Em segurança
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Já dizia o grande Serafim Saudade que o Mundo está dividido em duas partes: a parte A e a parte B. Em Portugal existem as pessoas que gostam da Polícia e as pessoas que não gostam da Polícia, independentemente da sua classe social, religião, etnia, cor partidária, ou clubística. O país rejubilou com a vitória do Benfica: os festejos no estádio deixaram a assistência extasiada, enquanto, cá fora, as forças policiais acalmavam os ânimos por entre alguns adeptos que lançavam fogo de artificio de forma ilegal e criavam o caos. Quem entra no estádio é revistado, quem deambula em seu redor, não é.
O futebol é tão amado em Portugal que a massa associativa agrega todo o tipo de pessoas, qual pesca de arrastão, trazendo à flor da pele os instintos mais primários. É um fenómeno que me ultrapassa, embora entenda o amor a uma causa, a um ideal ou a um clube, e não existe nada de errado nisso. Contudo, assisto com apreensão a tais fenómenos, pois é sabido como é fácil uma multidão entrar em descontrolo total. Por detrás destes eventos que envolvem largas dezenas de milhares, (65 mil dentro do estádio e cerca de 100 mil nas imediações quando o jogo terminou), estão no terreno centenas de polícias, várias equipas do INEM, bombeiros e assistentes desportivos, todos envolvidos numa megaoperação de segurança que começa muito antes do apito do árbitro. Quando os jogos são disputados entre dois clubes rivais, a Unidade Especial de Polícia com o seu Corpo de Intervenção, também conhecida como Polícia de Choque, cumpre a missão de acompanhar as claques numa estrutura a que chama caixa de segurança. Quem mora no bairro de Telheiras está familiarizado com este tipo de operações. Ver uma claque a passar é assustador, mesmo na varanda de um terceiro andar. Para quem está no terreno, o comportamento dos adeptos melhorou. Sente-se menos testosterona, contudo, quando os incidentes ocorrem, são mais graves; a luta corpo a corpo foi trocada por emboscadas ardilosas e atitudes cobardes onde dez agridem um, isto além dos clássicos arremessos de pedras e de garrafas.
Como seria o futebol sem segurança? Como se comportariam os adeptos, sozinhos ou em turba, inseridos ou não em claques, sem a imposição de limites no terreno? Ainda ninguém esqueceu o incidente no Estádio Nacional quando um very light matou um sportinguista em 1996, ou o atropelamento de um cidadão italiano nas imediações do Estádio do Benfica por adeptos em 2017. Infelizmente, não são episódios do passado. Em 2022 um adepto do Porto foi assassinado com 17 facadas junto ao Estádio do Dragão. São episódios ilustrativos da loucura que toma conta das pessoas em momentos extraordinários. Não é correto afirmar que em cada adepto existe um arruaceiro violento, mas todos sabemos que o futebol transforma o vizinho septuagenário que nos abre a porta do prédio com respeito num ser colérico e descontrolado em dias de bola. Se é impossível conceber como seria Portugal sem a influência de Herman José, também é difícil imaginar os grandes eventos desportivos, políticos e religiosos sem o trabalho das forças de segurança. Ninguém gosta de pagar multas por excesso de velocidade, mas precisamos todos das forças policiais para vivermos em paz. Sem segurança, não existe democracia. Sem segurança, nem sequer existe Estado.