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Crimes de bata branca

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Em meados dos anos 1960, a Dinamarca tomou medidas drásticas para o controlo da natalidade na Gronelândia. Durante mais de uma década, foram colocados dispositivos intrauterinos em adolescentes, sem o conhecimento das mesmas, nem dos seus pais. As raparigas eram informadas pela professora que tinham uma consulta marcada no hospital à qual iam sozinhas, durante a qual lhes era colocado o dispositivo sem aviso nem informação prévia ou posterior. Os vulgarmente designados DIU são concebidos e desenhados para úteros de mulheres adultas. Estas jovens tinham entre 12 e 14 anos, quase todas eram virgens. Não só o procedimento foi abusivo, como o tamanho do DIU era totalmente desadequado para o útero de uma adolescente, provocando dores horríveis e persistentes, hemorragias durante semanas, infeções, em muitos casos esterilidade e cancro do útero.

A Gronelândia é um país com um clima extremamente agreste, cuja subsistência da sua população, maioritariamente Inuíte, se baseava numa forte estrutura familiar e espírito coletivo. Avós, pais e filhos viviam juntos em famílias numerosas. Nadjya Lyberth era a quinta filha de dez irmãos. Conheci a sua história através de um documentário da BBC News, “Gronelândia, a geração perdida”, narrado pelo seu testemunho e das suas amigas de escola, todas vítimas da “Campanha da Serpentina”.

É impossível ficar indiferente ao sofrimento que atravessou a vida destas mulheres. Além de constituir uma violação dos direitos fundamentais, trata-se de uma geração que vive em sofrimento permanente. A maioria não cumpriu o sonho de ser mãe. Nadjya engravidou mais de dez anos depois de estar casada e conseguiu ter um filho. A sua amiga Holga não teve a mesma sorte; o primeiro casamento falhou e no segundo adotou uma menina. Outra amiga, Albertine, já falecida, nunca conseguiu engravidar.

Nem tudo é mau quando se utilizam as redes sociais. Foi através de um grupo no Facebook que a corajosa Nadjya se aventurou na tarefa de procurar e de reunir um grupo de vítimas deste processo. Entre 2017 e 2022 mais de 200 mulheres juntaram-se-lhe. No documentário, o ministro da Saúde dinamarquês admitiu que o procedimento foi decidido pelo Governo e executado por médicos dinamarqueses que foram enviados com o objetivo de cobrir todo o território até à aldeia mais recôndita. A conspiração resultou, os índices de natalidade caíram drasticamente entre 1966 e 1974.

Mais de 40 anos depois, Nadjya e Holga regressam à escola e ao hospital para uma viagem no tempo, dolorosa e ao mesmo tempo libertadora. Dezenas de mulheres juntaram-se no local num encontro emotivo que evoca uma vigília, liderada por Nadjya onde lágrimas e abraços são partilhados. Ouvimos histórias de desolação, nas quais os sentimentos de impotência e de perplexidade pairam como sombras malignas no destino marcado destas mulheres, impedidas de serem mães, que não têm agora filhos que possam cuidar delas na velhice. Nenhuma mostrou raiva ou desejo de vingança. Apenas uma tristeza profunda e imensa, tão sombria que parece vir do início do Mundo.