O que têm em comum a Rua Alto do Duque, em Lisboa, a Avenida do Brasil, em Cascais, e a Avenida Almirante Gago Coutinho, ainda na capital? São as três artérias com os imóveis mais caros em Portugal. Tomámos-lhes o pulso. Um mundo paralelo, com privacidade máxima. E escasso sentido de comunidade.
Quando, em 2017, a francesa Sylvie, 50 anos, e o marido escolheram para viver a Avenida do Brasil, em Cascais, convocaram os vizinhos para uma festa especial de boas-vindas. Sylvie encarregou-se de os chamar a todos a sua casa. E quase ninguém faltou. Vieram franceses como ela, belgas, ingleses, suíços, angolanos, norte-americanos, brasileiros, enfim, uma babilónia de nacionalidades e culturas diferentes. Portugueses também, poucos, que são cada vez menos os que habitam aquela que é a segunda artéria do país com casas mais caras. Ali, a média de preços de cada um dos imóveis – com as enormes moradias a constituírem-se como dominantes e imperiais no grosso do total – é de 3,1 milhões de euros. Os cálculos foram apresentados no estudo anual do portal Idealista, especialista no mercado imobiliário, e basearam-se nos valores médios absolutos de fogos em artérias espalhadas por todo o país. A Avenida do Brasil é repetente no ranking ano após ano. Cara no preço, tranquila no ambiente, reservada no contacto.
“Disseram-me que nunca tinham visto nada assim. Foi a primeira vez que os vizinhos se juntaram. Muitos nem se conheciam ou sabiam pouco uns dos outros”, recorda Sylvie daquele dia que lhe ficou na memória como primeiro do resto da sua vida. Simpaticamente, prefere omitir o apelido e recusa ser fotografada. Pede desculpa por querer manter a privacidade possível, enquanto solta elogios ao país novo que lhe deu outro horizonte de vida, outra paz, outro conforto que já não conseguia encontrar “numa França difícil”, que reconhecia cada vez menos como sua e de onde queria sair para poiso tranquilo. Encontrou-o em Cascais, amor à primeira vista e para sempre. Tem uma empresa de remodelações, diz-se feliz como jamais imaginou possível. Mais do que nunca, aperta o abraço à morada que guarda como sua num coração renovado de felicidade.
“Quis fugir da confusão de Paris e encontrei na Avenida do Brasil o paraíso. O civismo é incrível, a simpatia das pessoas é permanente, a segurança e a tranquilidade incontestáveis”, desfia, com um sorriso estampado que não disfarça o entusiasmo. “Para os meus filhos, com 13 e 16 anos, não poderia pedir melhor”, diz. “Um paraíso”, volta a dizer, repete-o vezes sem conta, qual mantra de agradecimento, num português solto, de sotaque arranhado, mas perfeitamente percetível. Vive numa moradia que da rua pouco se descobre. Tal fortaleza inexpugnável, como são quase todas nas redondezas. O alto portão pouco largo é ladeado por longas sebes de um verde carregadíssimo que não deixam espreitar um milímetro que seja do interior da habitação. “Encontrei a liberdade em Portugal”, afirma sorridente Sylvie, enquanto cumprimenta, em inglês, um vizinho, igualmente estrangeiro – “é novo por cá, não o conhecia” -, que vai passeando sem pressas o seu pequeno cão em plena faixa única destinada ao trânsito automóvel, que por ali é raro, naquela avenida que começa em subida lenta, se distende depois numa reta de poucas centenas de metros e termina em descida suave, também não muito extensa com o mar como horizonte de vista e o cheiro forte a maresia como companhia permanente.
O mar como companhia
Nessa reta final descendente da Avenida do Brasil há um curto correr de entradas de prédios cuja configuração engana quem os observa do exterior. Iguais na arquitetura, não têm mais do que três andares em altura a olho nu. O interior, porém, estende-se em pisos inferiores que revelam varandas especiais de onde é possível avistar com privilégio toda a baía de Cascais e tudo o mais que o olhar consiga alcançar. E há muito para contemplar.
Num desses prédios habita Abel Montez, um dos moradores veteranos da Avenida do Brasil. Há exatamente meio século, desde 1973, que não conhece outro endereço. Paixão de sempre sem separação possível, 50 anos de companhia permanente em constante comunhão. A avenida com ele se confunde, ele confunde-se com a avenida. Com orgulho. “Pagava na altura uma renda de quatro mil escudos, depois acabei por comprar o apartamento”, recorda. Contas feitas, e tendo como suporte o cálculo de inflação do site Pordata, o valor ronda o que seriam hoje 900 euros mensais. As mudanças existem, o convívio com a vizinhança é que jamais foi assíduo. “Aqui cada um faz a sua vida, não existe espírito de comunidade. Sempre foi assim”, aponta.
