Devemos viajar para países que não respeitam os direitos humanos?

As violações de direitos humanos não são apenas um problema dos regimes ou governos, podem ser problemas sociais

A escolha do Catar para a realização do Mundial de futebol colocou em cima da mesa a discussão: deve uma organização internacional escolher um país que não respeita direitos humanos para anfitrião de um evento global? Mas também podemos colocar essa pergunta individualmente: devemos nós viajar para esses países ou aderir aos boicotes?

Os ataques russos à Ucrânia começaram a 24 de fevereiro de 2022. No dia seguinte, a Papa-Léguas, agência de viagens de aventura, optou por cancelar todas as viagens à Rússia, como forma de boicote. “Suspendemos as operações para manifestar uma posição contra a invasão”, frisa Artur Pegas, fundador e diretor-executivo da agência. “Para mim, há uma diferença entre um estado que pode ser criticado pela maneira como trata os seus concidadãos, dentro das suas fronteiras, e um estado que invade outro estado”, sublinha.

Também a Nomad, especializada em descoberta cultural e trekking, seguiu o mesmo caminho, pelas mesmas razões: “Não se tratou da condenação a um regime de um país perante o seu povo, mas sim a um país que invadiu outro estado soberano”, diz Pedro Gonçalves, fundador e coordenador operacional da agência de viagens. A decisão de se juntar a um grande número de outras empresas, de vários setores de atividade, teve uma dimensão simbólica de condenação, mas também a motivação de “ter impacto económico perante o regime” e “perante os pequenos agentes económicos, como os nossos parceiros locais, para demonstrar que esta ação não é aceitável e que também eles terão de ser agentes de mudança”, justifica.

Apesar desta tomada de posição, o responsável e guia da Nomad assinala que os boicotes só lhe fazem sentido nestes casos muito particulares. Defende que, na maioria das situações, cancelar as operações em países com regimes autoritários e que não respeitem os direitos humanos, pode ter um impacto mais negativo do que benéfico. “Geralmente, os maiores lesados com os boicotes não são os regimes, são as pessoas que vivem do turismo, como os guias, alojamentos, pequenos negócios e comerciantes que vendem os seus produtos a estrangeiros com maior poder de compra. Quando boicotamos as viagens, podemos estar a colocar em causa o rendimento de muitas famílias, o seu acesso a uma vida digna ou o acesso dos seus filhos à escolaridade. Estas consequências não podem ser ignoradas”, reflete Pedro Gonçalves.

Também Artur Pegas vê a entrada de divisas nestes países como um ponto-chave e reconhece que uma questão sensível, quando se viaja para países com regimes autoritário, é: ‘para onde vai o dinheiro?’. “Uma das questões centrais é saber quem é que beneficia com a ida de turistas: se o povo ou o governo. Ou seja, se o dinheiro vai ou não parar às mãos daqueles que insistem em ações menos democráticas e pouco respeitadoras dos direitos humanos”, refere. E a resposta não é linear. Admite que “uma parte do dinheiro, seguramente que sim [vai para o Estado], quanto mais não seja porque a agência local e os pequenos alojamentos com que trabalhamos pagam impostos”. Mas muito fica nas mãos dos cidadãos, que vinca, “não devem ser confundidos com o regime ou governo do país onde vivem”.

Onde traçar a linha?

“Há organizações internacionais intergovernamentais, como as Nações Unidas, que não se podem furtar a lidar com países que violam os direitos humanos”, realça Jorge Ferraz, docente da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, onde leciona e investiga em áreas como a Sociologia do Turismo, Interculturalidade e Direitos Humanos no Turismo. “Mas a FIFA não é uma organização intergovernamental: não tem de atuar com base na moral da responsabilidade, pode atuar com base na moral da convicção. Por isso, podia – e devia – ter uma posição diferente e não organizar eventos nestes sítios”, argumenta.

Mas o docente acredita que há que fazer uma separação entre o comportamento das organizações e o dos indivíduos. As escolhas pessoais, aponta, são “uma zona mais cinzenta”. “Pessoalmente, penso que não se deve ir. Mas tenho mais dúvidas do que certezas definitivas. Eu evito alguns países.” Há um país onde não iria, mesmo: “À Coreia do Norte, exceção feita se fosse com a justificação de fazer uma observação sociológica.”

