Como se aproveitam (d)os últimos cartuchos (d)os craques mundiais

Ida de Lionel Messi para o Inter de Miami promete revolucionar o futebol nos Estados Unidos, tal como Cristiano Ronaldo está a fazer na Arábia Saudita. Os países ganham muito, dentro e fora do campo; os jogadores aceitam deixar a elite em troca de ganhos familiares, financeiros e empresariais.

Da maneira como as coisas estão, não é descabido pensar que também Luka Modric possa deixar o Real Madrid para rumar ao Médio Oriente. Os rumores são cada vez mais insistentes e se se confirmarem dar-se-á o caso, tão inacreditável quanto inesperado e repentino, de todos os vencedores das últimas 14 Bolas de Ouro estarem na Arábia Saudita e nos Estados Unidos. Cristiano Ronaldo faz agora vida em Riade, Karim Benzema já tem tudo pronto para se estabelecer em Jeddah e Lionel Messi prepara-se para desfrutar de Miami. Para já, três dos maiores futebolistas das últimas duas décadas já viraram costas à suposta elite, renegaram – ou foram renegados? – o futebol europeu e com eles ainda levam mediatismo, importância, significado, somas exorbitantes de dinheiro, atenção global e milhões de adeptos. Em troca, recebem salários impraticáveis até agora, para além da oportunidade de se expandirem como marcas, de explorarem outros mercados, de irem ao encontro de oportunidades de negócio – quer Ronaldo quer Messi têm investimentos em áreas da imobiliária e da hotelaria – e de prepararem a vida que se segue à carreira de futebolistas.

Luka Modric tem o futuro em aberto e, ao que tudo indica, uma proposta a valer 80 milhões de euros anuais para também se mudar para a Arábia Saudita. O croata é um dos muitos jogadores conceituados que são cobiçados por emblemas sauditas
(Foto: Paul Ellis/AFP)

Para convencer CR7, o Al Nassr nem pensou muito para aceder a garantir-lhe um salário anual de 200 milhões de euros. Meses depois, o Al Ittihad ofereceu o mesmo a Benzema e assegurou a contratação de um dos craques do Real Madrid, vencedor da Bola de Ouro há menos de um ano. Messi fica-se pelos 60 milhões, depois de, supostamente, ter recusado 500 para também ir bajular as particularidades sauditas, embora o contrato com o Inter Miami lhe assegure, entre outros benefícios, acordos muito vantajosos com a Adidas e a Apple, duas das marcas mais poderosas do Mundo. “Do ponto de vista desportivo, é andar para trás. Isso é inequívoco. Mas são excelentes formas de terminarem as carreiras, noutros mercados e noutras condições. E para os clubes e para as ligas, obviamente que é supervantajoso. É a mesma lógica de irmos ao cinema: um filme com atores conhecidos é mais visto e gera mais receitas…”, destaca Daniel Sá, especialista em marketing desportivo. Para se ter uma noção: 24 horas depois de anunciar a contratação de Ronaldo, o Al Nassr tinha mais três milhões de seguidores no Instagram; pelo contrário, a confirmação da saída de Messi deixou os perfis do Paris Saint-Germain nas redes sociais consideravelmente mais leves.

Uma novidade velha

Ainda causa algum espanto que grandes estrelas aproveitem os últimos cartuchos da carreira em países futebolisticamente pouco conceituados, mas nem Ronaldo nem Messi são visionários ou pioneiros nestas escolhas. Muito menos o argentino, que segue o mesmo caminho de Eusébio, Johan Cruyff, Franz Beckenbauer, George Best, António Simões, Gerd Muller, Lothar Matthaus, Thierry Henry, Zlatan Ibrahimovic, Kaká, Steven Gerrard e, principalmente, Pelé e David Beckham, tidos ainda hoje, cada um com impacto substancial e decisivo na respetiva época, como os grandes impulsionadores do futebol nos Estados Unidos. “O inglês obrigou até a mudar as regras do campeonato”, vinca André Zanotta, diretor desportivo do Dallas FC. O site “The Athletic” fornece dados reveladores. Nos dez anos anteriores à chegada de Beckham, em 2007, a Major League Soccer (MLS) passou de dez para 13 equipas; em 2023, são 29. Nos meses seguintes à chegada do ex-internacional inglês, os Los Angeles Galaxy venderam 700 vezes mais camisolas em relação ao ano anterior. Já o impacto de Pelé, que representou o New York Cosmos entre 1975 e 1977, fez-se sentir, acima de tudo, na afluência aos estádios: as médias de assistência nos jogos em casa do clube nova-iorquino passaram de 3500 adeptos para 45 mil.

David Beckham, antiga estrela inglesa, chegou à MLS em 2007 e é visto como um dos maiores impulsionadores do crescimento do futebol nos EUA
(Foto: Ira L. Black – Corbis/Getty Image)

“Hoje, a MLS está consolidada, tem os estádios sempre cheios”, sublinha Abel Xavier, colega e companheiro de Beckham no sonho americano e que nos Estados Unidos encontrou formas de pensar o futebol muito diferentes da que estava acostumado. “Eu fui contratado como jogador-marketing, com o objetivo de chegar à comunidade mexicana de Los Angeles. Foi uma abordagem nova e que me interessou bastante porque dava-me a oportunidade para compreender o futebol de outra maneira”, recorda o ex-internacional português, dando conta de que, já na altura, o contrato de David Beckham, tal como agora o de Messi, estipulava a hipótese de ser dono de um clube da MLS no futuro, o que veio a concretizar-se. Anos depois, o ex-jogador inglês lançou o Inter Miami.