Abel Montez, 77 anos, nunca pensou mudar. Até porque sabe que vive em espaço raro. “É pacífico, apesar de caro e do assédio constante de interessados para comprar casa. Vale que estamos pertíssimo da praia e a tranquilidade é a de sempre. Não trocava de todo, encontrar relação qualidade-preço fora daqui é praticamente impossível”, garante Abel, 77 anos, reformado de longa vida de trabalho como técnico de manutenção da extinta companhia brasileira de aviação Varig.
Quem também assegura pretender vida eterna na Avenida do Brasil, se assim o destino o quiser, é Rui Relvas, guia turístico de 32 anos, desde 1996 lá morador. “Os vizinhos mudaram, são cada vez menos, mas a segurança e as características gerais continuam as mesmas”, descreve. “Não tenho defeitos a apontar, talvez o único que seja relevante é que se foi perdendo uma certa proximidade entre todos, apagaram-se laços”, pensa.
Vizinhos famosos
A Avenida do Brasil estende-se solene numa das áreas privilegiadas de Cascais. Os ex-futebolistas Simão Sabrosa e Nuno Gomes têm casa nas ruas vizinhas. Não muito longe fica também a moradia de Ricardo Salgado, o banqueiro que liderou o Banco Espírito Santo. A paz é permanente, a limpeza imaculada, a segurança um sinal duradouro de que aqui há dinheiro, muito dinheiro. Do (pouco) que é possível dar a ver do exterior das moradias – o apelo à privacidade obriga a que praticamente todas estejam protegidas por muros altos ou vegetação imensa – sobressaem as câmaras de vigilância, que se multiplicam em cada uma das habitações. Policiamento, se o há, é discreto. Guardas-noturnos, contam-nos, foram presença assídua no passado.
“Trata-se de um local resguardado em pleno coração de Cascais”, define Pedro Morais Soares, presidente da União de Freguesias Estoril e Cascais, onde se implanta a avenida. “Está muito protegida pelo seu enquadramento, perto de outras três avenidas principais, e tem a praia a um máximo de 100 metros”, desenha o autarca.
O facto de ser uma das mais caras do país “é uma grande honra”. E um pau de dois bicos, também, pois “contribui para especulação dos preços numa freguesia marcada por uma intensa requalificação urbanística levada a cabo nos últimos cinco anos” e que não foge ao que sucede no restante concelho de Cascais, o aumento da população estrangeira, “que já constitui 20% dos residentes totais”.
Famílias de nome e novos vizinhos
A Avenida do Brasil, porém, não é a mais cara do país. Esse estatuto pertence, de acordo como ranking elaborado pelo Idealista, à Rua Alto do Duque, em Lisboa, onde o preço médio dos imóveis alcança astronómicos 4,4 milhões de euros.
Situada no Restelo, em plena zona de embaixadas e moradias de fino corte, não foge às características da área envolvente. Representações diplomáticas internacionais alberga três, as do Irão, de Marrocos e da Grécia. Imóveis onde primam luxo e classe são quase todos. E ocupam apenas um dos lados desta artéria nobre. Do outro, 80% da sua extensão é marcada por aquela que pode ser considerada uma das portas de entrada do Parque Florestal de Monsanto, natureza clara em plena cidade confusa. Ouve-se o chilrear dos pássaros, respira-se ar puro, tem-se liberdade.
Tal como na Avenida do Brasil, o apelo à privacidade é bastante claro. Os imóveis são guardados por aparatosos sistemas de segurança, o contacto faz-se difícil, o desejo de silêncio para fora é expressão de ordem. Empregadas particulares passeiam os cães dos patrões, garagens guardam carros de gama alta, muros em altura protegem e resguardam a discrição dos habitantes. As escassas moradias que necessitam de restauro urgente, por aparente falta de cuidado na manutenção, sobressaem na paisagem onde se destaca o cuidado e esmero.
Outra característica comum é a presença, cada vez mais significativa, de cidadãos estrangeiros, como Gaetane, fotógrafa holandesa de 50 anos. Cidadã do Mundo, mudou-se para Lisboa com a família há seis meses desde Singapura. “A segurança é muita, sem dúvida”, elogia. “O convívio inclusivo com os vizinhos, esse, não existe. Nem um simples olá”, lamenta. Gaetane, contudo, não se arrepende de ter escolhido Portugal e Lisboa como casa. “Queria outra experiência e tenho desfrutado bastante, quer pelo lado positivo, quer pelo negativo”, assevera.