Compreende os argumentos usados contra os boicotes e a favor das viagens para estes estados, que alegam que isso acaba por punir os cidadãos. Reconhece que é preciso fazer perguntas: “Não indo, estamos a contribuir para enfraquecer o regime? Se formos, estamos a contribuir para mudar alguma coisa? Mas eu sou muito cético: acho que não contribuímos para mudar nada, temos só essa ilusão.”

A verdade é que, se tivermos uma posição muito rígida sobre este tema, podemos acabar a olhar para o mapa e a perguntarmo-nos: “Assim, onde é que posso ir, afinal?”. Há leis e práticas que violam padrões de direitos humanos na maioria dos países do Mundo: regimes opressivos, governos que criminalizam a homossexualidade, países onde o trabalho infantil é aceite, onde há restrições aos direitos das mulheres, onde existe pena de morte, onde se pratica tortura nas prisões.

“Claro que também encontramos violações dos direitos humanos em países como os Estados Unidos da América”, sustenta Jorge Ferraz, “mas creio que há uma diferença fundamental que não pode ser ignorada: uma coisa são países em que há violações de direitos humanos, outra países nos quais isso faz parte da própria natureza da constituição e do regime, como é o caso do Catar ou da Arábia Saudita”. Para si próprio essa é a fronteira entre ir ou não ir: “Não sou um adepto do relativismo cultural e há dimensões desse relativismo que não aceito: com violências e desigualdades instituídas na lei, sinto que não posso pactuar”.

O turista traz e leva

Na Papa-Léguas há ocasiões em que é feita uma reflexão sobre iniciar ou não viagens para certos países. “Fizemo-nos essa pergunta, por exemplo, antes de começarmos a fazer viagens no Tibete”, explica Artur Pegas. O governo chinês tem sido acusado de violações sistemáticas no Tibete, como restrição de liberdade religiosa, prisões arbitrárias, violência e tortura. Encontraram a resposta às dúvidas em palavras proferidas pelo líder espiritual do país. “O próprio Dalai Lama pediu para as pessoas não deixarem de viajar para o Tibete, apresentando um ângulo que me fez todo o sentido: sejam testemunhas da opressão e contem a vossa experiência. Assim, se me pergunta se devo ou não viajar para o Tibete, a minha resposta é: sim, penso que devo. Devo continuar a ir e devo continuar a dizer o que é que se passa lá quando regresso”, argumenta.

Pedro Gonçalves tem a mesma opinião. “Ao boicotarmos viagens para um lugar onde os direitos humanos não são respeitados, estamos também a ajudar a perpetuar o problema.” Considera que quem visita essas culturas, e partilha no regresso o que viu, é um agente de mudança, que cria uma consciência global do que se passa e pode ajudar a introduzir mudanças.

Além disso, não se trata apenas do que o turista traz, mas do que leva e pode deixar. “Levar pessoas a viajar no Irão, nas Filipinas, na China ou noutro país onde o regime vigente tenha pouco respeito pelos direitos humanos do seu povo, vai levar aos habitantes desses lugares as perspetivas dos cidadãos de outros lugares do Mundo e ajudá-los a perceber ou validar a indignação perante alguns atos”, refere o responsável e guia da Nomad.

A decisão de ir para um país com um regime autoritário ou com práticas pouco éticas não significa que nada se possa fazer. “Recentemente, no Sri Lanka, por haver dúvidas sobre como os animais eram tratados num orfanato de elefantes a que fazíamos visitas, optámos por retirá-lo do nosso itinerário porque não queremos contribuir para isso. Da mesma maneira, na Índia, optamos por fazer a pé um trajeto que tradicionalmente é feito [às costas] de elefantes pintados”, exemplifica Artur Pegas.

Até porque as violações de direitos humanos não são apenas um problema dos regimes ou governos, podem ser problemas sociais. Pedro Gonçalves conta que, no Peru, a agência apoia uma pequena associação local que abriga crianças com deficiência e procura proporcionar-lhes condições para que possam estudar. “Esta é também uma questão de direitos humanos, embora tenha a ver com uma cultura e não com um regime”, salienta. “As pessoas com deficiência são muito marginalizadas nesta sociedade, frequentemente vistas como um fardo para as famílias.” Ao apoiar uma associação que mostra que são pessoas que podem ter um contributo válido para a sociedade e para as suas famílias, o impacto desta pequena ação pode ser realmente grande: “Ajuda a mudar crenças antigas enraizadas”.