Atualmente, David Beckham é um dos proprietários do Inter Miami, equipa que criou de raiz, tendo sido decisivo para a contratação de Messi
(Foto: Ira L. Black – Corbis/Getty Image)

O que diferencia Cristiano Ronaldo de toda esta nata da bola é, portanto, a escolha do país para sair de mansinho do futebol europeu e de topo. A Arábia Saudita tem uma tradição futebolística tão modesta como a dos Estados Unidos e até há pouco tempo praticamente não tinha vestígios da preferência de craques com mais ou menos idade. Daniel Sá até considera que o avançado português “fica mais escondido do ponto de vista mediático, ao contrário de Messi, que vai para um palco mundial do entretenimento, onde estão as maiores estrelas do Mundo de qualquer atividade”. No entanto, é precisamente isso, a possibilidade de colocar o futebol saudita num patamar inédito, de tão longe que pode chegar, e visível em todo o Mundo, que pode fazer de CR7 o que Pelé e Beckham foram, juntos, para os EUA. Essa revolução, aliás, já está a acontecer.

Retornos, família e a vida que se segue

“Já sabia que ao ir para a Arábia Saudita iria ‘abrir a caixa’.” A reação de Ronaldo à mudança de Benzema para o Al Ittihad não podia ser mais esclarecedora e demonstrativa do impacto que a chegada do próprio teve em todo o ecossistema da liga da Arábia Saudita. Nas últimas semanas, nomes como Neymar, Sergio Ramos, Modric, Toni Kroos, Mahrez, Busquets, Jordi Alba, Di María, Roberto Firmino, João Moutinho, Kanté ou Lukaku foram apontados a clubes sauditas, tal como os treinadores José Mourinho, Jorge Jesus, Zinedine Zidane e Massimiliano Allegri, sintomático de como aquele mercado ganhou um impressionante e incontestável impulso nos últimos meses. Afinal, se o Cristiano Ronaldo foi… “Agora, quem se interessa em jogar aqui são jogadores de alto nível e até são eles que ligam para perguntar se os queremos. Agora, há muito, em quantidade e qualidade, por onde escolher”, confidencia à NM uma fonte muito próxima do Al Nassr. O mesmo efeito sente-se do outro lado do Mundo. “A maioria dos clubes da MLS torciam para que a contratação do Messi acontecesse porque ela vai trazer uma série de consequências positivas para todos. Nos dias seguintes a Messi anunciar que ia para Miami, senti logo um maior interesse de outros jogadores em virem para cá porque estar na liga em que o Messi vai jogar é muito atrativo”, refere André Zanotta. Contudo, ver aqui uma eventual mudança de paradigma no mercado de transferências é pouco provável. “Ninguém vai esperar que um Haaland, um Pedri ou um Mbappé vá para a Arábia nos próximos anos. Os craques mais novos vão continuar a preferir jogar na Europa, mas os mais velhos, em fase final de carreira, vão aproveitar para ganhar mais dinheiro”, diz Artur Fernandes, presidente da Associação Nacional de Agentes de Futebol (ANAF), que, ainda assim, torce para que o investimento saudita, principalmente, não seja só um fogacho. “Já vimos isto a acontecer noutros países, como a Rússia ou a China, que depois fecharam a torneira abruptamente”, acrescenta.

Karim Benzema terminou contrato com o Real Madrid e decidiu rumar ao Al Ittihad, o campeão da Arábia Saudita
(Foto: Jorge Ferrari/Saudi Pro League/AFP)

Enquanto os Estados Unidos e a MLS ainda têm que esperar para verem confirmadas todas as melhores expectativas com a chegada de Lionel Messi, na realidade saudita o efeito-CR7 é uma evidência. Por um lado, é o tal exemplo que outros craques mundialmente conhecidos já não se importam de seguir; por outro, é o que fez aos jogadores e treinadores que já lá andavam antes dele. Este é mesmo o ponto mais relevante para a mesma fonte próxima do Al Nassr ouvida pela NM. “A disciplina e a exigência que ainda tem são contagiantes. O ginásio está mais cheio, nos treinos os defesas querem marcá-lo, os adversários motivam-se mais, trabalham melhor e a qualidade dos jogos e da liga aumenta”, nota, realçando ainda outro fator primordial para provar o ponto: “Aqui há cada vez mais jogadores estrangeiros jovens e agora eles sabem que os jogos vão ser transmitidos para uns 50 países, talvez até para o deles, e isso é mais um estímulo muito grande”. Daniel Sá assina por baixo: “Com estes jogadores, há aspetos que são garantidos. A atenção à volta da competição aumenta e isso resulta em mais receitas, mais dinheiro e direitos televisivos que se multiplicam e que passam a ser distribuídos por mais países…”.

