os pulmões para dizer que são daqui, este sentimento de pertença e de identidade é talvez o melhor que se retira destes 25 anos do evento. Eles já não têm a noção de como era a Feira antes disto.”

É uma característica dos eventos culturais, sublinha, a de regenerar as cidades. À devida escala, aconteceu o mesmo com a Expo 98 em Lisboa. Com uma diferença, é que em Santa Maria da Feira “o processo é contínuo, com a Viagem Medieval a ir conquistando espaços ao território e a moldá-los para um usufruto mais permanente da população durante 12 meses”. Afinal, a cidade é um palco, mas é acima de tudo dos feirenses. E nisso todos são unânimes. Voltamos ao início, ao reinado de D. João I, que vai ser contado entre 2 e 13 de agosto nas ruas da Feira. E que ironicamente parece encaixar que nem uma luva. “Há quem diga que terá estado ao nível de D. Afonso Henriques em construir o país que somos hoje, num reinado de mais de 40 anos” com a força da conquista, sobretudo de Aljubarrota, e da afirmação da portugalidade.