Chaves em parte incerta, comando no frigorífico, dinheiro no lixo. Será mesmo distração?

Cada caso é um caso e é preciso perceber o contexto da pessoa, a idade, a frequência dos episódios, a fase da vida

Para quem cresceu com o rótulo de “pessoa distraída”, os episódios acumulam-se durante anos sem se pensar muito nisso. Para outros, é em fases de mais cansaço que acontecem. Entre o que é normal ou patológico, há muitos fatores que se devem pesar.

Era final da tarde e o locutor Fernando Alvim, aos microfones da rádio, desabafava: “Já perdi mais de metade da minha vida à procura das chaves de casa”. E agora que começou a usar óculos, sobretudo para ler, conta à “Notícias Magazine”, dá por si em buscas incessantes e desesperantes também por eles. “São coisas que me consomem imenso tempo.” No programa diário “Prova oral”, da Antena 3, é fácil descortinar-lhe a distração em relatos rotineiros de episódios atrás de episódios. Mas será mesmo só distração?

“Na verdade, em 50% das vezes que saio de casa esqueço-me de alguma coisa. O que até não seria nada de especial se não morasse num 3.º andar sem elevador. O meu castigo é penoso”, refere. E depois de cumprir a “penitência”, não raras vezes encontra aquilo de que anda à procura nos sítios mais inusitados. “Não há lógica na forma como encaro, por exemplo, as chaves. E isso irrita-me. Perder as coisas atormenta-me a alma. Sou bem capaz de abrir o frigorífico a ver se estão lá e só o facto de encarar essa hipótese como possível diz bem da consideração que tenho por mim próprio.”

O humorista e apresentador simplifica: é como ter uma dor crónica. “Mas é antes um esquecimento permanente, um alheamento da realidade dos meus objetos. É como se todos os meus objetos do quotidiano se unissem para me tramarem a vida”, brinca. É assim desde que se lembra. Mas não, não há nenhuma conspiração cósmica aqui, por mais que gostasse de acreditar nisso. Já lá vão três meses desde que procurou ajuda profissional. Aos 48 anos, quis encontrar uma explicação para lá da distração. “Isto não é uma coisa que me acontece de vez em quando, é demasiado frequente e não é normal. Achei que precisava de intervir. Percebi que sofro de défice de atenção. E acho que todas as pessoas ditas distraídas, de certo modo, sofrem do mesmo. A verdade é que olhamos para as pessoas distraídas com alguma complacência. E as próprias pessoas distraídas não levam a sério o facto de o serem.”

Numa primeira fase, Alvim está a ser medicado, o que tem “ajudado a reduzir substancialmente os episódios”. Mas soma outras estratégias, como pousar as chaves sempre no mesmo sítio da casa. Além de ter listas de tarefas para tudo e mais um par de botas. “No fundo, passo a vida a lutar com o meu défice de atenção. Com a minha crónica distração.” Apesar de, curiosamente, os momentos de esquecimento acontecerem sobretudo nas tarefas rotineiras. “No trabalho, consigo estar completamente focado. É como se existisse um foco seletivo. Sei que estou a trabalhar e a minha cabeça não sai dali.” Já não pode dizer o mesmo de tudo o resto. Há até causas que já deu como perdidas. É o caso do guarda-chuva. “Há anos que não tenho guarda-chuva. De cada vez que tinha um, perdia-o no espaço de 48 horas. Até que me fartei.”

“Não há personalidades distraídas”

Chaves em paradeiro incerto, comando do televisor no frigorífico, dinheiro no lixo. Afinal, é distração, cansaço ou algo mais sério? A resposta é “depende”. De acordo com Ana Luísa Monteiro, psicóloga da infância e da adolescência, “estas pequenas falhas poderão obviamente dever-se a várias coisas”. Podem ser consequência de um pós-parto, de um quadro de depressão ou burnout. E sim, a explicação também poderá ser simplesmente cansaço, se a pessoa estiver muito assoberbada de trabalho, preocupações em casa, na relação. Francisco Silva, 53 anos, é o exemplo perfeito. “Aconteceu-me, recentemente, ao final do dia, pôr as meias na sanita. Precisava de colocar as meias para lavar e tinha vontade de urinar. Levantei a tampa da sanita e pus lá as meias em vez de as pôr no cesto. Acabei a rir-me de mim próprio pelo insólito.” Não se lembra de alguma vez lhe acontecer algo do género, não é habitual.

Mas o stress ou o cansaço diário são explicações que vestem apenas casos pontuais, segundo Ana Luísa. “Se for algo persistente são esquecimentos que não são comuns. Uma coisa é esquecer-se, pontualmente, da chave do carro na ignição, da chave de casa em casa, isso acontece. Outra coisa diferente são esquecimentos frequentes ou, mais complexo ainda, colocar objetos em sítios que supostamente não são os certos, como o telemóvel no frigorífico.”

Mas, atenção, cada caso é um caso e é preciso perceber o contexto da pessoa, a idade, a frequência dos episódios, a fase da vida. “A mim já me aconteceu fazer uma coisa ou outra mais fora da norma. Mas foi pontual, numa fase mais ansiosa. Se estivesse a acontecer de forma repetida teria que procurar a ajuda de um profissional para tentar perceber de onde é que isto vem.” Até porque podemos estar a falar de “quadros demenciais ou outro tipo de perturbações”. Há uma regra de ouro quando é frequente: não ignorar. Porque não “há personalidades distraídas”. “A meu ver a distração não é um traço de personalidade. Claro que há pessoas mais distraídas do que outras. Mas é preciso perceber o grau de distração e se pode ou não constituir uma perturbação de hiperatividade e défice de atenção.” Ana Luísa descreve num ápice as pessoas com défice de atenção: “Estão sempre a falar muito, não conseguem cumprir algumas instruções”.