Na cerimónia de apresentação de Karim Benzema, no estádio do clube, estiveram presentes cerca de 60 mil espectadores
(Foto: AFP)

Para eles, Ronaldo, Messi, Benzema e outros que se sigam, a conversa é outra. A adaptação competitiva dificilmente será muito estimulante e até se apruma toda como um dos maiores empecilhos na ideia de terem um final de carreira mais ou menos pacífico. Aos 38 e 35 anos, respetivamente – CR7 é o mais velho -, estão na fase descendente de uma curva futebolística fabulosa, certo, mas carregam um passado de anos e anos a competir ao mais alto nível, a jogar nas melhores competições, ao lado de outros melhores do Mundo, a receberem os melhores passes, a ganhar jogos atrás de jogos, títulos atrás de títulos. Ora, nos EUA ou na Arábia Saudita, a realidade é muito diferente, e para pior, o que tem potencial para levantar problemas. “Messi sempre jogou na maior elite do futebol mundial, vai sentir a diferença”, vaticina André Zanotta. “Sim, a possibilidade de haver um impacto importante e negativo neles existe porque chegam a um contexto menos exigente e com menos qualidade e isso também diminui a possibilidade de fazerem o que faziam antes”, confirma Ana Bispo Ramires. “Se os níveis de exigência que têm com eles próprios não baixarem, podem aparecer picos de frustração elevados”, alerta.

Assim que foi anunciada a transferência, até na final da NBA houve reações entusiásticas
(Foto: Mike Ehrmann/Getty Images)

A psicóloga desportiva, que trabalha regularmente com atletas olímpicos e que tem no currículo experiências com Luiz Felipe Scolari e uma década de atividade ligada ao departamento de futebol do Benfica, enaltece e entende, mesmo assim, as decisões do trio e o facto de fazerem escolhas baseadas em razões mais abrangentes e que não estão tão intrinsecamente ligadas à carreira e a (mais) êxitos desportivos, chamando a atenção para o facto de Messi ter invocado questões familiares para se decidir por Miami e alertando para a importância de, cada vez mais, se pensar na existência depois de o jogador de futebol ser enterrado. “A transição de carreiras é dos aspetos que mais preocupações levantam nas áreas do ‘player-care’. Há uns anos, a Premier League divulgou um estudo sobre ex-jogadores e as conclusões foram assustadoras. Falamos de pessoas que são velhas para a modalidade, mas que ainda têm uma vida toda pela frente. Há uma necessidade de se reinventarem e tentarem encontrar atividades que se possam comparar aos níveis de adrenalina e de notoriedade a que estão habituados”, explica Ana Bispo Ramires.

Peões na “futebolização da sociedade”

Há dois anos, Messi também teve liberdade para escolher onde jogaria depois de sair do Barcelona. Na altura, decidiu-se por um clube (o Paris Saint-Germain) controlado por um fundo de investimento do Catar. Ninguém o obrigou, tal como ninguém lhe apontou uma arma quando também aceitou tornar-se embaixador da Arábia Saudita. Em ambas as situações, sabia – ou devia saber – que se estava a associar a países conservadores até mais não, governados com mão de ferro, com tiques racistas, homofóbicos e acusados de violarem os mais básicos direitos humanos. O mesmo acontece agora com Ronaldo; antes, o Manchester City vendeu a alma aos suspeitos Emirados Árabes Unidos. Inconscientemente, ou não, jogadores, treinadores, clubes, adeptos são parte de um jogo cada vez maior, mais abrangente e politizado, e, em nome de mais dinheiro, mais perspetivas de sucesso e umas taças aqui e ali, encolhem os ombros e aceitam ser meros peões naquilo a que Vítor Rosa denomina como “futebolização da sociedade”. “O futebol é um produto de globalização e uma indústria de entretenimento que age intensamente na cultura e na economia dos países. É um meio de promoção e ter jogadores como Cristiano Ronaldo e Benzema ajuda os países a melhorarem a sua imagem”, defende o sociólogo, investigador e doutorado em Educação Física e Desporto. “Os grandes eventos de futebol tornaram-se palcos de visualização em larga escala das nações, dos jogadores e de outros agentes desportivos. Tudo isto conjuga interesses desportivos, políticos, económicos e simbólicos dos Estados”, salienta.

Cristiano Ronaldo foi a primeira grande estrela planetária a rumar ao futebol saudita. O acordo com o Al Nassr rende-lhe 200 milhões de euros por época e faz dele o jogador mais bem pago do Mundo, aos 38 anos
(Foto: AFP PHOTO/HO/ALl Nassr Football Club)

É impossível negar, então, que Ronaldo, Benzema e Messi são parte ativa de planos muito mais ambiciosos do que ganhar e perder jogos de futebol e que extravasam as fronteiras das quatro linhas. Com as contratações dos dois primeiros, a Arábia Saudita também espera, por exemplo, ter comprado argumentos convincentes para a FIFA atribuir-lhe a organização do Mundial de 2030. O de 2026 – nem de propósito – passará pelos Estados Unidos, onde estará Messi.