Na Rua do Alto do Duque, morada de famílias de nome e de personalidades como Sousa Cintra, ex-presidente do Sporting – outro antigo presidente do clube, José Roquette, tem casa cujas traseiras em artéria vizinha dão vista para a Alto do Duque -, sobressaem novos habitantes que vieram juntar-se aos clássicos de várias gerações. Deste último lote faz parte Frederico Paulo da Cruz, lá habitante há mais de quatro décadas. “Quem aqui reside é muito fechado em si próprio, até pelas características específicas dos imóveis”, explica. Sinais de uma exclusividade particular que se alarga a toda a artéria, onde cada casa imponente tem vida própria que não se confunde com quem quer que seja. As mudanças, essas, foram-se sentindo, lentas como o tempo que ali parece demorar a passar. “Várias moradias dos nossos contemporâneos foram revitalizadas, algumas delas descaracterizando totalmente a rua. Isso levou a uma subida acentuada de preços”, lastima Frederico.
Apesar do negócio apetecível, a rua parece estar a salvo de aventuras especulativas. “Os tubarões do imobiliário não estão interessados na Alto do Duque”, afiança Fernando Ribeiro Rosa, presidente da Junta de Freguesia de Belém. “São casas de família, o máximo que pode acontecer é serem arrendadas a estrangeiros, vendidas em definitivo, não”, sublinha o autarca, deixando claras as características únicas de localização que ganhou direito quase natural a preços tão elevados.
Luxo vazio à espera de novo dono
A Avenida Almirante Gago Coutinho, que faz a ligação em longa reta entre o Arreeiro e a Praça do Aeroporto (mais conhecida como a Rotunda do Relógio), que dá acesso ao Aeroporto Humberto Delgado, é a terceira colocada do ranking das artérias mais caras de Portugal. Uma casa de habitação tem preço médio, diz o já referido estudo, de três milhões de euros. A questão é encontrá-las ocupadas. As moradias onde ainda cabe gente em morada contam-se pelos dedos de uma mão, sobram as dezenas que se encontram em estado de abandono ou em fase de recuperação profunda para futura venda. O resto, que é quase tudo o que é funcional na Gago Coutinho, são sedes de empresas, de colégios, até de ordens profissionais, como as dos Médicos e dos Enfermeiros. Serviços, portanto, que lentamente foram tomando o lugar das habitações e agora controlam o cenário.
“É uma situação que se arrasta, seguramente, desde há mais de 20 anos. A Avenida Gago Coutinho era uma zona insegura, com muitos assaltos, e as pessoas foram-na deixando, abrindo caminho à compra e ocupação dos imóveis por parte de instituições nacionais e de capital estrangeiro com capacidade de investimento”, detalha José Amaral Lopes, presidente da Junta de Alvalade, uma das duas freguesias abrangidas pela Gago Coutinho.
“Há outros fatores que podem ajudar a explicar o estado a que chegou a avenida, como a falta de lugares estacionamento. De resto, ela tem em si vivendas com ótimas características, nomeadamente com uma área bruta superior ao habitual noutras zonas de Lisboa”, frisa, por sua vez, Fernando Braancamp, presidente da Junta do Arreeiro, a outra freguesia da Avenida Almirante Gago Coutinho, assim designada desde 1960, antes simples e oficialmente Avenida do Aeroporto.
O poder do dinheiro
Dividida administrativamente pelas freguesias de Alvalade e do Areeiro, como atrás explicámos, a Avenida Gago Coutinho tem o metro quadrado (m2) mais elevado em Lisboa. Fazendo as contas apenas a este fator, e não tomando em consideração a média total do preço das habitações locais, em Alvalade o m2 para venda de imóveis está fixado, dados de fevereiro do portal Idealista, os últimos disponíveis, nos 5424 euros. Contas redondas, com base nestes cálculos uma casa com 200 m2 pode ter como preço base 1,085 milhões de euros.
No Areeiro, os valores são ligeiramente mais baixos – 4572 euros o m2. Quer isto dizer que um imóvel também com 200 m2 partirá facilmente dos 914,4 mil euros. Numa e noutra freguesia, a variação de preços em relação ao período homólogo do ano passado foi revista em alta na última análise do Idealista. Em Alvalade, adquirir um imóvel é agora 7% mais caro do que em 2022; no Areeiro, 1,5%.
