Valter Hugo Mãe

Educar o passado


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A ideia de alterar expressões dos livros de Agatha Christie para apagar aquilo que, à luz de hoje, pode ser considerado ofensivo é-me assustadora. O passado não se reeduca, apenas se toma como um facto e usa para decidir se reincidimos nos mesmos erros ou avançamos em outra direcção.

Na verdade, parece-me que higienizar as obras do passado à luz do que se pensa agora acarreta erros graves elementares: a ideia de que sabemos hoje tudo o que precisamos de saber; e, mais grave, o maior apagamento do lugar dos que foram verdadeiramente oprimidos e atacados por uma cultura dominante discriminatória e agressora.

Se corrigirmos todos os livros e toda a memória, um dia vamos querer discursar acerca do uso da discriminação de modo normalizado e não vamos ter prova senão nos arquivos mofados. Parece-me que esse esquecimento é a pior ofensa que se pode fazer aos oprimidos, às vítimas que existiram e seguem existindo.

Por outro lado, se quisermos higienizar um livro de Agatha Christie talvez devêssemos começar por retirar o homicídio. Esse, sem dúvida, é imediatamente ofensivo, criminoso, e alude a algo que a Humanidade vem tentando curar desde sempre. Como justificar que todos os assuntos que impliquem com a sensibilidade de alguém haverão de ser apagados e não começar pela frontal agressão que é imaginar o assassinato de alguém?

É fundamental voltar a lembrar o óbvio: um livro é retrato do seu tempo e haverá de conter candidamente as vicissitudes do seu tempo. Querermos que ele corresponda a um ideal, como se fizesse parte de um Mundo perfeito, é escolher uma mentira, como se fôssemos todos crianças e devêssemos ser enganados com algo que não nos perturbe.

A arte é inteira perturbação. Não se pode retirar à obra o que ela contém de crise, especulação, risco, horror, sofrimento, violência. Sob pena de sobrar apenas o debate ingénuo, não é aceitável tratar a obra de arte como se tivesse de obedecer ao futuro ou a outra coisa que não a ela mesma.

Estou do lado das vítimas, da sua memória e da sua dignidade, mas anular tudo quanto possa tê-las agredido é agredi-las outra vez. É ficcionar um passado higiénico onde, afinal, parece que nada aconteceu. Seria horrendo. Não é com lixívia que se tratam as ideias, é com educação, informação, memória, consciência, empatia. É sabendo o processo histórico e revelá-lo sem jamais o esconder ou mascarar.

Eu nem sei que raio vai nos livros de Agatha Christie, nunca fui de policiais e não tive interesse natural em ler a autora. Mas talvez seja de escolher apenas entre ler ou não ler, jamais entre deixar ou não deixar as pessoas lerem o que ela escreveu. Se lhe alteram as obras estão a impedir que a escolha seja de cada um. Impedem a liberdade de cada um pensar por si mesmo o que significavam à altura aqueles textos, a que distância estamos deles. Essa autodeterminação, para mim, é um império. Importa defender a todo o custo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)