A verdade é que muitos desvalorizam a própria distração e outros passam despercebidos em criança “se isso não tiver muito impacto na escola”. E a perturbação de hiperatividade e défice de atenção, alerta, não tem só a ver com ser-se irrequieto. “Nos adultos nota-se muito mais o défice de atenção do que a hiperatividade. Conheço muitas pessoas que estão a receber diagnósticos agora em adultos, porque hoje há muito mais informação.” Procurar ajuda de um psicólogo ou psiquiatra, sugere, é um caminho. Mas só “se isso tiver muito impacto na vida da pessoa e lhe trouxer algum sofrimento”.

Inventar estratégias

Eduarda Silva, 33 anos, é “distraída” desde que se conhece. E recua aos tempos de catraia para provar a tese. “Estas coisas acontecem-me desde sempre. Era comum, quando andava na escola, a minha mãe dar-me cinco euros semanalmente. Eu pegava na nota, não a guardava logo, e começava a falar e falar e ela já sabia, invariavelmente, que a ia perder. Muitas vezes, estava no lixo, porque ia pôr o iogurte que estava a lanchar e acabava a repetir o gesto com a nota.” Este é um dos episódios mais emblemáticos que guarda na memória por se ter repetido vezes sem fim. “Também era típico pegar em objetos aleatórios, enquanto falava, e guardá-los no frigorífico. A minha mãe dizia que eu era muito distraída. E sou, de facto.”

Sempre acreditou que tudo passaria com os anos. Mas não. Ainda hoje os episódios de distração a atormentam. “Se estou a cozinhar e tenho que pôr a máquina da roupa a lavar, não seria estranho pôr uma cenoura na máquina.” O transtorno que isso lhe causa é o trabalho de perder tempo a refazer todos os seus passos. “O sítio onde vou descobrir as coisas tem sempre a ver com o que estava a fazer antes. E fico furiosa comigo.”

Como foi despassarada toda a vida, nunca pensou muito sobre o assunto. “Se acontecesse só agora, acho que ia começar a achar que alguma coisa se passava. Como acontece desde criança, sempre atribuí a distração. No trabalho, sou muito metódica. Mas em tarefas quotidianas, faço coisas destas constantemente e é enervante. Tenho que fazer exercícios para que isto não me dê cabo da vida.” As estratégias são simples. Tentar regrar-se e focar-se, optar por não fazer muitas coisas ao mesmo tempo na luta de travar a mente que quer voar à força para outros lados. “Se estou a cozinhar, tenho que controlar-me para levar a tarefa até ao fim e só depois ir limpar a areia do gato. Já sei que estou sempre a pensar em mil coisas e acabo a misturar tarefas.” Também usa a técnica, tal e qual Alvim, de guardar os objetos sempre no mesmo sítio. Nunca procurou ajuda, domesticou o problema. “Já conheço as estratégias. E têm resultado comigo.”

Patologia ou não?

Desatenção, distração. A dúvida, aponta Cáthia Chumbo, psicóloga clínica, “reside no facto de considerarmos esta característica como patológica ou não”. São muitos os casos de adultos, conta, que atualmente mencionam que “sempre foram distraídos” ou “já em pequeno eram cabeças no ar”. À semelhança da também psicóloga Ana Luísa Monteiro, Cáthia defende que a situação deve ser analisada pela “duração ou persistência”. E, hoje, em consultório, não faltam situações neste campo. Vamos a exemplos práticos. “O meu filho não consegue fazer as tarefas da escola sozinho, distrai-se com tudo, mas se estiver a jogar no telemóvel não se distrai”; “às vezes, estou a conduzir e de repente já percorri todo o trajeto para casa e nem me apercebi”; “preciso de vitaminas, nunca sei onde deixo nada e tenho dificuldade em manter-me concentrado no trabalho.” Então, como saber se é uma característica normativa ou patológica?

A resposta poderá estar num despiste de perturbação de hiperatividade e défice de atenção, “que pode ser do tipo predominantemente desatento, predominantemente hiperativo/impulsivo ou perturbação de hiperatividade e défice de atenção combinado”. Mas, antes disso, é importante ressalvar que na vida adulta é normal assumir automatismos que nos levam a executar tarefas sem que tenhamos “consciência direta”. “Isto acontece através dos mecanismos de repetição, que nos levam a ‘gravar’ estes circuitos.” Ou seja, se faço sempre o mesmo caminho para ir para a empresa, é natural esquecer-me que desta vez tinha que parar na farmácia antes. “Outro exemplo. Desligo a televisão sempre antes de ir deitar os miúdos. Como fui buscar o xarope da mais nova, pousei o comando no armário da cozinha e estive imenso tempo para o encontrar.” Só no caso de estas situações começarem a ser regulares é que se torna preocupante.

E mesmo perante um diagnóstico de défice de atenção, é possível, diz a psicóloga, manter o foco numa tarefa do nosso agrado, uma vez que quando “estamos perante atividades prazerosas, mantemo-nos na tarefa mais facilmente”. Como acontece com as crianças a jogar telemóvel. Ou com Fernando Alvim e Eduarda Silva no trabalho. Certo é que há estratégias para lidar com a desatenção. “A distração surge, muitas vezes, como consequência de um excesso de pensamentos em simultâneo. A pessoa não consegue dirigir o foco. Mas não temos que castrar esses pensamentos. Podemos canalizá-los para um momento em que possam ganhar forma, através de instruções internas, como ‘agora tenho que me focar nesta tarefa para a concluir e depois penso no resto’.” Esta pode ser, afinal, a melhor forma de fugir às distrações. Sejam elas patológicas ou não.