“A Avenida Almirante Gago Coutinho, apesar do elevado número de casas devolutas ou em processo de recuperação, tem enorme potencial. Situa-se num ponto nevrálgico de Lisboa, faz a ligação entre o centro e o aeroporto, e tem um mercado muito estável, embora cada vez mais focado nas empresas e serviços”, assinala David Carapinha, CEO da imobiliária Home Tailors Real State, especializada no segmento do mercado de luxo. A explicação é simples: “As casas, grosso modo, ficam muito tempo em processo de comercialização e quando são vendidas não são mantidas como habitação, sendo transformadas em sedes de negócios vários”.
Apesar de tais características peculiares, a Avenida Gago Coutinho parece ter tudo para continuar a figurar entre as mais requisitadas de Lisboa. “Não é previsível que se verifique uma quebra na procura, até porque os potenciais compradores situam-se num quadro com poder negocial superior à média e, à partida, não ficam afetados por possíveis variações de valores de aquisição nem, por exemplo, com eventuais mexidas na lei, como as recentemente anunciadas pelo Governo”, refere, numa alusão ao pacote de medidas anunciadas para o setor da habitação, que ainda se encontra em fase de consulta pública e, por conseguinte, não foi aprovado até à data.
“Potencial incrível”
Avançando para a freguesia de Belém e voltando para a Rua Alto do Duque, aterra-se na sexta freguesia mais dispendiosa de Lisboa, num total de 24. Cada metro quadrado fixa-se em 6060 euros, ainda assim um valor 0,5% mais baixo do que em igual período do ano transato. Tomando de novo como exemplo uma moradia com 200 m2, a base de venda parte dos 1,21 milhões de euros. Ainda tendo como referência os cálculos do Idealista, só nas freguesias de Santo António (7674 euros), Misericórdia (6484 euros), Alcântara (6316 euros), Avenidas Novas (6230 euros) e Estrela (6130 euros) os valores por m2 são mais elevados.
“Belém é das zonas nobres de Lisboa, onde se situa o grosso das embaixadas. Um ponto de referência, portanto, onde a maioria dos fogos são moradias reabilitadas, embora ainda existam exemplos de outras que esperam por remodelação, nomeadamente na Rua Alto do Duque, e também, apesar de extremamente escassas, que não se encontram em bom estado, mas que podem perfeitamente transformar-se caso recebam cuidados adequados nesse sentido”, descreve Frederico Cortesão, consultor imobiliário da agência ERA, especializado naquela área da capital. “Em resumo, Belém conta com um potencial incrível, que certamente continuará a ser explorado a curto e a médio prazo”, analisa.
Pouco mais de 30 quilómetros depois, seguindo pela linha de costa, onde o Tejo se despede e o Oceano Atlântico se apresenta num azul imaculado e amplo, a Avenida do Brasil, em Cascais, aponta o metro quadrado para uma média de 5741 euros. Quem comprar lá, nunca poderá esperar ouvir propostas abaixo dos 1,14 milhões. Há um ano, os preços eram, porém, 18,4% inferiores.
“Tem um segmento de procura muito específico, com elevada procura por parte de estrangeiros, embora o mercado nacional também continue a ser importante”, destaca David Carapinha. “Neste momento, pode mesmo dizer-se que o equilíbrio entre nacionalidades é muito grande, o que também se repete quando falamos de outras localizações de luxo com procura elevada, como são os casos específicos de Troia, da Comporta ou de Azeitão”, menciona.
Um mercado sem fim
Socorrendo-nos da mesma fonte, torna-se possível também perceber como funciona o mercado de arrendamento nas zonas de Lisboa onde estão situadas duas das três artérias mais caras do país. Em Alvalade, chega aos 17,30 euros por m2, o que significa que, tendo ainda como exemplo uma casa com 200 m2, a renda mensal nunca será inferior a 3460 euros. No Areeiro, e com o m2 a uma média de 16,10 euros, igual arrendamento chegará aos 3220 euros. E em Belém, onde o m2 ascende aos 18,50 euros, os inquilinos nunca desembolsarão menos do que 3700 a cada mês.
E quem quiser arrendar na Avenida do Brasil, na União de Freguesias de Cascais e Estoril? Bem, aí o m2 anda, ainda de acordo com as contas do Idealista para fevereiro, nos 20 euros exatos, o que leva a que um imóvel de 200 m2 parta de negociações na ordem dos… quatro mil euros.
Sinais de que o luxo é mercado sem fim num Portugal que o tem como nicho apetecível. Alvo fácil e abundante para carteiras largas que o conseguem movimentar e dinamizar. Um mundo paralelo, espécie de microcosmos num segmento da habitação com preços que fogem às convenções, de que as três ruas mais caras do país são exemplo mais do que perfeito e palpável.