Margarida Rebelo Pinto

Do fundo do coração


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O coração, como aliás todos os órgãos, está sujeito a avarias e a alterações morfológicas. Diz a ciência que as emoções fortes podem provocar miocardiopatia de Takotsubo, conhecida como miocardiopatia do stresse, ou síndrome do coração partido. Perante um choque emocional profundo e intenso, o ventrículo esquerdo dilata e o coração fica, por assim dizer em linguagem corrente, aflito. É o chamado aperto no coração.

O poder eletromagnético do coração é largamente superior ao do cérebro. Ele pode sentir e emitir uma frequência que alcança cinco metros. Talvez por isso conseguimos sentir a presença de alguém antes de chegar. O sentimento aparece antes, só depois é processado pelo cérebro, onde são criadas as imagens que ilustram o que sentimos. No século XVII, um tipo muito aborrecido chamado Descartes criou o dogma “Penso logo existo”. Estudei-o no Secundário a contragosto, nunca me identifiquei com a sua lengalenga e além disso irritavam-me os caracóis pomposos, a franja parola e o ar presunçoso. O Iluminismo apagou as razões do coração, retirou as emoções da condição humana e quis convencer-nos de que os sentimentos eram como lixo tóxico. O resultado não se fez esperar: um século depois, o movimento do Romantismo espalhou-se pela Europa, exacerbando emoções e sentimentos, interpelando a Humanidade a entregar-se sem reservas aos seus sonhos, desejos, emoções e vícios.

Já por diversas vezes escrevi sobre as consequências tão nefastas do Romantismo, sobretudo em relação às mulheres. Felizmente não minou todos os países de igual forma. A escritora inglesa Jane Austen, que no fundo era uma sentimentalona reprimida pela coleira de choques vitoriana, apresenta-nos mulheres orgulhosamente fortes. Neste contexto puritano, entenda-se fortes como dignas, corajosas, virtuosas, sérias, e, como tal, prontas para exigir ao género masculino atitudes à altura das circunstâncias e ao nível de classe e de decência destas bravas donzelas. Austen teve o mérito de criar modelos de virtude através das suas personagens que sofrem de amor, mas não cedem ao sofrimento, que choram quando ninguém está a ver e que nunca baixam os standards a que se propõem por fraqueza ou egoísmo. Austen recupera assim as mulheres estoicas que ajudaram a governar o Mundo na idade das trevas e que foram sendo enfraquecidas pelos costumes desde o Renascimento. Românticas sim, mas quanto baste, para não cair nem no ridículo nem em desgraça, porque sofrer por amor na literatura inglesa é sempre uma questão menor, como ter uma unha encravada ou um ataque de caspa.

Todos já passámos por esse tormento que nos atira das nuvens suaves do enlevo para uma caverna interna na qual lambemos as feridas ou mudamos de pele, tantas vezes iludidos com as projeções na parede de uma suposta realidade exterior que imaginamos melhor do que a verdadeira existência. Enquanto o coração se expande e atrapalha, seja por delírio passional ou por desgosto amoroso, é importante não tirar os pés do chão, pois é sabido que a sombra persegue a luz e a queda é inerente ao voo. Ouvir o coração é muito mais produtivo do que ignorá-lo. Contudo, em caso de dúvida, é melhor ser a sensata Elinor Dashwood, ou a impulsiva Lady Chatterley? Não conheço nenhum pensamento capaz de apagar um sentimento. E todas as pessoas que vi negarem a voz do coração, nenhuma se reconciliou com estados de paz e de alegria. No fundo, o coração é que manda, do seu fundo mais puro e belo, que se chama vontade.