Edemas que são o cabo dos trabalhos

Existem três tipos de angioedema hereditário (Foto: AdobeStock)

O angioedema hereditário é uma doença genética rara, com impacto significativo na qualidade de vida do doente. No limite, pode levar à asfixia. A evolução das terapêuticas dá motivos para sorrir.

Sempre que Liliana Monteiro recua à infância (hoje tem 40 anos), a doença paira como espécie de sombra permanente sobre aquele que era suposto ter sido um período leve e livre de preocupações. “Até aos meus dez anos, as crises abdominais – agora percebo que eram crises abdominais – eram mesmo muito frequentes, sobretudo em alturas de maior ansiedade. Mesmo que fosse uma ansiedade boa. Bastava ter uma visita de estudo e ficar muito entusiasmada. No dia seguinte, acordava a vomitar e já não ia.” Os problemas não se ficavam por aqui: ou eram os edemas nos olhos, ou eram os edemas na face, ou eram as dificuldades respiratórias que, aqui e ali, a obrigavam a ficar internada. Para piorar, tardou a encontrar respostas, com as suspeitas a ficarem-se quase sempre por supostas alergias ou alegados efeitos colaterais da ansiedade. “Corremos médicos particulares, homeopatas, vários especialistas, mas não chegavam a conclusão nenhuma.”

O diagnóstico veio quando já tinha 14 anos, depois de um edema ocular e de um sem-fim de testes. Liliana lembra-se do momento em que soube que tinha angioedema hereditário como se fosse hoje. “Senti muita raiva. Não é fácil ouvir aos 14 anos que temos uma doença para a vida toda. Sendo que na altura eu tão depressa estava bem como de repente ficava mal. Então, naquele momento, só pensei: ‘Mas por que raio vou ter de ter isto sempre?’.” E o pior ainda estava para vir: aos 17 anos, teve um edema da glote (estrutura anatómica localizada na parte final da laringe). Foi internada de urgência, seguiu para os cuidados intensivos, teve até de ser entubada. Note-se que o edema da glote pode ser fatal, por causa do risco de asfixia. Mas Liliana resistiu. E a vida acabaria por se tornar bem melhor, à medida que o tempo foi passando e as terapêuticas foram evoluindo.

Lá iremos mais adiante. Para já, comecemos por perceber exatamente que doença é esta. Amélia Spínola, imunoalergologista no Centro Hospitalar Lisboa Norte e a responsável, dentro do serviço, pela unidade de angioedema hereditário, resume-a assim. “É uma doença rara e hereditária [só em cerca de 25% dos casos não se encontra história familiar] que se caracteriza por crises recorrentes de angioedema [leia-se: edema de tecidos subcutâneos e submucosas]. Em termos de manifestações cutâneas, pode expressar-se na pele, na face, nos lábios, na mão, no pé ou até nos genitais.” A especialista realça dois pontos importantes, que ajudam no diagnóstico diferencial. “Não dá comichão e tem um caráter assimétrico. Ou seja, incha uma pálpebra e a outra não, pelo menos numa fase inicial.”

Às manifestações cutâneas, há que acrescentar as gastrointestinais, as tais “crises abdominais” de que Liliana falava. E que se podem traduzir em dores, náuseas, vómitos e diarreias. “Por vezes é uma dor abdominal tão aguda que se pode confundir com apendicite e se avança para cirurgia”, admite a especialista. Há ainda as manifestações ao nível das vias respiratórias, com edema da língua, da laringe, da glote, casos que, “se o doente não for tratado rapidamente”, podem desembocar em episódios de asfixia. Falta dizer que os traumatismos, o stress e certas terapêuticas, como os anticoncecionais à base de estrogénios, por exemplo, lideram os fatores potenciadores de crises.

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Helena Falcão, imunoalergologista do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, detalha outros aspetos da doença. “Há uma deficiência ao nível do C-1 inibidor, que é uma proteína que atua em vários processos do organismo, nomeadamente ao nível do combate às infeções. Isso vai fazer com que os órgãos, nomeadamente a pele e os tecidos subcutâneos, inchem mais facilmente.” Esclarece ainda que, tratando-se de uma doença com transmissão autossómica dominante, a probabilidade de esta ser transmitida de pais para filhos é de 50%.

Liliana Monteiro, hoje com 40 anos, só descobriu aos 14 a doença que a atormentou durante toda a infância
(Foto: DR)

Para Liliana, este dilema foi mais um fator de angústia a juntar a uma gravidez já particularmente difícil (note-se que o filho, hoje com 14 anos, não tem até ver qualquer sintoma da doença). “Tudo o que envolve alterações hormonais espoleta crises. Durante a gravidez, todos os dias, sem exceção, tive de ir ao hospital fazer medicação endovenosa. Não havia feriados, não havia férias, não havia nada. E às vezes ia fazer a medicação de manhã e à noite tinha de voltar porque estava com uma crise. Foi um descontrolo muito grande.” O sufoco estendeu-se aos primeiros quatro meses da maternidade.

Depois, melhorou qualquer coisa, mas sempre dentro do desassossego habitual da doença. Ora por causa dos sintomas, ora por causa dos próprios tratamentos. Isto porque durante largos anos a terapêutica profilática que fazia era à base de androgénios, o que causava vários efeitos secundários, desde o crescimento acentuado de pelo no corpo à oleosidade da pele, passando pela ausência de menstruação. À conta disso, Liliana teve ainda de lidar com uns quantos problemas de autoestima.

O cenário só mudaria a partir de 2020, quando começou a fazer um tratamento experimental no Hospital de Santa Maria (Lisboa), que passa pela administração subcutânea de profilaxia a longo prazo. Mais concretamente de lanadelumab, um fármaco que diminui a produção de bradicinina (um vasodilatador), ajudando assim a evitar a formação de edemas. “Neste momento, estou a tomar uma injeção, que aplico a mim própria, a cada seis semanas.” E também tem na posse dela a medicação SOS, caso haja uma crise. Para não ter de andar sempre a correr para o hospital. Felizmente, não sabe o que é ter uma crise há quase três anos, um recorde absoluto.

Amélia Spínola, a médica do Centro Hospitalar Lisboa Norte que acompanha Liliana, destaca a considerável evolução que tem havido nesta área. “As terapêuticas desta doença têm evoluído muito, nomeadamente ao nível da profilaxia de longa duração, que se traduz numa clara melhoria da qualidade de vida dos nossos doentes.” Noutros quadros, menos graves, é ainda feita uma profilaxia mais específica, em dados contextos. “Se houver uma intervenção cirúrgica ou de medicina dentária, por exemplo. Nesses casos, faz-se terapêutica para prevenir a ocorrência de crises durante a intervenção”, pormenoriza Helena Falcão.


Três formas da doença

O angioedema hereditário pode ser do tipo 1, quando o C1-inibidor existe em pouca quantidade (a forma mais frequente), ou do tipo 2, quando este existe mas não funciona. Há ainda uma terceira forma, mais rara, com C1-inibidor normal, sendo que neste caso é obrigatória a presença de história familiar para haver um diagnóstico.