Comer
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Tudo me engorda. Creio que até o ar anda calórico, talvez açucarado, manipulado para lhe tirarem sementes e entrar na digestão, no sangue, no susto. Nem sempre me contenho, mas desenvolvi uma preguiça grande para comer, pelo que vou à pressa onde a comida seja rápida, sumária, sem estranhezas nem segredos, apenas uma síntese limpa e enxuta. Gosto pouco de assados e caldeiradas, de coisas afundadas em tralhas e mais tralhas. E jamais vasculho em ossos. Que grotesco. Prefiro a aparente simplicidade que expõe os alimentos claramente, desde logo, para que eu me proteja de ser intolerante à cebola, ao pimento ou ao pepino.
Facilmente repito uma refeição. Já passei mais de um ano a comer cerca de três pratos distintos. Não me custa nem me cansa. O que me importa é que sejam os meus favoritos, o que significa que são os que mais tolero, menos que agridem a digestão, matam-me a fome com competência e sem punição.
Adoraria poder comer apenas frutas, as que não são ácidas, como morangos e pêras, bananas e anonas ou uvas, ou comer apenas pão fresco, broa de Avintes ainda húmida, muita broa de Avintes. É uma tragédia a necessidade de variação, essa coisa de as proteínas estarem de modo a nos obrigarem a vários alimentos, demasiados, solicitando um esforço em cima do gosto e até da praticidade. Sou bem aquele sujeito que espera pela invenção de um comprimido que resolva esta dimensão animal. Sermos, afinal, animais é um empecilho para muita elegância e despacho. Perdemos demasiado tempo a sermos bichos. Estou contra. Quero ver isto sanado.
De todo o modo, posso apreciar um restaurante, como qualquer pessoa comum, sem minhas birras e ansiedades. Há dias, regressando ao 7 Castelos, do Paulo Santos, em Oeiras, por duas noites me devotei às suas saladas, suas entradas e sobremesas, como quem volta a um engate. Um pouco de fome e a alegria de poder comer ali torna tudo perfeito. Os pratos são inteligências coloridas, abastadas, com coentros, que adoro, e frutas misturadas, e um azeite suave, e o tomate pequeno, mais nem sei quê que é tão grande maravilha. Eu não sei cozinhar e não descortino muito como se fazem as receitas, mas fico verdadeiramente deslumbrado (e grato) por uma delicadeza assim. Há anos que, visitando Oeiras, ali vou ou sou levado, e nunca me pareceu nem pouco nem normal. Foi sempre um luxo. Quando saio, aviso alguém. Acontece-me o que julgo acontecer com toda a gente que se sente servido numa mesa real, fico a falar do assunto uns dias. Enquanto não mandar ali os meus amigos, não fico bem.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)